RESUMO: Este artigo aborda a disposição do artigo 2º do Código de Processo Civil, em sua primeira parte, no intuito de aferir o que justifica a efetiva razão de ser dessa disposição, tomando em consideração a realidade subjacente que, de fato, leva à decisão da propositura da ação e início da formação do processo, abordando os entendimentos doutrinários sobre o assunto e, considerando a garantia constitucional à inviolabilidade do direito à liberdade, ao final, conclui ser esta o fundamento da aludida disposição legal.
Palavra chave: Artigo 2º do CPC – princípios ou inviolabilidade do direito à liberdade?
SUMÁRIO: 1 – Introdução - 2 - Manifestações da doutrina e argumentos de refutação - 3 – Considerações finais – 4 - Referências.
1 – Introdução
O artigo 2º do Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015)[1] expressa, em sua frase inicial, que “O processo começa por iniciativa da parte ...”, frase essa que, a princípio, mostra-se de fácil entendimento, porém, com possibilidade de conduzir a desacertos quanto à realidade subjacente que tem como pressuposto.
Desse modo, neste trabalho buscar-se-á identificar qual é a efetiva razão dessa disposição legal? Qual é o efetivo fundamento jurídico dessa regra, ou princípio? Abordagem esta, entretanto, limitada ao processo civil e quanto às pessoas de direito privado, não abrangendo o processo coletivo nem as pessoas de direito público, muito menos o processo penal.
Para tanto, valer-se-á das correlatas manifestações da doutrina e da jurisprudência, apoiando-se na legislação e em outros saberes da ciência, na medida em que isso se fizer necessário para afastar ou corroborar as assertivas que aqui vierem a ser declinadas.
Espera-se que com a resposta a ser trazida a esses questionamentos seja possível uma reflexão e encaminhamento para uma efetiva e segura identificação da realidade que concretamente dá fundamento à sujeição do início do processo civil à inciativa da parte, evitando-se, com isso, incorrer em possíveis equívocos de interpretação e tratamento do tema.
2 – Manifestações da doutrina e argumentos de refutação
A doutrina nacional, ao abordar a disposição do art. 2º do CPC/15, em regra, atribui à frase inicial desse dispositivo; “O processo começa por iniciativa da parte ...”; o sentido de que ela, em síntese, decorre dos princípios da “inércia da jurisdição”, da “demanda” e até mesmo do “dispositivo”.
Cândido Rangel Dinamarco (2018, pág. 59), em seus comentários a essa disposição, assim se expressa:
“A exigência legal da iniciativa de parte, sem a qual nenhum processo civil é instaurado, é manifestação do princípio da inércia do juiz, ou princípio da demanda, que constitui vigoroso óbice ao exercício da jurisdição.”
No mesmo sentido é o entendimento que expende José Miguel Garcia Medina (2020, pág. 31): “O princípio da inércia da jurisdição, assim, é a outra face do princípio da demanda, encontrando-se ambos nos princípios positivados nos arts. 2º do CPC/2015.”
Por sua vez, Leonardo Carneiro da Cunha (2016, pág. 29), em seus comentários a esse dispositivo, também deixa assente que:
“2.1. Instauração do processo por iniciativa da parte. A primeira parte do dispositivo confirma a regra tradicional de que o processo começa por iniciativa da parte. É com o protocolo da petição inicial que se considera proposta a demanda, iniciando-se aí o processo (CPC, art. 312). Há quem chame essa regra de princípio da inércia. Há quem prefira chamá-la de princípio da demanda. Embora seja tradicionalmente denominada princípio, trata-se de uma regra que tem por fundamento o “princípio dispositivo” (é conhecida a diferença entre princípios e regras, que constituem normas jurídicas. O “princípio” dispositivo não é categoria normativa. Não se trata de princípio como norma, mas como fundamento de norma. Usa-se, aqui, a expressão no sentido mais tradicional. Quando se alude ao termo princípio dispositivo não se está dizendo que se trata de um princípio como norma, mas como fundamento de norma). A regra da inércia ou da demanda é consagrada não apenas pelo art. 2º do CPC, mas também pelos arts. 141 e 492, que impedem ao juiz proferir sentença aquém, além ou fora dos limites do pedido e da causa de pedir.”
Guardado o devido respeito e sem demérito a esses abalizados entendimentos e até mesmo à outros em idêntico sentido, entende-se que a frase “O processo começa por iniciativa da parte ...”, no contexto do artigo 2º do Código de Processo Civil, está a exprimir, a expressar uma declaração de admissão e acolhimento de algo, de uma realidade que ocorre e que está antes do início do processo e que, portanto, deve ser observada.
Nesse sentido, vale aqui ter presente que ocorrida uma ameaça ou lesão a direito esse ato provoca no respectivo titular do bem objeto da ofensa, por certo, vários sentimentos, em especial de natureza psicológica, dentre eles um que o estimula à tomada de uma atitude, de um agir, que poderá ser de ponderação e conformismo com o ocorrido, assumindo e interiorizando, por conseguinte, os efeitos da ameaça ou lesão, ou então, não se conformando, poderá tomar a atitude de agir em busca de obter a reparação dos efeitos provocados pelo ato de lesão ou para obter o afastamento ou cessação da ameaça.
Para obtenção da reparação dos efeitos da lesão ou da cessação da ameaça, o ofendido buscará satisfazer a esse seu interesse mediante:
a) uso de suas próprias razões e forças (autotutela);
b) composição direta com o agente da lesão ou da ameaça; ou
c) postulação judicial.
A busca de solução do conflito mediante o emprego da própria razão ou força (autotutela) constitui ato, prática vedada no Ordenamento Jurídico Brasileiro (CP, art. 345),[2] restando, por conseguinte, a busca pela composição ou pela postulação judicial para que o titular do direito lesado possa suprir sua necessidade.
Ao tratar das necessidades do ser humano, em especial as de natureza psicológica, o Professor da Universidade de Iowa (USA), Johnmarshall Reeve (2006, pág. 67), observa que:
“Ao decidirmos o que fazer, queremos que haja opções e flexibilidade em nossa tomada de decisão. Desejamos ser pessoas que decidem o que fazer, quando fazer, como fazer, quando parar de fazer e mesmo que possam escolher se algo irá ser feito ou não. (omissis). Desejamos que nosso comportamento não esteja divorciado, mas sim conectado aos nossos desejos. Queremos que nosso comportamento surja e expresse nossas preferências e nossos desejos. E queremos ter a liberdade de construir nossos próprios objetivos, bem como a liberdade de decidir o que é importante, e o que vale e o que não vale o emprego de nosso tempo.”
Nesse sentido vale relembrar que a Constituição da República Federativa do Brasil, no caput do seu artigo 5º,[3] garante a todos a “inviolabilidade do direito à liberdade”, liberdade aqui em sentido geral, vez que quando em espécie, o texto constitucional, nesse mesmo artigo, assim as identificou, tal como fez com o direito à livre expressão de pensamento (IV),[4] com a liberdade de consciência e de crença (VI),[5] com a liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, etc. (IX)[6].
Ingo Wolfgang Sarlet e André Rufino do Vale (2013, pág. 219), ao comentarem a disposição do caput do art. 5º, da Constituição Federal, expendem que:
“Apesar das controvérsias em torno do significado do direito geral de liberdade, sua positivação em todas as Constituições brasileiras não tem sido objeto de contestação, podendo ser vista como uma vantagem institucional que tem o condão de reforçar a proteção das liberdades ao oferecer um apoio normativo sólido em nível constitucional.”
Desse modo observa-se que, dada a ocorrência da lesão ou da ameaça, o “fato” que impulsiona a ação/decisão de ingresso da postulação em juízo, pelo interessado, está na intimidade do lesado, está na sua interioridade, integra, enfim, o momento de elaboração de sua decisão por este ou aquele caminho, integra, em síntese, o momento de fruição do seu direito de liberdade.
Em decorrência disso, entende-se que a frase “O processo começa por iniciativa da parte ...”, constante do art. 2º, do CPC, tem o significado de reconhecimento e respeito a essa realidade, a esse momento de fruição da liberdade pelo interessado quanto a busca de solução segundo sua avaliação de foro íntimo, realidade essa que, inquestionavelmente, antecede ao início do processo.
Por conseguinte, entende-se que a frase “O processo começa por iniciativa da parte ...” tem como razão de ser, tem por fundamento a observância e respeito à garantia constitucional de “inviolabilidade do direito de liberdade”., o que antecede ao início do processo.
Os princípios da “inércia da jurisdição”, “da demanda” e “dispositivo”, decorrem de outras realidades e não da frase inicial constante da disposição do art. 2º, do CPC.
Entende-se que o princípio da “inércia da jurisdição” é ínsito à atividade do Poder Judiciário, vez que princípio que visa preservar a imparcialidade do magistrado, princípio que, portanto, tem por fundamento algo ínsito à atividade jurisdicional. O princípio da demanda, embora ligado ao quanto e o quê o interessado postula em juízo, trata-se de princípio ligado à atividade do interessado perante o Poder Judiciário e não antes disso, e, por fim, o princípio dispositivo tem por fundamento a possibilidade e faculdade do interessado, já em juízo, dispor de seus direitos.
I3 – Considerações finais.
Pelo quanto exposto, conclui-se que a frase “O processo começa por iniciativa da parte ...”; constante da primeira parte da disposição do artigo 2º do CPC/15; tem como razão de ser, tem como fundamento a observância, por esse normativo legal, à garantia constitucional “à inviolabilidade do direito à liberdade”, expressamente assegurada no caput do art. 5º. da Constituição Federal, isto porque, ingressar ou não em juízo, dar ou não início a um processo é realidade (decisão) ínsita às cogitações de foro íntimo e afeta à liberdade daquele que sofreu as consequências da ofensa ou ameaça.
Os princípios da inércia da jurisdição, da demanda e até mesmo do dispositivo têm, cada um deles, fundamento em realidades diversas daquela que expressa a disposição da frase inicial do art. 2º, do CPC/15 e, por conseguinte, essa frase não se presta a fundamentá-los.
Por fim, há de se reiterar que este entendimento, além de não ter a pretensão de esgotar o assunto, restringe-se ao processo civil individual e concernente às pessoas de direito privado, não se aprofundando quanto ao processo civil coletivo, processo penal e às pessoas de direito público que contam com peculiaridades quanto aos legitimados e à decisão de ingresso ou não em juízo, o quê, todavia, não significa que também não percorram uma realidade que antecede o começo, o início do processo, tal como aqui se expôs.
Referências:
DINAMARCO, Cândido Rangel. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Saraiva, 2018. v. I.
MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. 6ª ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Ed; RT, 2020.
CUNHA, Leonardo Carneiro da. Comentários ao artigo 2º. In: STRECK, Lênio Luiz; NUNES, Dierle (orgs.); FREIRE, Alexandre (coord. Exec.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Ed. Saraiva, 2016.
REEVE, Johnmarshall; Motivação e Emoção, 4ª edição, tradução de Luís Antônio Fajardo Pontes, Stella Machado; revisão técnica Maurício Canton Bastos Nei Gonçalves Calvano. Rio de Janeiro: Ed. LTC, 2006.
SARLET, Ingo Wolfgang e VALLE, André Rufino. Comentários ao artigo 5º, caput. In CANOTILHO, J.J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRCK, Lênio Luiz (Coordenadores). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.
NOTAS:
[1] Art. 2º O processo começa por iniciativa da parte e se desenvolve por impulso oficial, salvo as exceções previstas em lei.
[2] Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.
Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
[3] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[4] IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[5] VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
[6] IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Mestrando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Constitucional pela PUC/SP. Procurador do Estado de São Paulo (aposentado). Professor Universitário. Advogado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MENK, JOSÉ CARLOS. Artigo 2º do CPC/15 e a inviolabilidade do direito à liberdade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 maio 2022, 04:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58445/artigo-2-do-cpc-15-e-a-inviolabilidade-do-direito-liberdade. Acesso em: 25 dez 2024.
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