INTRODUÇÃO
Há vários motivos para permitir o trânsito de pessoas de um país para outro. À criança, no entanto, deve sempre ser resguardado o melhor interesse, de modo que todo o aparato jurídico - tanto o internacional quanto os nacionais de cada país - deve prezar por sua segurança e integridade, fazendo com que seja estabelecida junto à família no lugar que melhor garanta a proteção dos seus direitos, sendo este a sua residência habitual, sem prejuízo de deslocamentos para visitas, lazer ou em razão de guarda compartilhada.
É em tal contexto que se conceitua a subtração (ou “sequestro”) internacional de menores, consistente no ato de transferência ou retenção ilícita da criança em país diferente daquele em que detinha residência habitual sem o consentimento de um dos genitores, dos responsáveis legais ou autorização judicial (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA).
Por um longo período, franquear o retorno de uma criança ao país do qual fora subtraída consistia em uma corrida de inúmeros obstáculos. Com a Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, é nítido que houve um encurtamento desse caminho. Por outro lado, o número de casos de sequestro internacional não se tornou, de um dia para o outro, inexpressivo no mundo.
Em território brasileiro, a Autoridade Central Administrativa Federal para Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes, do Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (ACAF/DRCI/SNJ) terminou 2018 com aumento na quantidade de pedidos de cooperação jurídica internacional para retorno de crianças indevidamente subtraídas de seus países de residência habitual ou impedidas de ter contato com um ou mais membros de suas famílias em relação ao ano de 2017 (ACAF, 2019).
Pelos motivos acima, este estudo visa analisar, a partir das decisões no emblemático caso Sean Goldman, envolvendo as jurisdições do Brasil e dos Estados Unidos, a postura dos tribunais brasileiros diante da Convenção de Haia sobre sequestro de menores, sobretudo tendo em vista que, na ocasião, recaiu sobre o Brasil a pecha de país pouco cooperativo no que diz respeito ao cumprimento da Convenção.
Merece destaque que a opção pelo caso de Sean se deu em razão de sua ampla midiatização, de modo que, apesar de envolver questões comumente mantidas em segredo de justiça, é possível analisar seus pormenores, uma vez que a divulgação de tais questões deu-se de forma maciça.
Para alcançar o objetivo a que este escrito se presta, foi utilizado o método de abordagem dedutivo, aliado ao método de procedimento do estudo de caso (MARCONI; LAKATOS, 2010, p. 204). No que concerne à pesquisa feita sobre o tema, esta foi de natureza dogmática, buscando conciliar investigação legislativa, doutrinária e jurisprudencial, de forma a compreender as repercussões da Convenção de Haia de 1980 no Brasil.
A estrutura do artigo engloba duas seções. A primeira delas trata da evolução da proteção da criança no âmbito internacional, que culmina na Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, bem como acerca dos dissensos que tal diploma internacional encontra quando de sua aplicação no Brasil.
Na última parte do estudo, é tratado propriamente do caso Sean Goldman, assim denominado em razão da história de Sean, filho de norte-americano com brasileira nascido em Nova Jersey, local que também constituía domicílio conjugal de seus pais.
Por fim, ressalta-se que, como bibliografia básica para o presente estudo, foram utilizados os apontamentos de doutrinadores como Basso (2019) e Del’Olmo (2015), bem como trabalhos acadêmicos amplamente disponibilizados na internet.
1. EVOLUÇÃO DA PROTEÇÃO DA CRIANÇA NO ÂMBITO INTERNACIONAL
Antes de adentrar aos aspectos principais da Convenção sobre os Aspectos Civis da Subtração Internacional de Crianças, é oportuno salientar que o cenário internacional percorreu um longo caminho, repleto de normativas atinentes ao direito das crianças e dos adolescentes. Tais avanços levaram em conta a condição de pessoa em desenvolvimento e de sua extrema vulnerabilidade, nos termos de uma proteção jurídica calcada na igualdade material.
Com efeito, a “Declaração dos Direitos da Criança”, de Genebra, foi aprovada pela então Assembleia Geral da Liga das Nações, em 1924, iniciando as tratativas sobre a necessidade de manutenção material e espiritual da criança (DEL’OLMO, 2015, p. 742). Inspirando-se nessa declaração, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em 1946, acolheu uma recomendação no sentido de que a referida Declaração de Genebra "deveria, tanto quanto em 1924, obrigar os povos hoje em dia". Desta feita, com redação final pelo Comitê Social, Humanitário e Cultural da Assembleia Geral, foi aprovada a Declaração em 1959, com a presença dos 78 países membros, sem votos dissidentes (UNICEF, 2007).
Ato contínuo, no ano de 1979, foi realizada a “Proclamação do Ano da Criança”, quando a Polônia sugeriu que fosse feito um tratado internacional que transformasse em termos jurídicos os princípios da Declaração de 1959 (tais como os benefícios à Previdência Social, direito a um nome e à nacionalidade, direito à habitação e à assistência médica), uma vez que a referida normativa representava tão somente uma recomendação para os países (DEL’OLMO, 2015, p. 742).
Finalmente, em 1989, foi promulgada a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, tendo entrado em vigor em 1990. Vale ressaltar a adesão pioneira do Brasil, dentre os países latino-americanos, à esta Convenção, por meio do Decreto 99.710/90 (MACHADO; MELLO, 2015, p. 22), sendo a mais ratificada de toda a história, com a adesão de 196 países (MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2019).
A aludida Convenção inspirou o artigo 227[1] da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), além de ter servido à criação de um novo sistema de de proteção integral, por meio do Estatuto da Criança do Adolescente, que regula a concepção do jovem sujeito de direitos. O ECA se norteia pelo melhor interesse das pessoas em desenvolvimento, que é um princípio jurídico fundamental de interpretação, desenvolvido para limitar a extensão da autoridade do adulto sobre a criança (além dos pais, profissionais, professores, médicos, juízes, dentre outros) (VENDRUSCOLO, 2011, p. 65).
Sobre o objeto de estudo que aqui procura ser apresentado, qual seja, o sequestro internacional de crianças, pode-se dizer que, antes da Convenção de Haia - a qual será melhor detalhada a seguir -, recuperar um filho que havia sido levado para outro país dependia de longo processo com inúmeros obstáculos à celeridade e à regularidade do feito. Isto porque, caso o paradeiro da criança fosse conhecido pelo genitor, este deveria ajuizar ação perante a Justiça local, iniciando-se a averiguação do estado em que se encontrava a criança, que, muitas vezes, resultava em uma decisão negativa ao seu retorno, mesmo que as circunstâncias do seu deslocamento fossem irregulares (DEL’OLMO, 2015, p. 774-775).
Antes de a referida Convenção vigorar no País, o Brasil já era parte da Convenção Interamericana sobre Restituição Internacional de Menores, concluída em Montevidéu, em 1989, no âmbito da 3ª Conferência de Direito Internacional Privado da OEA[2]. De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, não há supremacia da mencionada Convenção Interamericana em relação à Convenção de Haia, porém, esta é a mais utilizada, seja pelo número superior de Estados signatários, seja pela maior clareza em sua aplicação no Judiciário brasileiro (DEL’OLMO, 2015, p. 774-775).
Desse modo, é possível afirmar que a Convenção de Haia sobre o sequestro internacional de crianças representa um divisor de águas no direito internacional, tendo aplicação até serem atingidos os 16 anos do adolescente, consoante o artigo 4º do instrumento normativo (BRASIL, 2000). Assim como as normativas aqui mencionadas, a Convenção de Haia também possui como objetivo a garantia de direitos dos menores de idade, visando ao seu bem-estar e proteção especial.
A referida Convenção é um fórum de Direito Internacional Privado, que busca a uniformização dos direitos das crianças, da família e das relações de Direito Internacional Privado, sendo o Brasil membro participante da Conferência, no tocante à convenção de sequestro de crianças, desde o ano 2000 (LOGRADO, 2013, p. 10).
Empregado erroneamente na tradução brasileira da Convenção, o termo “sequestro” pode levar a confusões, em especial se considerado o Código Penal, em seu artigo 148. Não se trata, propriamente, de “sequestro” internacional de crianças, senão de transferência ilegal de crianças de seu país de residência habitual para outro e/ou sua retenção indevida em outro país. Não se intentou, assim, equiparar os subtraentes como autores de crimes bárbaros. Até mesmo porque, o título da Convenção, em inglês, não se refere a “sequestro”, mas à subtração (abduction) de menores de idade (MAZZUOLI, 2017, p. 408).
Em virtude dos naturais conflitos de transferência ou retenção para outro Estado por um dos genitores, a Convenção de Haia garante que o genitor que teve seu filho sequestrado e a criança tenham seus direitos resguardados. Dolinger afirma que se trata de uma cooperação processual, em que as autoridades de duas jurisdições mantêm uma coordenação de caráter permanente, por meio de suas autoridades centrais. Toda vez que ocorrer deslocamento ou manutenção ilegal de uma criança, serão as autoridades solicitadas a prestar assistência, com várias medidas possíveis, como a restituição voluntária ou solução amigável entre os genitores, segundo preveem os artigos 6º[3] e 7º[4] da Convenção (DOLINGER, 2003, p. 245-246 apud LOGRADO, 2013, p. 12).
Desse modo, tal instrumento não pretende normatizar matérias atinentes à guarda e à custódia, as quais serão baseadas na lei interna do Estado de residência habitual da criança ou na lei designada pelas normas de conflito do respectivo Estado. Sua natureza é, assim, de norma-quadro de cooperação jurídica internacional, já que estabelece obrigações recíprocas entre os Estados-Partes, com o objetivo de: localizar a criança subtraída, avaliar a situação em que se encontra e, caso não incida uma das hipóteses de exceção ao retorno da criança, como será visto, restituí-la ao seu país de residência habitual (DEL’OLMO, 2015, p. 747).
O meio de cooperação jurídica internacional utilizado para aplicar no País a Convenção é o auxílio direto, competindo ao juízo nacional decidir sobre a ocorrência da ilicitude da transferência ou retenção, destinado ao intercâmbio entre órgãos judiciais e administrativos de diferentes Estados. Assim, independe de carta rogatória ou homologação de sentença estrangeira, toda vez que forem postulados atos sem conteúdo jurisdicional de autoridades nacionais (DEL’OLMO, 2015, p. 747).
Nessa senda, é possível afirmar que a Convenção tem dois objetivos bem definidos, previstos em seu artigo 1º: a) assegurar o retorno imediato de crianças ilicitamente transferidas para qualquer Estado-contratante ou nele retidas indevidamente; e b) fazer respeitar de maneira efetiva nos outros Estados-contratantes os direitos de guarda e de visita existentes num Estado-contratante. Desse modo, o instrumento visa proteger as crianças dos efeitos nocivos de sua subtração e retenção para além dos limites de um Estado, prevendo mecanismos para o seu retorno imediato ao país de residência habitual (MAZZUOLI, 2017, p. 407).
Assim, evita-se que a criança venha a sofrer prejuízos advindos de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas, além de serem estabelecidos procedimentos que asseguram o retorno imediato ao país da residência habitual do sequestrado. Impede-se, nesse sentido, que haja a quebra de vínculos familiares por decisões unilaterais de um dos genitores (DEL’OLMO, 2015, p. 746).
Nessa perspectiva, a Convenção prevê que há duas hipóteses a serem consideradas para classificar como ilícita a retenção ou subtração, em seu artigo 3º: (a) violação ao direito de guarda de pessoa, instituição ou qualquer outro organismo, individual ou conjuntamente, pela lei do Estado onde a criança tivesse sua residência habitual imediatamente antes de sua transferência ou retenção; e (b) esse direito estivesse sendo exercido de maneira efetiva, individual ou conjuntamente, no momento da transferência ou da retenção, ou devesse está-lo sendo se tais acontecimentos não tivessem ocorrido (BRASIL, 2000).
Pela redação, nota-se que foi adotado o princípio da residência habitual, havendo preferência por um termo que fosse eminentemente prático, já que o conceito de domicílio, utilizado pelas legislações de vários Estados, entre os quais o Brasil, para fixação da competência jurisdicional internacional, é um conceito que pode gerar maior polêmica. A Convenção, no entanto, omite-se acerca do conceito de residência habitual (MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2019).
O Código Civil brasileiro optou pelo conceito de domicílio como o local irradiador dos direitos relativos ao Estado e à personalidade, definindo-o como o lugar em que a pessoa natural estabelece a sua residência com ânimo definitivo, como dispõe o art. 70. O CC/2002 também afirma, no artigo 76, que os menores de idade possuem domicílio necessário, sendo este o mesmo dos seus pais ou representantes (BRASIL, 2002).
Apesar de o Brasil adotar esse conceito de domicílio, o que pode sugerir um distanciamento do princípio da residência habitual, Messere entende que o conceito de residência habitual é simples e não-técnico, que deve ser aplicado aos fatos trazidos a conhecimento do intérprete, sem os inconvenientes do conceito jurídico de domicílio. Também se relaciona ao tempo, pois é empregado ora em relação a um intervalo de tempo, como quando se avalia o decurso de um ano de residência habitual em determinado Estado, ora em relação a um determinado instante de tempo, como quando se procura esclarecer se havia residência habitual no instante em que a criança foi transferida do Estado requerente (MESSERE, 2005, p. 92-93 apud LOGRADO, 2013, p. 15).
Em uma concepção que busca evitar polêmicas entre as nomenclaturas (residência e domicílio) dos países signatários da Convenção, Del’Olmo entende que se optou pela praticidade, determinando-se como elemento de conexão, para a análise do pedido de cooperação jurídica internacional, a residência habitual, ou seja, o local onde a criança/adolescente estava morando antes de ocorrer a transferência ou retenção irregular. Isto porque existem vínculos mais fortes com o local de residência habitual, onde se situa a sua escola e onde a criança se familiariza com diferentes aspectos locais, como língua, cultura e sociedade (DEL’OLMO, 2015, p. 747-748).
O artigo 13 prevê exceções ao princípio do retorno imediato, como a ausência do direito de guarda; risco grave de perigos com a volta ou de situação intolerável; ou se a criança já atingiu idade e grau de maturidade apropriados. O artigo 20, por sua vez, prevê que o retorno da criança pode ser recusado quando não for compatível com os princípios fundamentais do Estado requerido com relação à proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais (BRASIL, 2000).
Nesse ponto, destaca-se que alguns defendem que a função primordial da Convenção de Haia é coibir o sequestro internacional, interpretando de maneira restritiva as exceções ao retorno imediato. Por outro lado, há aqueles que afirmam ser o objetivo primordial da Convenção de Haia resguardar o melhor interesse da criança, daí por que sua aplicação deve ser reduzida às hipóteses em que ficar demonstrado que o melhor para a criança é o seu retorno (BASSO, 2019, p. 282).
Para Basso, o retorno do menor de idade (ao país onde a família teve no passado sua residência) raramente é o melhor para a criança, devendo-se atentar para o fato de que, mesmo os defensores da primeira corrente entendem pela aplicação irrestrita da Convenção, especialmente nos casos em que a criança fica privada do convívio do genitor responsável pelos cuidados diários quando do retorno ao país do qual a criança foi subtraída (BASSO, 2019, p. 282).
No Brasil, a Convenção de Haia sobre Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças somente entrou em vigor a partir do ano 2000, através do Decreto nº 3.413/2000 (BRASIL, 2000).
Conforme destaca Basso (2019, p. 285), a aplicação da Convenção de Haia, no Brasil, é tema que gera bastante dissenso, tendo em vista a conformidade ou não de seus dispositivos com os princípios constitucionais brasileiros. Como exemplo da discordância em relação ao tema em território brasileiro, tem-se a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4245 (ADI/4245)[5], impetrada em 2009 pelo partido político Democratas, visando à declaração parcial de inconstitucionalidade dos arts. 1º “a”; 3º; 7º, caput e alínea “f”; 11; 12; 13, “b”; 15; 16; 17; 18 e 21 da Convenção de Haia de 1980.
A ADI sustenta, em síntese, a falta de sistematicidade do texto da Convenção, o que conduz a interpretações equivocadas e que comprometem o preceito fundamental da Constituição Federal de garantir o melhor interesse do menor. O argumento central é o de que a Convenção parte de uma presunção de que a devolução da criança ao país de origem lhe seria benéfica, quando, na realidade, somente seria possível chegar a tal conclusão analisando caso a caso. Como argumento para afastar a presunção quanto aos benefícios do retorno, citou-se o próprio o texto da Convenção, que, em seu art. 13, prevê as hipóteses de exceção ao retorno quando há um risco ao interesse e proteção do menor. Desse modo, conforme se lê da petição inicial do partido Democratas, sustenta-se a tese de que:
(...) a ordem de "retorno imediato" do menor (arts. 1°, 7°;. caput, e 18), bem como a adoção de medidas de urgência (art. 11), não podem ser compreendidas como regras absolutas, a serem sempre e impreterivelmente perseguidas pelo aplicador da Convenção (...). Embora o retomo imediato da criança constitua relevante objetivo da Convenção, deve ser sempre avaliada a compatibilidade deste comando, caso a caso, com as normas e princípios contidos na Lei Maior, consideradas as peculiaridades da situação concreta. Em outras palavras, faz-se necessária a filtragem constitucional dos dispositivos, de modo a se alcançar uma decisão que efetivamente atenda ao objetivo primordial de proteção dos direitos da criança[6].
Em 2019, por ocasião do julgamento do recente REsp nº 1.788.601-SP (2018/0309092-8), de relatoria do Ministro Herman Benjamin, o STJ entendeu que a Convenção tem como um núcleo central o retorno imediato ao Estado de residência habitual do menor subtraído ilicitamente.
O julgado, porém, assevera que é preciso cautela ao interpretar a exceção postulada pelo art. 13, “b” da Convenção:
O risco caracterizador dessa hipótese excepcional deve ser "grave" e satisfatoriamente comprovado in concreto, incumbindo o ônus inteiramente ao genitor-infrator. São insuficientes as alegações genéricas ou veículo, aberto ou disfarçado, de preconceito, clichê ou ufanismo nacionalista. Logo, o retorno do menor e a inevitável separação do genitor-infrator não configuram, de maneira automática, a exceção referida na Convenção, que deve ser interpretada restritivamente, evitando-se sua banalização e o consequente esvaziamento, pela porta dos fundos, do tratado em si. (REsp 1788601/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/09/2019, DJe 30/10/2019).
Em relação ao procedimento judicial adotado no Brasil, Maristela Basso (2019, p. 286) critica as decisões de primeiro grau que determinam o retorno imediato da criança ao país de origem. Segundo a autora, há uma confusão, por parte dos juízes, entre o “retorno imediato” previsto da Convenção de Haia e a figura da “tutela antecipada” prevista do Código de Processo Civil. Basso pontua que o procedimento do “retorno imediato” somente deve acontecer diante de uma decisão da qual não se pode mais recorrer, não sendo possível, desse modo, a antecipação da tutela em primeira instância.
Tal posicionamento afigura-se como coerente, tendo em vista que, caso fosse possível antecipar a tutela e promover o retorno imediato já em primeira instância, o menor ficaria sujeito ao desgaste emocional de novos deslocamentos e novas configurações familiares ao longo do processo. Assim, compreender que o “retorno imediato” deve ser implementado após superadas as possibilidades de reforma se alinha ao princípio do melhor interesse da criança. É de se notar, no entanto, que assumir tal postura possui uma implicação prática que contraria o objetivo Convenção. Afinal, dentro do Judiciário brasileiro, o tempo entre o pedido de retorno imediato e a última decisão costuma ser longo. Dessa forma, o transcorrer dos anos durante o processamento do caso pelos Tribunais compromete o retorno previsto pela Convenção, pois o lapso temporal passa a ser utilizado pelos próprios Tribunais como fundamentação para manter o menor no Brasil (WAIDE, 2011, p. 293).
2. O CASO SEAN GOLDMAN
Sean Goldman é filho de mãe brasileira e pai estadunidense, casados nos Estados Unidos da América, os quais mantinham domicílio conjugal no estado de Nova Jersey, onde nasceu Sean.
Quando este estava com quatro anos de idade, o garoto viajou de férias ao Brasil, autorizado pelo pai. Em ato contínuo, a mãe unilateralmente decidiu permanecer com o menor no Brasil, local em que ajuizou ação de divórcio contra o então marido, tendo requerido concomitantemente a guarda do filho. Insatisfeito, o genitor buscou meios de reaver a guarda de Sean. No meio tempo, a mãe veio a falecer, tendo o menino ficado com o padrasto, brasileiro, que também acabou pleiteando sua guarda. Por decisão judicial e após uma série de imbróglios, Sean acabou retornando aos Estados Unidos, o que deu início a mais uma série de litígios envolvendo sua família materna.
A primeira decisão da Justiça norte-americana foi proferida de forma favorável ao genitor, uma vez que os Estados Unidos se tratavam de local da residência habitual da criança. Em posse dessa decisão, David Goldman denunciou a retenção ilegal de Sean ao Departamento de Estado dos Estados Unidos da América, seguindo o procedimento determinado pela Convenção de Haia.
Todavia, não houve cumprimento da decisão, de modo que o genitor acionou a justiça brasileira, com pedidos improcedentes, tendo em vista que, pelo tempo decorrido entre a vinda do menino ao Brasil e o julgamento da ação, o menor já teria se adaptado ao convívio neste País, de maneira que sua volta aos Estados Unidos sem a presença da genitora poderia causar danos psicológicos.
Em agosto de 2008, com o falecimento da mãe, o genitor tenta reaver a guarda de seu filho, porém, novamente, lhe foi impossibilitada, já que seu padrasto havia ingressado com pedido de guarda judicial, com base na parentalidade socioafetiva.
Diante de tal decisão, o genitor da criança realizou notificação à Autoridade Central estadunidense. Enviado o caso à Secretaria de Estado de Direitos Humanos (SEDH) e acionada a Advocacia Geral da União para demandar a restituição da guarda do menor, o juízo concedeu liminarmente o pedido subsidiário da União, fixando visitação provisória de David a Sean (MENDES, 2015, p. 35-40).
Foram, ainda, impetrados Habeas Corpus às instâncias superiores. O Min. Marco Aurélio determinou, liminarmente, a suspensão da eficácia do acórdão proferido pelo TRF-2, na Apelação nº 2008.51.01.018422-0, que determinou a entrega do menor ao Consulado americano na cidade do Rio de Janeiro, em 48 horas (CARDOSO, 2009).
Informou o Ministro que, com base em laudo pericial, o menor “não está apto a decidir sobre o que realmente deseja, seja pelas limitações de maturidade inerentes à sua tenra idade, seja pela fragilidade de seu estado emocional, seja, ainda, pelo fato de já estar submetido a processo de alienação parental por parte da família brasileira. Sem razão, pois, o apelante, na medida em que o preceito normativo condiciona a possibilidade de se levar em conta a opinião da criança à efetiva demonstração de que esta tenha discernimento para tanto, o que não ocorre no caso dos autos, na linha do que concluiu o referido laudo pericial” (BRASIL, 2009).
A decisão Min. Gilmar Mendes, para uma corrente, não foi no mesmo sentido do que dispõe o art. 16 da Convenção de Haia, pois o julgador considerou válidas as decisões proferidas pela justiça brasileira. Segundo essa lógica, se fosse seguido à risca o que dita o art. 16 da Convenção, as decisões brasileiras teriam sido anuladas em razão da incompetência absoluta (VENDRUSCOLO, 2011, p. 82).
Em 2013, a avó materna conseguiu autorização de visita no Judiciário de New Jersey (DEL’OLMO, 2015, p. 767).
A propagação do caso Sean Goldman em grandes veículos de mídia, tanto no Brasil quanto no exterior, contribuiu para a grande repercussão do caso. Contudo, a polêmica não ficou adstrita ao âmbito jornalístico, causando um grande engajamento político pelos líderes brasileiros e norte-americanos.
Senadores estadunidenses escreveram ao Presidente da República, solicitando a sua colaboração com o caso (BRING SEAN HOME, 2009). Esforços também foram realizados pela Secretária de Estado americana da época, Hillary Clinton e pelo Presidente Barack Obama.
A repercussão do caso chegou bastante próxima de causar acidentes diplomáticos entre os dois países, tendo em vista que muitos entenderam que o Brasil estava decidindo a favor da família brasileira pelo seu poder econômico e por puro patriotismo, chegando ao ponto de violar uma Convenção internacional.
CONCLUSÃO
Embora seja recorrente a prática de subtração de menores, o caso escolhido para objeto desta análise teve notória relevância, em virtude, sobretudo, da atenção midiática. Nesse sentido, em sendo acontecimento de repercussão substancial, os holofotes ocasionam, inclusive, um maior interesse dos operadores do direito em atribuírem à conjuntura uma solução mais ajustada.
Em virtude da intervenção política de dirigentes americanos, do poder aquisitivo dos envolvidos na situação e do destaque que a imprensa atribuiu à subtração de Sean, após cinco anos de litigância jurídica, a criança foi enviada aos Estados Unidos, sendo esse o desfecho fático da problemática.
No âmbito jurídico, contudo, ainda há dúvidas quanto à posição que o Brasil deveria adotar perante a Convenção de Haia. Se, por um lado o desfecho do caso Sean Goldman foi considerado um passo para romper a tradição de não-cooperação do Brasil com a Convenção (WAIDE, 2011, p. 300), ainda há muitas preocupações sobre os riscos graves à criança e sobre a aplicação da Convenção de Haia em detrimento da Constituição Federal ou do Estatuto da Criança e do Adolescente (BASSO, 2019, p. 285).
Assim, embora haja a necessidade, no plano dos fatos, de se atribuir uma solução pragmática à questão, sobretudo em razão do correr cronológico, no panorama do dever-ser, existem controvérsias sobre o desenlace aqui narrado.
REFERÊNCIAS
ACAF encerra 2018 com 98 pedidos de cooperação jurídica internacional e retorno de 15 crianças para o Brasil. Ministério da Justiça e Segurança Pública, 10 jan. 2019. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1547126079.94>. Acesso em: 26 set. 2020.
BASSO, Maristela. Curso de Direito Internacional Privado. 6ª ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2019.
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BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm>. Acesso em: 23 set. 2020.
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[1] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
[2] No Brasil, o Decreto nº 1.212, de 1994, promulgou esta Convenção (BRASIL, 1994).
[3] Artigo 6º - Cada Estado Contratante designará uma Autoridade Central encarregada de dar cumprimento às obrigações que lhe são impostas pela presente Convenção. Estados federais, Estados em que vigorem vários sistemas legais ou Estados em que existam organizações territoriais autônomas terão a liberdade de designar mais de uma Autoridade Central e de especificar a extensão territorial dos poderes de cada uma delas. O Estado que utilize esta faculdade deverá designar a Autoridade Central à qual os pedidos poderão ser dirigidos para o efeito de virem a ser transmitidos à Autoridade Central internamente competente nesse Estado. (BRASIL, 2000)
[4] Artigo 7º - As autoridades centrais devem cooperar entre si e promover a colaboração entre as autoridades competentes dos seus respectivos Estados, de forma a assegurar o retorno imediato das crianças e a realizar os demais objetivos da presente Convenção. Em particular, deverão tomar, quer diretamente, quer através de um intermediário, todas as medidas apropriadas para: a) localizar uma criança transferida ou retida ilicitamente: b) evitar novos danos à criança, ou prejuízos às partes interessadas, tomando ou fazendo tomar medidas preventivas; c) assegurar a entrega voluntária da criança ou facilitar uma solução amigável; d) proceder, quando desejável, à troca de informações relativas à situação social da criança; e) fornecer informações de caráter geral sobre a legislação de seu Estado relativa à aplicação da Convenção; f) dar início ou favorecer a abertura de processo judicial ou administrativo que vise ao retorno da criança ou, quando for o caso, que permita a organização ou o exercício efetivo do direito de visita; g) acordar ou facilitar, conforme as circunstâncias, a obtenção de assistência judiciária e jurídica, incluindo a participação de um advogado; h) assegurar no plano administrativo, quando necessário e oportuno, o retorno sem perigo da criança; i) manterem-se mutuamente informados sobre o funcionamento da Convenção e, tanto quanto possível, eliminarem os obstáculos que eventualmente se oponham à aplicação desta. (BRASIL, 2000)
[5] Os autos do processo referente à ADI nº 4245 estão disponíveis para consulta pública no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal. As informações relatadas e os trechos das peças processuais citados no presente artigo foram extraídos dos autos digitalizados e disponibilizados. Para acessá-los em sua integridade, consultar: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2679600>. Acesso: 22 set. 2020.
[6] A petição do Democratas-DEM relativa a ADI/4245 está integralmente disponível no sítio eletrônico do STF: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=2679600>. Acesso: 22 set. 2020.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Advogada licenciada. Assessora de Promotor de Justiça no Ministério Público de Pernambuco. Residente em Recife/PE.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEAL, ANA LUIZA MELO. A Convenção sobre os aspectos civis do sequestro internacional de crianças, sua repercussão no Brasil e reflexões sobre o caso Sean Goldman Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jul 2022, 04:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/58871/a-conveno-sobre-os-aspectos-civis-do-sequestro-internacional-de-crianas-sua-repercusso-no-brasil-e-reflexes-sobre-o-caso-sean-goldman. Acesso em: 23 dez 2024.
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