JOÃO GABRIEL QUINTELA JULIÃO AKEL[1]
(coautor)
José Roque Nunes Marques[2]
RESUMO: Ao relembrar a crise sanitária e o colapso do sistema de saúde manauara, ocorrido em janeiro de 2021, o presente artigo fará minuciosa análise dos impactos da judicialização dos leitos de UTI durante a pandemia e como isso afetou o judiciário e a vida em sociedade, tanto com a análise de julgados quanto de matérias jornalísticas. Se de um lado judicializar era a resposta à ausência de leitos e o dever do Estado era propiciar condições para que todo aquele que precisasse tivesse as condições de atendimento, do outro havia inúmeras pessoas que apenas aguardavam sua vez para conseguir um leito de hospital. Por fim, concluir-se-á que as decisões judiciais que garantiam o direito de leito não analisavam o princípio da reserva do possível de maneira adequada e acabaram por fazer com que aqueles que judicializaram sua demanda passassem à frente de quem apenas aguardava sua vez.
PALAVRAS-CHAVES: Covid-19. Leitos de UTI. Judiciário. Estado do Amazonas. Pandemia.
ABSTRACT: By recalling the health crisis and the collapse of the Manaus health system, which occurred in January 2021, this article will make a thorough analysis of the impacts of the judicialization of ICU beds during the pandemic and how this affected the judiciary and life in society, both with the analysis of judgments and journalistic materials. If, on the one hand, legalizing was the answer to the lack of beds and the State's duty was to provide conditions so that everyone who needed it had the conditions of care, on the other hand, there were countless people who were just waiting their turn to get a hospital bed. Finally, it will be concluded that the judicial decisions that guaranteed the right to bed did not analyze the principle of reserving the possible in an adequate way and ended up causing those who judicialized their demand to go ahead of those who were just waiting their turn.
KEY-WORDS: COVID-19. ICU Beds. Judiciary. State of Amazonas. Pandemic.
1.INTRODUÇÃO
O ano de 2020 ficou marcado pelo início da pandemia da covid-19. Em que pese a gravidade da doença, o Estado do Amazonas viu-se colapsado com anos de má gestão pública e ausência de investimentos na saúde, o que fez com que a máquina pública não pudesse atender a todos que dela precisassem.
Com o sistema único de saúde sem leitos para atender as solicitações que cresciam diariamente, as pessoas passaram a judicializar suas demandas, requerendo do Estado o cumprimento de seu direito à saúde o que, sob uma óptica externa, poderia ser algo positivo, mas, quando analisado o todo, percebe-se que a judicialização de leitos de UTI acabou por ignorar os princípios da isonomia e da reserva do possível, fazendo com que pessoas que estavam na fila de espera para receber seu leito fossem passadas para trás por quem tivesse uma ordem judicial.
Assim, o presente artigo visa analisar, de forma crítica, o conflito aparente entre o Poder Judiciário do Estado do Amazonas quanto às ações relacionadas aos leitos de Unidade de Terapia Intensiva requeridos durante a pandemia de covid-19 e como isso afetou a rotina de hospitais e acarretou no pensar negativo da sociedade em relação ao acesso ao judiciário.
A metodologia aqui abordada referenciar-se-á pelos julgados e lides jornalísticas publicados à época do primeiro ano de pandemia da covid-19 no Amazonas (2020-2021) e serão vento norteador para a elucidação da problemática até aqui exposta.
2.SAÚDE ENQUANTO DIREITO SOCIAL
De acordo com o autor José Afonso da Silva, os direitos sociais são:
prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas, em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais; (2007, p. 286 e 287).
Assim, a saúde como garantia fundamental possui maior ênfase no direito brasileiro quando o Brasil realizou a assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da Organização das Nações Unidas, onde o artigo 25 enumera a saúde como condição básica para uma vida digna.[3] Tal declaração inspirou a atual Constituição que, em 1988, incluiu o direito à saúde no rol de seus direitos sociais[4], contudo, sem exemplificá-los.
Essa inclusão garante que serão ofertados aos cidadãos cuidados de saúde de modo igualitário. Entretanto, não basta somente que seja declarado que todos possuem o direito à saúde, afinal, o direito sem sua plena eficácia se torna mero dispositivo, devendo o Estado organizar os meios para assegurar essa garantia e torná-la efetiva.
Ademais, o artigo 196[5] da Constituição Federal determina que o Estado deve formular políticas sociais e econômicas para promover, proteger e recuperar a saúde de seus cidadãos, bem como criou uma estrutura, citou a atuação e objetivos no artigo 198 e seguintes do mesmo texto.
Além dela, a Lei Federal 8.080 de 19 de setembro de 1990 trata da estrutura organizacional do Sistema Único de Saúde (SUS) e no seu artigo 2º, caput, bem como no seu § 1º informa acerca da obrigação do Estado:
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1990).
Por meio do primeiro parágrafo do artigo 5º[6], o texto constituinte determina que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, sendo assim, o Estado não deve medir esforços para garantir o direito à saúde aos seus cidadãos. Portanto, por encontrar-se positivado, o direito à saúde possui eficácia plena e imediata e, nos casos de negligência estatal, as prestações podem ser requeridas judicialmente, sendo essa um dos argumentos utilizados nas ações interpostas no período pandêmico.
2.1. O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL
O princípio da reserva do possível tem origem no direito alemão e se vale da ideia de existência de um “mínimo existencial”. Esse mínimo pode ser identificado na nossa Constituição em vários momentos, contudo, é notória sua presença no art. 5º, principalmente no caput, ao tratar do direito à vida. Assim, deve o Estado garantir os meios necessários para que os cidadãos tenham pelo menos o mínimo necessário à sua sobrevivência.
Forte nesses argumentos, a reserva do possível é suscitada não para escancarar a ineficácia pública, mas, como um meio de atingir a dignidade humana ou garantir o direito à vida de outrem. O ex-ministro do STF Celso de Mello, destaca, no RE 393175 RS, que:
Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196) ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ética jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e saúde humanas.
Contudo, desde o início da pandemia de covid-19, este princípio foi amplamente utilizado e, com notória frequência, garantidor de leitos de hospitais para aqueles que precisavam com “urgência”. Mas, em um momento onde todos os que aguardam um leito também têm urgência, acabou que a excessiva judicialização de leitos não respeitou o princípio da isonomia.
Nesse sentido, a autora Ana Paula de Barcellos declara que: “A expressão reserva do possível procura identificar a limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas.”[7] Portanto, a reserva do possível deve trazer a ponderação do judiciário, pois as demandas devem ser analisadas protegendo os interesses da coletividade.
Em que pese o artigo 196 da Constituição Federal trazer a ideia de que o direito à saúde é absoluto, posto que não há dignidade humana sem saúde, o Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento de que não há direito absoluto, conforme leitura do MS 23452 RJ, de relatoria do Ministro Celso de Mello:
(..)
Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros. (STF - MS: 23452 RJ, Relator: CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 16/09/1999, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 12-05-2000 PP-00020 EMENT VOL-01990-01 PP-00086)
(..)
Conforme o entendimento do STF, incidem limitações jurídicas sob os direitos e garantias fundamentais, com o fito de garantir os interesses sociais da coletividade em detrimento aos dos particulares. Além disso, também existem as limitações estatais, tornando impraticável o caráter absoluto dos direitos.
No Amazonas, diversas decisões judiciais valeram-se do direito fundamental à saúde enquanto um princípio para uma vida digna e que a negativa do pedido iria ferir o direito à vida e sobrevivência do paciente, conforme o trecho da decisão exarada nos autos judiciais nº 0601711-68.2021.8.04.0001:
(...)
O direito à saúde é assegurado pela Constituição da República, no seu art. 6º, tratando-se de direito fundamental, o que reclama máxima efetividade. Desta feita, é dever constitucional dos Estados, conjuntamente com a União, o Distrito Federal e os Municípios, disponibilizarem o fornecimento de medicamentos e hospitais com equipamentos suficientes e necessários para assegurar a todos os cidadãos o direito à saúde. In casu, nota-se que a Autora colacionou aos autos a sua tomografia computadorizada do tórax (fls.18/19 - acometimento entre 50% e 75% do parênquima pulmonar), a qual demonstra a gravidade do seu estado, bem como narra na inicial que seu quadro de saúde vem se agravando a cada dia, correndo o risco de vir a óbito. Ora, suas alegações são providas de plausibilidade na medida em que estamos diante de paciente inserida no grupo de risco é acometida da doença que vem assolando o país e o Estado do Amazonas e matando milhares de pessoas há cerca de um ano; destarte, é razoável supor que ninguém, em sã consciência, intentaria uma internação em hospital a não ser que fosse extremamente necessário.
Portanto, de forma a resguardar a vida da Autora, entendo que a medida de urgência possui plausibilidade para a sua concessão.
(...)
Contudo, pela ótica do princípio aqui debatido, não deveria ser exigível a disponibilização de um leito de um paciente que já aguardava na fila do Sistema de Transferência de Emergência Regulada (Sister), conforme a própria Central Unificada de Regulação e Agendamento de Consultas e Exame (CURA), para que o direito do paciente fosse cumprido, pois, como informado anteriormente, não existiam recursos suficientes para a demanda à época.
2.2. O PRINCÍPIO DA (DES)IGUALDADE E O ACESSO À SAÚDE DURANTE A PANDEMIA
Por todo o Brasil faltavam leitos de UTI disponíveis para atender as necessidades dos cidadãos, portanto, não seria razoável determinar que o sistema de saúde disponibilizasse leito para determinado paciente somente pelo fato de que ele teve acesso ao judiciário, enquanto centenas aguardavam em ordem cronológica.
Contudo, contrário ao até aqui defendido, é possível analisar o seguinte trecho da decisão exarada nos autos judiciais nº 0602379-39.2021.8.04.0001 TJAM:
(..)
O direito à saúde é assegurado pela Constituição da República, no seu art. 6º. Portanto, é um direito fundamental, o que reclama máxima efetividade. Portanto, é dever constitucional dos Estados, conjuntamente com a União, o Distrito Federal e os Municípios, o fornecimento de medicamentos e hospitais com equipamentos suficientes e necessários para assegurar a todos os cidadãos o direito à saúde. In casu, nota-se que suas alegações são providas de plausibilidade, na medida em que estamos diante de paciente de idade avançada, em estado de saúde grave, sendo razoável supor que ninguém, em sã consciência, intentaria internação em UTI a não ser que fosse extremamente necessário. Analisando os autos, observo que a Autora não colacionou aos autos os documentos comprobatórios de sua doença, tampouco acerca da internação e necessidade de transferência para UTI. Entretanto, tal fato não pode servir de óbice ao deferimento da medida, uma vez que estamos diante, ao que tudo indica, de paciente com risco de morte, de forma que a tutela do direito à vida não pode ser afastada por simples questão documental.
(...)
Diante do exposto, CONCEDO o pedido de tutela de urgência, determinando que os Requeridos transfiram a Requerente imediatamente para uma unidade de terapia intensiva, fornecendo tratamento médico justo e adequado, sob pena de incidência de multa diária no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), para cada um dos Requeridos, em caso de descumprimento, após extrapolado o prazo de 6h, a contar da intimação, no limite de até 30 dias/multa.
Da inteligência do excerto lido, temos que mesmo com a completa ausência de provas acerca da urgência, valendo-se o Juízo de especulações de que “ninguém, em sã consciência, intentaria internação em UTI a não ser que fosse extremamente necessário” a liminar fora deferida.
Portanto, pergunta-se: qual a diferença entre o paciente dos autos apresentados e um que aguarda na fila cronológica com os devidos documentos? A resposta parte do então Secretário de Reforma Judiciária do Ministério da Justiça, que afirmou “O Brasil é mais desigual no acesso à Justiça do que na educação, na expectativa de vida e na renda”[8]. Logo, faz-se necessário reconhecer que o acesso à justiça no país é privilégio de poucos e estes estão intimamente relacionados ao acesso à educação.
Não causa espanto que o acesso à justiça seja facilmente alcançado pelas famílias mais abastadas. Os processos, na maioria dos casos, demoram anos para finalizar e pessoas de baixa renda estão mais preocupadas em não passar fome do que despender seus recursos com locomoção, para acompanhar e solicitar informações acerca de procedimentos jurídicos. Além de que a linguagem do judiciário é de difícil acesso, como destaca Arthur Lavigne Gesteira Slaibi:
Em que pese ser importante informar os cidadãos, é também essencial a educação dos juristas, em busca de motivar não só a coerência textual, mas de tornar a linguagem acessível, limitando o uso dos termos técnicos, e adaptando o texto aos seus reais destinatários, o que permitiria maior identificação destes com o próprio poder judiciário. (2017, p.15)[9].
O judiciário precisa adaptar-se para que seu acesso seja possível a todos, pois somente a assistência judiciária gratuita não é o suficiente, faz-se necessário que a linguagem utilizada seja compreensível para aqueles que não possuem o conhecimento técnico, facilitando seu acesso.
Em que pese o notório trabalho das Defensorias, seja do Estado ou da União, a massiva judicialização nos casos de requerimento de leitos colidia com o princípio da isonomia, visto que não existiam razões suficientes para ordenar tratamento desigual a paciente que não possuía meios para acionar o judiciário, posto que os leitos de UTI estavam, em sua maioria, sendo usados para tratamento de covid-19.
Ao ponderar que todos tinham praticamente as mesmas necessidades, em fevereiro de 2021, foram suspendidas no estado do Amazonas 78 decisões judiciais que determinavam que o Estado do Amazonas deveria fornecer leitos clínicos ou de UTI a pacientes com covid-19, como bem se pode observar na decisão que compõe os autos de nº 4000221-92.2021.8.01.0000[10].
(...) A identificação da priorização do fornecimento suplementar de serviços médicos para atendimento dos pacientes infectados pelo COVID-19, cabe ao Estado do Amazonas, que possui protocolo médico-sanitário para dar suporte, de maneira uniforme, a todos os cidadãos do Estado, independentemente, do município ou da região em que se encontrem. Vale ressaltar que estamos vivenciando uma segunda onda de contaminação que assola o estado do Amazonas e toda a sua estrutura médico-hospitalar, levando ao esgotamento de todos os recursos materiais e humanos existentes. Para tanto, o Estado do Amazonas, como dito, criou um plano de contingenciamento lastreado em critérios médicos rigorosos para identificar os pacientes mais graves, a fim de formar uma lista de prioridades. A análise é feita por médicos de diversas especialidades que integram a Coordenação de Regulação de Internação e Urgência e pela Coordenação Estadual de Regulação, estabelecendo a prioridade de fornecimento de leitos e transferência em UTI aérea dos pacientes mais graves. As liminares concedidas, em que pese a inquestionável boa intenção, diante do quadro caótico em que se encontra o sistema de saúde do Amazonas e em razão da inobservância adequada dos critérios médicos para acesso aos escassos leitos clínicos e de UTI, acabam priorizando, muita das vezes, pacientes que não se encontram em estado avançado da doença, retirando a prioridade de pacientes extremamente graves e que necessitam de imediata transferência. Esta conclusão pode ser verificada na Nota Técnica exarada pela Coordenação de Regulação de Internação e Urgência e pela Coordenação Estadual de Regulação, constante das fls. 522: “As numerosas ordens judiciais, por mais que estejam atendendo aos melhores critérios jurídicos, estão conflitando com o direito coletivo, posto que visam resguardar o direito de pessoas específicas, em detrimento da coletividade, sendo que muitas vezes, tais indivíduos não apresentam critério de gravidade clínica mais urgente do que outros indivíduos, igualmente inseridos em sistema, mas que não ajuizaram ações em seu favor”. Portanto, há um protocolo médico rigoroso, baseado em critérios científicos, estabelecido pelo estado do Amazonas para salvar o maior número de vidas humanas. Assim, inequívoco o interesse público justificador do presente pedido de extensão dos efeitos de suspensão de liminar para garantir a igualdade de tratamento e assistência médico-hospitalar todos os cidadãos amazonenses indistintamente, com a observância irrestrita da execução do Plano de Contingência Estadual para a Infecção Humana pelo SARS-COV-2 (COVID-19), criado pelo Estado do Amazonas com base em critérios médicos-científicos rigorosos para a definição das prioridades de fornecimento de leitos e transferências, evitando ações direcionadas que, além de causar prejuízos à economia e ordem públicas, podem ceifar a vida de centenas de amazonenses em estado de saúde mais grave.
(...)
Assim, na visão do desembargador Domingos Jorge Chalub Pereira, as liminares concedidas nos processos prejudicam a execução de contingenciamento pelo Governo do Estado para fornecer leitos e transferir pacientes graves para unidades de saúde de Manaus, apresentado por meio do Plano de Contingência Estadual para o enfrentamento da Pandemia de covid-19, visto que os julgadores não possuíam o conhecimento técnico necessário para decidir qual paciente precisava mais, bem como das circunstâncias que os hospitais e a fila do Sistema de Regulação encontravam-se.
3.O ESTADO DO AMAZONAS FRENTE À PANDEMIA
Em que pese todo o globo enfrentar problemas com a pandemia da covid-19, o estado do Amazonas sofreu de uma forma diferente, haja vista os problemas relacionados à logística no transporte de pacientes, a questão da infraestrutura deficitária principalmente nas cidades do interior, a ausência de insumos hospitalares e material humano, dentre outras questões, foram fatores decisivos para a grave crise de oxigênio ocorrida em janeiro de 2021.
Assim, o Amazonas foi repentinamente sobrecarregado por essas requisições, visto o aumento drástico de casos de covid-19, chegando a triplicar em 24 horas e, por conseguinte, colapsando o sistema de saúde do Estado, no sentido de que não havia oxigênio para os pacientes[11], leitos clínicos e de terapia intensiva[12] e demais insumos.
Em consequência, houve a superlotação dos hospitais, bem como uma grande requisição pelos leitos de Unidade de Terapia Intensiva e, em virtude disso, o Estado do Amazonas requisitou leitos de UTI da rede privada[13], por meio de requisição administrativa.
A referida requisição é um instrumento previsto no artigo 5º, XXV, da CF/88[14], onde informa que o Poder Público pode utilizar temporariamente bens privados em caso de iminente perigo público, com base no princípio da supremacia do interesse coletivo. Além disso, a Lei 13.979/2020, em seu artigo 3º, VII[15], destaca a requisição administrativa como medida de enfrentamento ao coronavírus.
Devido a superlotação dos hospitais, era necessária uma triagem dos pacientes, a fim de identificar os casos mais graves e, posteriormente, priorizá-los na fila de solicitação de leitos de UTI. Essa triagem era realizada pela equipe médica do Complexo Regulador da Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas, conforme o Plano de Contingência Estadual para enfrentamento da pandemia de covid-19 do Amazonas[16], com o objetivo de respeitar o princípio da igualdade de direitos e equidade do SUS.
Assim, com o caos instaurado, em um mês o Poder Judiciário Estadual do Amazonas já tinha proferido mais 100 decisões relacionadas à covid-19, conforme pesquisa realizada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM)[17]. Assim, com os dados alarmantes adquiridos em janeiro de 2021, foi que o judiciário amazonense passou a ponderar sobre a importância de indeferir os pedidos de particulares em favor da coletividade, posto que não havia leitos para todos.
Portanto, para que não fossem os julgadores responsáveis por quem vive e quem morre, os já mencionados autos de nº 4000221-92.2021.8.01.0000 colocaram fim à matéria ao decidir que era o Estado o responsável adequado para administrar os pedidos de leitos de UTI, passando o judiciário a ter uma postura mais cautelosa em relação a pedidos de natureza hospitalar.
4.CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito, enquanto ferramenta, é utilizado para chegar aos fins desejados de determinada pessoa ou grupo. Contudo, sempre os interesses da coletividade devem sobrepor os da individualidade e tal premissa ficou em destaque durante o período analisado de pandemia analisado.
Se a Constituição Federal, no caput de seu art. 5°, garante a todo brasileiro e estrangeiro residente no país o “direito à vida”, o que ficou demonstrado foi que a vida já não era tão relevante, mas a mera sobrevivência já era motivo de júbilo. Este termo é o único que pode aqui ser utilizado visto que o meio encontrado, para muitos, de continuar vivo foi judicializando suas demandas.
Assim, observa-se que inicialmente o judiciário amazonense não analisou as capacidades do Estado do Amazonas, tampouco levou em consideração a reserva do possível, pois deferiu diversas decisões concedendo leitos de UTI, mesmo após serem informados que era realizado uma triagem dos pacientes, verificando suas situações clínicas e ordenando-os conforme a gravidade.
Em virtude disso, diversos pacientes “furavam a fila”, enquanto aqueles que não possuíam os meios de acesso ao judiciário acabavam falecendo aguardando um leito, visto que essas decisões não seguiam parâmetros isonômicos, pois os enfermos que conseguiram liminares a seu favor tinham prioridade. Sendo assim, o Estado do Amazonas tinha duas filas para os leitos de UTI: a dos pacientes que ajuizaram ação e a dos que aguardavam sua vez.
Desta feita, a ferramenta que deveria auxiliar o povo em tão delicado momento acabou por atrapalhar o plano de contingência do Estado, onde informava todo o processo para a entrada no sistema que regulava as situações dos leitos.
Vale ressaltar que a estrutura no âmbito da saúde no Amazonas é escassa, principalmente no interior, onde pessoas acabam falecendo por doenças tratáveis unicamente pela falta de itens básicos de saúde facilmente adquiridos na capital. Os Órgãos de controle devem aumentar sua presença, com o objetivo de fiscalizar o acesso à saúde e garantindo-o enquanto direito.
Assim sendo, o diálogo entre judiciário e governo do Estado, por meio das secretarias, foi fator decisivo para o alinhamento no combate à covid-19 e melhor gerenciamento da crise então instaurada.
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SES-AM instala última câmara fria no Hospital e Pronto-Socorro Platão Araújo. Disponível em: http://saude.am.gov.br/visualizar-noticia.php?id=5554
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Sistema de saúde do Amazonas entra em colapso com pandemia de coronavírus. Disponível em: https://exame.com/brasil/sistema-de-saude-do-amazonas-entra-em-colapso-com-pandemia-de-coronavirus/
SLAIBI, Arthur Lavigne Gesteira. Uma crítica à linguagem jurídica: acesso, técnica, violência e efetividade. 2017. Disponível em: file:///C:/Users/USER/Downloads/4810-18377-1-PB.pdf
SPA do Alvorada, em Manaus, fecha as portas após atingir capacidade de atendimento. Disponível em:https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/01/14/spa-do-alvorada-em-manaus-fecha-as-portas-apos-atingir-capacidade-de-atendimento.ghtml
STF - RE: 393175 RS, Relator: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 01/02/2006, Data de Publicação: DJ 16/02/2006 PP-00054 RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 163-166. Disponível em:https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/14784469/recurso-extraordinario-re-393175-rs-stf. Acesso em 02/08 às 18:57h
[1] Graduando em direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
[2] Graduado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (1986), com Especialização em Direito Ambiental pela UFAM, Mestrado em Direito da Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996) e Doutorado em Programa Multi-institucional de Pós-graduação em Biotecnologia pela Universidade Federal do Amazonas (2013). É Procurador de Justiça Aposentado do Ministério Público do Estado do Amazonas. Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal do Amazonas, do Curso de Graduação em Direito e do Programa de Pós Graduação em Direito da UFAM. É sócio do escritório jurídico Nunes Marques Advogados, onde atua em Direito Ambiental, Constitucional, Cível e Penal.
[3] Organização das Nações Unidas, Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 25: Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. Disponível em: https://www.oas.org/dil/port/1948%20Declaração%20Universal%20dos%20Direitos%20Humanos.pdf;
[4] Constituição Federal,1988, artigo 6º, Caput - São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição;
[5] Constituição Federal de 1988, artigo 196º - A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação;
[6] Constituição Federal de 1988, artigo 5º, § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata;
[7] BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais dignidade da pessoa humana. 2. ed. Rio de: o princípio da Janeiro: Renovar, 2008. p.276;
[8] Desigualdade no acesso à Justiça é 50 vezes maior do que na educação. Disponível em: https://oab-rj.jusbrasil.com.br/noticias/118687019/desigualdade-no-acesso-a-justica-e-50-vezes-maior-do-que-na-educacao;
[9] SLAIBI, Arthur Lavigne Gesteira. Uma crítica à linguagem jurídica: acesso, técnica, violência e efetividade. 2017. Disponível em: file:///C:/Users/USER/Downloads/4810-18377-1-PB.pdf;
[10] Justiça suspende decisões que obrigam Amazonas a fornecer leitos a pacientes com Covid-19. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2021/02/11/justica-suspende-decisoes-que-obrigam-amazonas-a-fornecer-leitos-a-pacientes.ghtml;
[11] Falta de oxigênio causa mortes e revela colapso em Manaus, que já soma mais de quatro mil mortes em 2021. Disponível em: https://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/50926
[12] Amazonas sofre com falta de leitos para covid; crianças são preocupação... Disponível em:https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/01/09/amazonas-sofre-com-falta-de-leitos-para-covid-criancas-sao-preocupacao.htm?cmpid=copiaecola
[13] SES-AM requisita leitos clínicos e de UTI da rede privada de Manaus. Disponível em: http://www.saude.am.gov.br/visualizar-noticia.php?id=6060;
[14]Art. 5º, XXV, da CF/88 - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;
[15] Lei 13.979/2020, art. 3º, VII - requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa;
[16] Plano de Contingência Estadual para enfrentamento da pandemia de Covid-19 do Amazonas. Página 80. Disponível em: http://www.saude.am.gov.br/docs/covid19/PLANO_COVID19_21_04_21_PRELIMINAR.pdf;
[17] Magistrados do TJAM já proferiram mais de 150 decisões em processos relacionados à pandemia de covid-19. Disponível em: https://www.tjam.jus.br/index.php/menu/sala-de-imprensa/2749-magistrados-do-tjam-ja-proferiram-mais-de-150-decisoes-em-processos-relacionados-a-pandemia-de-covid-19
Graduanda em direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JALKH, Victoria Elisa da Silva. Direito a sobreviver: a judicialização de leitos de UTI durante a pandemia de covid-19 no Amazonas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2022, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59042/direito-a-sobreviver-a-judicializao-de-leitos-de-uti-durante-a-pandemia-de-covid-19-no-amazonas. Acesso em: 25 dez 2024.
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