RESUMO: Visa a analisar, o presente trabalho, o instituto chamado “tutelas de urgência”, retomando às suas origens romana. Para tanto, discorrer-se-á acerca do Direito Processual Civil Romano e suas fases, detalhando cada instituto que remete ao tratamento das atuais tutelas provisórias, que desde o seu limiar buscavam uma melhor redistribuição dos ônus causados pelo decurso de grande lapso temporal até a resolução de demandas.
Palavras-chave: tutela de urgência, direito romano, origem das tutelas de urgência.
ABSTRACT: The present work aims to analyze the institute called “urgent guardianship”, returning to its Roman origins. In order to do so, the Roman Civil Procedural Law and its phases will be discussed, detailing each institute that refers to the treatment of the current provisional injunctions, which from its threshold sought a better redistribution of the burdens caused by the long lapse of time until the resolution of demands.
Keywords: urgent injunctions, Roman law, origin of urgent injunctions.
1. INTRODUÇÃO
A preocupação com os efeitos que o tempo pode causar ao processo é algo que se remete ao estudo do Direito Romano.
De lá se retiram técnicas de urgência que visavam tanto a conceder tutelas de natureza antecipada, como tutelas de cunho cautelar.
É importante ressaltar que essa divisão das técnicas existentes no direito romano entre tutela antecipada e tutela cautelar é feita aos olhos do processo civil atual, pois naquela época não se tinha essa classificação das tutelas de urgência.
Tinham-se, em verdade, mecanismos processuais e administrativos que, observados à luz do processo civil contemporâneo, assemelham-se à técnica antecipatória e à técnica cautelar.
O presente estudo visa justamente analisar o limiar das tutelas de urgência.
2. A origem romana das tutelas de urgência
De Roma extraem-se as seguintes técnicas: a dos interditos, do addictus, do nexus, da operis novi nunciato, a legis actio per sacramentum, a missio in possessionem e da cautio damni infecti. À luz do direito processual atual, a primeira técnica corresponde a uma técnica antecipatória, enquanto que as demais se assemelham às técnicas de cunho cautelar.
Para que se entenda melhor o que eram, de fato, essas técnicas de urgência, o seu procedimento, natureza jurídica, dentre outros aspectos, é substancial que se teçam algumas breves linhas sobre o processo civil romano, cuja análise será feita em três fases distintas: a da Legis Actiones, a per formulas e a Cognitio Extra Ordinem.
Esta primeira fase, a legis actiones, é o sistema processual mais antigo de Roma e disponibilizava meios processuais marcados pela tipicidade, rigidez, oralidade e formalismo.
O pontapé inicial do processo nessa fase era dado através da in ius vocatio, que se assemelha à citação da presente época. Todavia, diversamente do ocorrido contemporaneamente, quando é promovida pelo Magistrado por meio do mandado de citação, em Roma a citação deveria ser promovida por quem propõe a ação, o Autor.[1]
Caso o réu se recusasse a comparecer em juízo, deveria o Autor, com fundamento na Lei das XII Tábuas, acompanhado de testemunhas, conduzir o demandado até a presença do magistrado, ainda que usando da força bruta.
Ciente da demanda iniciava-se uma segunda etapa, chamada de in iure, na qual as partes, junto a um Magistrado Estatal, o Pretor (praetor), delimitavam os termos da controvérsia a ser decidida e solicitavam a nomeação de um Juízo Popular, o iudex.
Já perante este Juízo particular (iudex) a lide era instruída, sendo concedido a ambas as partes o direito de apresentar seus argumentos e produzir suas provas para que, em seguida, o iudex proferir sentença soberana.
O procedimento acima discorrido era traçado exclusivamente pela lei, sendo, portanto, numerus clausus, e tinha como uma de suas principais características a dualidade, uma vez que ocorrida perante dois juízos distintos: um primeiro, o estatal (praetor) e o segundo, nomeado pelo Pretor, o iudex, que julgava a lide soberanamente.[2]
Seu período de vigência foi, predominantemente, a época denominada pré-clássica ou arcaica do direito romano, porquanto prevaleceu desde a fundação legendária de Roma, ocorrida aproximadamente no ano 754 a.c., até a vigência da Lex Aebutia.[3]
A segunda fase do direito romano, a per formulas, resulta da reação ao exacerbado formalismo exigido na fase da legis actiones, somado a edição da Lex Aebutia e, posteriormente, da Lex Julia iudiciorum privatorum, que introduziram o processo formulário, resultando na decadência da primeira fase do Direito Processual Romano.
Gustavo Paim, valendo-se das palavras contidas nas Institutas de Gaio, livro 4, 30, demonstra, categoricamente, o porquê dessa transição da legis actiones para a fase da per formulas:
Todas essas ações da lei tornaram-se pouco a pouco odiosas. Pois, dada a extrema sutileza dos antigos fundadores do direito, chegou-se à situação de quem cometesse o menor erro, perder a causa. Por isso, aboliram-se as ações da lei pela Lei Ebúcia e pelas Leis Júlias, levando os processos a se realizarem por palavras fixas, i. e., por fórmulas. Admitem-se as ações da lei somente em dois casos: no da ação por dano iminente (damni infecti) e no das ações perante os tribunais dos centúmviros.[4]
Assim como na legis actiones, na per formulas o processo ocorria em duas fases distintas, sendo a primeira diante de um Juízo estatal (praetor), denominada de fase in iure, e a segunda junto a um juízo privado, chamada apud iudicem, na qual a lide era apreciada e julgada, sendo sempre proferidas sentenças condenatórias em pecúnia.
No entanto, difere da fase sucedida por ser menos formal, mais célere, ter uma maior atuação do magistrado, possuir condenação unicamente pecuniária e ter perdido o caráter estritamente oral, já que a fórmula se tratava de um documento escrito.[5]
O procedimento formulário tinha em sua primeira etapa, o in iure, cinco momentos distintos: a introdução da causa, a atuação das partes, redação da fórmula, nomeação do juiz e a litis contestatio[6].
Esse processo formulário predominou durante todo o período clássico do Direito Romano, sendo afastado, definitivamente, pela Constituição[7] dos Imperadores Constante e Constâncio (337 a 361 d.c), momento no qual passou a prevalecer no direito Romano a fase denominada Cognitio Extra Ordinem.[8]
Esta terceira fase do direito romano tem sua gênese amarrada a resolução de questões administrativas e policiais, coexistindo, no seu início, com o processo formulário.
Todavia, a sua extrema praticidade e celeridade fizeram com que esse novo procedimento passasse a ser utilizado na esfera cível, substituindo gradativamente a per formulas.
A predileção paulatina por esse sistema decorre da sua celeridade, porquanto o processo ocorria em apenas uma fase, perante o poder público, passando a existir, em razão disso, a possibilidade de interposição de recurso ao funcionário estatal hierarquicamente superior àquele que julgou à demanda.
Diferentemente das fases processuais sucedidas, nesta, a citação era promovida por ato do Juízo Estatal competente para julgar e processar a demanda, caso o réu fosse domiciliado em sua jurisdição, ou pelo juízo competente da jurisdição onde o réu reside, havendo, para tanto, requerimento realizado pelo Juízo que iria processar e julgar o litígio, assemelhando-se ao processo civil atual.
Admitia-se, excepcionalmente, que a citação fosse promovida pelo próprio autor da demanda, entretanto, era imprescindível que houvesse a aquiescência do magistrado.
Ocorrida à citação, as partes deveriam comparecer diante do magistrado para que fosse apresentada pelo autor a sua demanda e pelo réu a sua tese de defesa, acontecendo, posteriormente, a litis contestatio e a produção probatória, na qual se admitia todo e qualquer meio de prova, para, em seguida, ser proferida a sentença.[9]
Por fim, é importante destacar que a cognitio extra ordinem, como afirma sabiamente Moreira Alves, é o procedimento “que mais se aproxima do processo moderno. Isso, aliás, é perfeitamente aplicável tendo-se em vista que o processo moderno derivou, principalmente, do canônico, que, por sua vez, teve como fonte a cognitio extraordinária”.[10]
2.1 Os interditos Romanos
Os interditos romanos são uma técnica de urgência que, à luz da sistemática processual atual, assemelha-se à tutela antecipada. Na definição de Alexandre Correia, é “uma ordem que o magistrado, a pedido de um particular, dirige a outra pessoa, impondo-lhe determinado procedimento, i. é, fazer ou não fazer algo”.[11]
Para melhor compreensão dessa técnica interdital, será feita uma análise da sua origem, natureza jurídica, características, procedimento e distinções entre o interdictum e as ações.
2.1.1 O limiar dos interditos
Apesar de as fontes serem escassas, a doutrina converge no que concerne à época do surgimento dos interditos romanos, afirmando que a sua origem se remete ao período das legis actiones.[12]
Todavia, distanciam-se os estudiosos quando se aborda a utilização dos interditos, visto que alguns, sendo a maior referência Alessandro Sacchi, afirmam que eles eram utilizados para suprir as lacunas do vigente jus civille, com esteio no poder de império do praetor, outros, como Arnaldo Biscardi, aduzem que a sua utilização ultrapassa a mera supressão de lacunas, sendo utilizados na tutela de direitos previstos nas legis actiones.[13]
Destaca-se dentre os posicionamentos apresentados o defendido por Vittorio Scialoja, segundo o qual os interditos surgiram na fase final do período das legis actiones, sendo uma resposta à extrema formalidade e lentidão do processo naquela época, visando a garantir uma tutela mais célere dos diversos interesses, valendo-se, o magistrado, de uma cognição sumária da demanda.[14]
Mesmo diante de todo esse prognóstico apresentado, Maria Cristina Carmignani afirma, objetivamente, que:
É na época clássica – no período do processo formulário – que os interditos tiveram maior aplicação e desenvolvimento, em razão do trabalho criador do pretor, que os estendeu a toda e qualquer situação que reclamasse uma “tutela de urgência”, quer se tratasse de interesse público quer privado, tornando-o uma forma processual extra ordinem.[15]
Destarte, pode-se concluir que o surgimento da técnica interdital, que para a maioria se trata de uma técnica processual extra ordinem, remete-se ao período final das legis actiones, sendo uma resposta ao exacerbado formalismo e lentidão dessa fase, tendo atingido seu ápice durante à época do processo formulário.
2.1.2 Actio e interdictum: diferenças
Em boa parte das remotas fontes de estudo acerca desse tema, nota-se que a dicção “actio” era utilizada, também, significando interdictum, abarcando todas as medidas executadas diante do pretor, do iudex ou do tribunal.[16]
Entretanto, analisando-se mais a fundo, percebe-se que existem diferenças substanciais entre a actio e o interdictum.
A primeira delas é a de que nos interditos o pretor, valendo-se do seu poder de império, decidiria a demanda. Na actio o pretor apenas a organizava para, juntamente com as partes, nomear o iudex, tendo este o dever de apreciar e julgar a lide.
Outra diferença elementar entre os institutos ora abordados é que, como ensina Alexandre Correia, “o processo interdital, em princípio, não permitia o exame da existência ou inexistência de um direito entre as partes, mas procurava apenas manter o estado atual das coisas”. [17]
São diferentes, também, as cognições utilizadas pelo Juiz para decidir os interditos e as actios. Enquanto naquele o pretor valia-se de uma cognição sumária, sendo a decisão proferida provisória, neste, o iudex utilizava-se de uma cognição exauriente, sendo sua decisão soberana.
Sintetizando todas as diferenças acima elencadas, Maria Cristina Carmignani arremata:
A diferença substancial entre a actio romana e os interditos era procedimental, sendo que na primeira (a) seguia-se o rito comum, ordinário, bifásico, sendo sua decisão definitiva e, no segundo, (b) um rito sumário, mais célere, realizado somente in iure, cuja decisão fundava-se em um juízo de verossimilhança e probabilidade das alegações do autor e, por isso mesmo, era provisória.[18]
Desse modo, vê-se que se está diante de institutos com procedimentos, hipóteses de aplicabilidade e cognições diferentes, não podendo, portanto, serem confundidos.
2.1.3 Natureza jurídica dos interditos
Estudado o surgimento dos interditos e feitas algumas distinções entre ele e a actio, passa-se a analisar a sua natureza jurídica.
Esta, possivelmente, é a discussão mais exaltante acerca da técnica interdital, porquanto não há unicidade em sede doutrinária se o interdictum possuía natureza administrativa ou jurisdicional, existindo estudiosos com opiniões apontando nas duas direções.
Os que afirmam que os interditos possuem natureza administrativa, esteiam seu posicionamento no fato de que a ordem emitida pelo pretor é fundada no seu poder de império, possuindo caráter jurisdicional somente quando há descumprimento da ordem e posterior ajuizamento da actio ex interdicto.[19]
Confluindo com essa primeira linha de pensamento, Arnaldo Biscardi afirma que:
O interdito é, notadamente, um ato de imperium do magistrado privado, voltado à tutela de relações jurídicas diversas, que se traduzia em um comando especifico, hipoteticamente formulado, cujo decreto conclusivo é considerado ato administrativo e não jurisdicional, porque transcende o escopo da jurisdição romana.[20]
Nesse mesmo toar, Alexandre Correia e Gaetano Sciascia, ao conceituarem os interditos, afirmam que a sua natureza é eminentemente administrativa:
Os interditos constituem um meio para garantir, com processo rápido, a proteção jurídica; tem caráter administrativo e visam manter as coisas no estado em que se achem tutelando assim a ordem pública e a paz social. O interdictum consta de uma ordem que o magistrado, a pedido dum particular, dirige a outra pessoa, impondo-lhe determinado procedimento, i. é, fazer ou não fazer algo.[21]
Convergindo com esse posicionamento, Mario Bretone afirma que os interditos se tratavam de “ordens pretorianas de natureza administrativa” que determinavam “a exibição de coisas ou de pessoas, ou a restituição de coisas e a destruição de obras, ou a abstenção de determinados atos”. [22]
Em sentido diverso, Gian Carlo Messa aduz que “desde o início o procedimento interdital possuía caráter de procedimento judiciário, posto que tinha por objeto controvérsia de índole jurídica entre privados e tratava principalmente de interesses privados”. [23]
Harmonizando com o posicionamento de Messa, pode-se destacar a opinião de Giuseppe Gandolfi, para quem os interditos tinham natureza jurisdicional e pública. [24]
Abraçando esse segundo posicionamento, incisivos são os argumentos de Gustavo Bohrer Paim ao afirmar que:
Grande parcela dessa atribuição de natureza administrativa aos interditos decorreu da discricionariedade que o pretor romano exercitava na iurisdictio, seja quando negava, seja quando concedia a tutela jurídica contra ou além do ius civile. No entanto, o poder integrava a iurisdictio do pretor e o seu específico imperium, e não era “alguma coisa emprestada ou concedida a ele por alguma lei”. Assim, “a discricionariedade imanente da iurisdictio não significava arbítrio, senão faculdade de avaliar e medir a conveniência de determinado provimento jurisdicional a determinado fim de tutela jurídica”. Percebesse, pois, que o poder de império do pretor encontrava seu fundamento no ordenamento jurídico, razão pela qual não se devia falar em arbitrariedade, até mesmo porque não se podia limitar o poder jurisdicional à mera declaração do texto positivado da lei, pois o ius dicere era mais do que aplicação do direito, era atividade criadora.[25]
Desfecha o mencionado autor aduzindo que:
Considerar os interditos como atividade administrativa, tendo em vista que não declaravam direitos, mas sim preveniam danos, traziam ordens, faziam juízos sumários e com base em verossimilhança, não se coaduna com uma visão moderna do direito, em que se percebe um sincretismo processual, permitindo-se cognição e execução em uma mesma relação processual, admitindo-se juízos sumários e com base na verossimilhança, a demonstrar que os interditos romanos, especialmente com os olhos da modernidade, possuíam sim uma natureza jurisdicional, calcada na efetividade e na sumariedade. [26]
Em que pese os acirrados embates existentes até os dias de hoje acerca da natureza jurídica dos interditos, respeitando-se ambas as linhas de posicionamento, predomina, doutrinariamente, a tese defendida por Biscardi, Alexandre Correia e Gaetano, no sentido de que o interdictum possuía natureza administrativa.
Isso porque, como explicitado na parte concernente à sistemática do direito processual civil romano, no sistema da Ordo iudiciorum privatorum, que abarcou as duas primeiras fases do Direito Processual Civil Romano, a legis actiones e a per formulas, a iurisdictio[27] romana atribuía ao praetor na fase in iure, exclusivamente, o poder de organizar o litígio e remeter as partes ao iudex.
Dessa maneira, uma ordem interdital proferida pelo pretor que, como dito acima, possuía, apenas, poderes para sistematizar a demanda e nomear o iudex, não pode, de modo algum, encaixar-se nos poderes ímpares da iurisdictio romana, sobejando, somente, liga-los como resultado do poder de império do pretor, razão pela qual prevalece a ideia de que se trata de uma ordem administrativa.[28]
Por derradeiro, é relevante enaltecer as ponderações feitas por Maria Carmignani, ao afirmar que, chegado o período da extraordinário cognitio, que, consoante destacou José Carlos Moreira Alves, “é o que mais se aproxima do processo moderno” [29], no qual todo processo passava-se diante de um único magistrado, pode-se emoldar os interditos como sendo de natureza jurídica jurisdicional, contudo, anteriormente a esse momento, a natureza jurídica dos interditos é eminentemente administrativa. [30]
2.1.4 O procedimento da interdictum e suas características
Antes de dissecar estritamente o procedimento da interdictum, é imprescindível que se tenha uma ideia pré-constituída: a ordem interdital, observada à luz da sistemática processual contemporânea, assemelha-se à tutela antecipada, uma vez que o pretor, valendo-se de uma cognição sumária, antecipava o que possivelmente seria concedido na actio ex causa interdicto.[31]
Feita esta ressalva, parte-se à análise procedimental da técnica interdital.
O processo interdital tinha início com a postulatio interdicti, que nada mais era do que um pedido feito pessoalmente e oralmente pelo autor dirigido ao praetor com desiderato de obter a procedência de um interdito.[32]
Discute-se na doutrina a substancialidade da presença de ambas as partes para que o interdito fosse emanado, afirmando, Arnaldo Biscardi, fundamentado em texto de Gaio, “que a pronúncia interdital podia ocorrer mesmo na contumácia do destinatário e resultava na missio in bona[33] a favor do denunciante” [34]. Em outras palavras, a concessão da ordem interdital poderia ocorrer mesmo sem a presença do demandado.
Todavia, caso o réu estivesse presente ele poderia questionar a existência das razões do edital do interdito, valendo-se do instrumento de defesa denominado exceptio.
Instalado o processo, o pretor, responsável por apreciar e julgar o interdito, poderia conceder ou não a ordem interdital, valendo-se de um juízo de cognição sumária.
Caso o praetor entendesse infundado o conteúdo da exceptio, deveria denega-la de imediato. Entendendo de modo diverso, denegaria o interdictum. Poderia, na hipótese de a defesa não conseguir atestar o desejado e a pretensão autoral fosse verossímil, conceder a ordem interdital delegando ao iudex a realização de um exame probatório mais detalhado.
O pretor tinha a faculdade, ainda, de analisando sumariamente as peculiaridades do caso, conceder um interdito diverso do requerido pelo autor, entretanto, que estivesse previsto no edito[35].
Sendo observada a ordem interdital por ambas as partes, restaria encerrada a demanda. Contudo, em não existindo obediência ao comando interdital, deveria o interessado, que sempre seria o autor, propor uma actio ex interdito.
Esta tratava-se de uma ação que tinha o objetivo de reavaliar a existência dos requisitos do interdito anteriormente concedido, podendo, o seu procedimento, variar de acordo com a natureza dos interditos.
Sendo o interdito de natureza proibitória, que são aqueles em que o pretor determinava que a parte se abstivesse de algo, agia-se unicamente de maneira per sponsionem, ou seja, pela segurança; em se tratando de interditos de natureza restitutória e exibitória, que são aqueles em que o magistrado ordena a execução de um ato (restituir ou exibir), agia-se por uma fórmula arbitrária, ou seja, uma fórmula que fosse julgada como adequada para o caso concreto, não se excluindo a possibilidade de se agir pela segurança.[36]
Dando seguimento ao procedimento interdital, tendo sido nomeado um árbitro após o descumprimento do interdictum emanado pelo pretor, redigia-se uma fórmula que deveria prever uma cláusula arbitrária determinando a restituição ou exibição da coisa e que pusesse a condenação em segundo plano.
Sendo cumprida a nova ordem, dava-se termo ao processo. Havendo novo desatendimento, haveria a condenação ao pagamento de uma quantia em pecúnia que deveria equivaler ao valor da coisa.
Poderia ocorrer a hipótese de o demandado não requerer a fórmula arbitrária, tampouco cumprir a ordem interdital, situação que sujeitava a parte a ser chamada novamente em juízo para que fosse atestado o descumprimento do interdictum.
Para concluir, deve-se destacar que a decisão proferida na actio ex interdictum era definitiva, porquanto era pronunciada através da realização de um juízo de cognição exauriente. Fazendo um paralelo com o direito processual atual, pode-se entender que a decisão proferida na actio ex interdictum seria alcançada pela coisa julgada, sendo, portanto, definitiva.[37]
Do procedimento descrito acima se retiram diversas semelhanças com a tutela antecipada contemporânea, como o fato de o pretor vale-se de um juízo de cognição sumária para conceder a ordem interdial, sua provisoriedade, o fato de que o interdito não acautela outro direito, mas sim concede, de maneira mais célere, à parte interessada o que ela apenas obteria por meio da actio, e etc., razão pelo qual se aponta que a tutela antecipada teve sua remota origem nos interditos romanos.
2.2 As medidas de urgência de cunho cautelar no direito romano
Além da técnica interdital, que muito se assemelha à tutela antecipada do direito processual moderno, o Direito Processual Civil Romano trazia medidas de urgência que, observadas a partir do direito processual contemporâneo, aproximam-se das medidas cautelares.
A primeira delas, que se remete à época da Lei das XII Tábuas (450 a.c), é o addictus. Prevista na tábua três, que versava acerca dos devedores que confessaram a dívida, o addictus tratava-se de uma medida em que o devedor, por ordem do magistrado, deveria servir como garantia de satisfação do crédito, devendo ficar confinado em prisão privada administrada pelo credo pelo prazo de até sessenta dias.[38]
Caso o inadimplemento persistisse, a medida cautelar convertia-se em executiva, podendo o devedor ser vendido, escravizado, ou até morto.
Não se observa, no processo civil atual, medida de cunho similar ao addictus, uma vez que a evolução das legislações afastou esse tipo de responsabilidade dos devedores, respondendo, em situações de inadimplemento, apenas os seus bens e não mais o seu corpo.
Consta, ainda, na Lei das XII Tábuas, o nexus. Neste o devedor estendia-se voluntariamente ao credor para, por meio de prestação de serviços, quitar o seu débito, sendo liberado após essa prestação.
Além das medidas acima apontadas, durante o período das legis actiones tem-se notícia de outras medidas de urgência: a legis actio per sacramentum, a operis novi nunciatio, a cautio damni infecti e a missio in possessionem.
José Eduardo Carreira Alvim afirma que a legis actio per sacramentum correspondia a um depósito que ambas as partes faziam em juízo. Aquele que perdesse a demanda perderia também o montante depositado.[39]
Já a operis novi nunciatio servia para “impedir que o vizinho, com a construção de uma obra nova, pudesse de alguma maneira evitar o curso natural da água” [40], acontecendo em dois momentos distintos: um primeiro, extrajudicial, no qual o prejudicado deveria intimar o vizinho para que este interrompesse com a obra que vem lhe causando prejuízos; e uma segunda judicial, na qual o pretor, valendo-se do seu poder de império, de alguma maneira determinasse a interrupção da obra.
Assemelha-se a abordada medida de urgência à ação de nunciação de obra nova do processual civil atual, que se trata de um mecanismo processual pelo qual o proprietário ou possuidor de um terreno pode acionar judicialmente o titular de um imóvel em reforma que esteja prejudicando o seu prédio.
A cautio damni infecti, por sua vez, tratava-se de uma garantia que o proprietário de uma construção em ruínas ou em reforma dava ao possível lesado acaso suas reformas ou ruínas viessem a atingir do imóvel do vizinho.[41]
Sinônimo a essa medida de urgência existe, atualmente, a ação de dano infecto, que se funda nos arts. 1.280 e 1.821 do Código Civil. Por meio desta o autor (proprietário do prédio ameaçado) visa a obter do dono do prédio vizinho a demolição, reparação ou caução pelo dano iminente que o seu prédio está causando.
A missio in possessionem se tratava de um sequestro da coisa litigiosa, que seria entregue a terceiro equidistante com deveres e poderes similares a de um depositário enquanto a demanda pendia.[42]
Nota-se que suas remotas origens as tutelas de cunho cautelar tinham sempre o intuito de resguardar questões obrigacionais e atinentes aos direitos reais, sendo que muitas delas possuem similares no processo civil atual.
Todas essas medidas de urgência de cunho cautelar visavam a garantir a atuação da tutela concedida pelo ius civile, de modo que o seu surgimento se liga à garantia do direito material.[43]
CONCLUSÕES
Percebe-se, com o presente estudo, que a preocupação com os ônus que a demora da marcha processual pode acarretar remetem ao estudo do Direito Romano, onde se situa a origem das tutelas provisórias, ainda que com caráter substancialmente diferente do atual, mas como objetivos em comum.
A melhor distribuição dos ônus pela demora do processo é imprescindível para garantir o princípio constitucional da razoável duração do processo, pois se somente uma parte arcasse com os encargos da marcha processual, se tornaria demasiadamente conveniente a parte adversa protelar o curso da marcha processual a todo custo.
Verifica-se, assim, que a tutela provisória relaciona-se também com o devido processo legal, pois não há de se considerar hígido um processo que acarrete, indevidamente, ônus unicamente a uma parte.
REFERÊNCIAS
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[1] ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 205.
[2] PAIM. Gustavo Bohrer. Breves notas sobre o Processo Civil Romano. (s.l,), 2011. Disponível em: <http://www.temasatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/50-v1-n3-setembro-de-2011/144-breves-notas-sobre-o-processo-civil-romano>. Acesso em 05/01/2017.
[3] Idem.
[4] Ibidem.
[5] ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 219.
[6] Entendia-se por litis contestatio o momento em que as partes, juntamente com o Juízo estatal (pretor), fixavam o tema a ser decidido.
[7] Em se tratando do Império Romano, compreenda-se por constituição como um conjunto de regras, princípios e diretrizes exercidos de fato, que não estavam totalmente escritos, ou seja, não estavam compilados em uma Carta, como se vislumbra atualmente, mas eram praticados de fato pelos imperadores romanos, com exercício de poderes e direitos, e transmitidos através de precedentes.
[8] MIRANDA FILHO, Juventino Gomes de. O caráter interdital da tutela antecipada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 140.
[9] PAIM. Gustavo Bohrer. Breves notas sobre o Processo Civil Romano. (s.l,), 2011. Disponível em: <http://www.temasatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/50-v1-n3-setembro-de-2011/144-breves-notas-sobre-o-processo-civil-romano>. Acesso em 05/01/2017.
[10] ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 255.
[11] CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 88.
[12] CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 31 e 32.
[13] BISCARDI apud CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 32
[14] SCIALOJA apud CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 32.
[15] CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p.33.
[16] Idem, p. 33.
[17] CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988. p. 88.
[18] CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 35.
[19] Idem, p. 35.
[20] BISCARDI apud CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo. LTr, 2001, p. 35.
[21] CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988, p. 88.
[22] BRETONE, Mario. História do direito romano. Trad. Isabel Teresa Santos e Hossein Seddighzadeh Shooja. Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p. 109.
[23] MESSA apud CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 37.
[24] GANDOLFI apud CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 37.
[25] PAIM. Gustavo Bohrer. Breves notas sobre o Processo Civil Romano. (s.l,), 2011. Disponível em: <http://www.temasatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/50-v1-n3-setembro-de-2011/144-breves-notas-sobre-o-processo-civil-romano>. Acesso em 05/01/2017.
[26] Ibidem.
[27] Entenda-se iurisdictio como “jurisdição”.
[28] CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr. 2001, p. 37.
[29] ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 255.
[30] CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 37.
[31] Ibidem, p. 40-45.
[32] PAIM. Gustavo Bohrer. Breves notas sobre o Processo Civil Romano. (s.l,), 2011. Disponível em: <http://www.temasatuaisprocessocivil.com.br/edicoes-anteriores/50-v1-n3-setembro-de-2011/144-breves-notas-sobre-o-processo-civil-romano>. Acesso em 05/01/2017.
[33] É a imissão na posse dos bens do devedor, de maneira a incentivar que o devedor pague a sua dívida.
[34] CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 44 – 46.
[35] Entenda-se por edito como sendo conjunto de normas e princípios criados pelo pretor que deveriam orientar a sua gestão. O edito valeria pelo prazo de um ano, quando haveria a substituição do pretor, entretanto, na prática, havia, via de regra, a manutenção dos editos pelos pretores sucessores, com pontuais alterações.
[36] CARMIGNANI, Maria Cristina da Silva. A origem romana da tutela antecipada. São Paulo: LTr, 2001, p. 47 – 49.
[37] Ibidem, p. 48.
[38] CRUZ, André Luiz Vinhas da. A evolução história das tutelas de urgência: breves notas de Roma à Idade Média. (s.l) (s.d). Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/26238-26240-1-PB.pdf>. Acesso em: 23 de abril de 2017.
[39] CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Teoria Geral do Processo. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 116.
[40] RIBEIRO, Darci Guimarães. Aspectos relevantes da teoria geral da ação cautelar inominada. (s.l) (s.a). Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/jspui/bitstream/2011/22822/aspectos_relevantes_teoria_geral_acao.pdf>. Acesso em: 23 de abril de 2017.
[41] ROLIM, Luiz Antônio. Instituições do direito romano. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 202.
[42] BAPTISTA apud CRUZ, André Luiz Vinhas da. A evolução história das tutelas de urgência: breves notas de Roma à Idade Média. (s.l) (s.d). Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/26238-26240-1-PB.pdf>. Acesso em: 23 de abril de 2017.
[43] CRUZ, André Luiz Vinhas da. A evolução história das tutelas de urgência: breves notas de Roma à Idade Média. (s.l) (s.d). Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/anexos/26238-26240-1-PB.pdf>. Acesso em: 23 de abril de 2017.
Pós-Graduado em Direito Público e em Direito Processual pelo Instituto Elpídio Donizetti.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOTA, Diego Souza Carvalho. A origem das tutelas de urgência no Direito Romano Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jun 2022, 04:18. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58706/a-origem-das-tutelas-de-urgncia-no-direito-romano. Acesso em: 23 dez 2024.
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