RESUMO: O presente artigo teve por objetivo analisar as vertentes do chamado Testamento Vital, segundo o qual passa a ser considerada a vontade da pessoa que é acometida por enfermidade terminal e não deseja se submeter a determinados tratamentos médicos. Além de abordar acerca da resolução 1.995/2012 que valida o testamento vital no Brasil, procurou-se delimitar os conceitos de ortotanásia, eutanásia e distanásia, discorrer sobre a polêmica gerada no âmbito jurídico e, ainda, comparar as práticas relacionadas ao Testamento Vital em diferentes países. Finalmente, salientou-se a necessidade da reformulação da Constituição Federal para que o Testamento Vital passe a ter efeito de lei.
PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Dignidade Humana. Princípio da Autonomia da Vontade. Direito à vida. Testamento Vital. Paciente Terminal.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A Resolução 1.995/2012 – 3. Conceitos – 4. A polêmica – 5. Direito comparado – 6. Conclusão – 7. Referências.
1.Introdução
“Toda a vida é uma preparatio mortis e é por isto que a última palavra e o último gesto são um direito que ninguém lhe pode roubar (...) Que o último momento seja belo como um pôr do sol, longe do frio elétrico metálico das máquinas (...)” (ALVES, Rubem).
É indubitável que as conquistas tecnológicas têm salvado muitas vidas, mas também é inegável que têm provocado muitas discussões a respeito dos processos de morte. Temas que envolvem decisões relativas ao final da vida geram muita polêmica, pois existem, de um lado, aqueles que são favoráveis às suas práticas, justificando-as com a ideia de autonomia da vontade e o princípio da dignidade da pessoa humana e, do outro, os que argumentam contra tais decisões, sustentando sua posição pelo princípio do direito à vida como bem indisponível.
Pretende-se analisar o direito que tem a pessoa de deliberar antecipadamente sobre o final de sua vida, escolhendo o que lhe parece melhor e mais conveniente, no sentido de não ser, mais tarde, obrigada a se tornar paciente terminal e, quando já inconsciente, não puder manifestar sua vontade quanto à forma que deseja passar seus últimos momentos de vida.
No Brasil, em 2012, o Conselho Federal de Medicina aprovou uma resolução que legitima um documento cujo conteúdo consiste na declaração de vontade de uma pessoa sobre procedimentos ou decisões em relação ao seu próprio corpo ou vida, para produção de efeitos em momento futuro, quando acometida de grave enfermidade ou estado de inconsciência – o Testamento Vital.
2.A Resolução 1.995/2012
No dia 31 de agosto de 2012, foi publicada a resolução 1.995/2012 no Diário Oficial da União, segundo a qual o Testamento Vital passa a ser legitimado no Brasil. Colocando os cuidados paliativos em evidência no país, a decisão tomada pelo Conselho Federal de Medicina levou à discussão como cada um quer ser tratado em um eventual estado terminal.
A resolução em questão estabelece critérios para que qualquer indivíduo, maior de idade e plenamente consciente, tenha a possibilidade de definir junto ao seu médico os limites terapêuticos a serem adotados em uma fase terminal, por meio do registro expresso do paciente num documento denominado Testamento Vital, também conhecido como “Diretivas Antecipadas de Vontade”.
Nesse sentido, as pessoas podem escolher não serem submetidas a tratamentos extraordinários de manutenção da vida na fase final de doenças como demência, insuficiência cardíaca, doença pulmonar obstrutiva crônica ou câncer, quando já não existe possibilidade de reversão do quadro. No entanto, é de se ressaltar que o cuidado deve continuar até o momento da morte, com ênfase no controle dos sintomas e na resolução de pendências. Assim, a pessoa não é abandonada jamais e o foco da intervenção passa a ser o seu conforto.
Segue abaixo a referida resolução na sua íntegra:
RESOLUÇÃO Nº 1.995, DE 9 DE AGOSTO DE 2012
Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.
O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições conferidas pela Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e pela Lei nº 11.000, de 15 de dezembro de 2004, e CONSIDERANDO a necessidade, bem como a inexistência de regulamentação sobre diretivas antecipadas de vontade do paciente no contexto da ética médica brasileira;
CONSIDERANDO a necessidade de disciplinar a conduta do médico em face das mesmas;
CONSIDERANDO a atual relevância da questão da autonomia do paciente no contexto da relação médico-paciente, bem como sua interface com as diretivas antecipadas de vontade;
CONSIDERANDO que, na prática profissional, os médicos podem defrontar-se com esta situação de ordem ética ainda não prevista nos atuais dispositivos éticos nacionais;
CONSIDERANDO que os novos recursos tecnológicos permitem a adoção de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente em estado terminal, sem trazer benefícios, e que essas medidas podem ter sido antecipadamente rejeitadas pelo mesmo;
CONSIDERANDO o decidido em reunião plenária de 9 de agosto de 2012, resolve:
Art. 1º Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.
Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.
§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares. § 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.
§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.
Art. 3º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação.
3.Conceitos
É bastante comum a confusão dos conceitos das seguintes palavras: ortotanásia, distanásia e eutanásia. Ressalta-se que o Testamento Vital é correlato das duas primeiras e nada tem a ver com a última.
O termo ortotanásia deriva dos vocábulos orto (certo) e thanatos (morte), traduzindo-se como morte correta. Ela visa não prolongar artificialmente o processo da morte, para além do que se processaria naturalmente. Assim, a ortotanásia engloba o Testamento Vital, visto que este pode permitir a morte digna de um paciente a partir da não realização de tratamentos que poderiam mantê-lo vivo por mais tempo caso seja de sua vontade.
Significando o oposto de ortotanásia, a expressão distanásia pode ser entendida como a obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia, traduzindo-se como “o prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento do doente” (BORGES, 2001, p.286). Nessa situação, não existe expectativa real de melhora do paciente, havendo apenas uma persistência em utilizar todos os meios para preservar a vida, mesmo que o resultado dessa conduta se limite ao prolongamento do processo de morte e, com isso, o prolongamento do sofrimento do paciente. Portanto, o Testamento Vital funciona como um documento capaz de evitar a distanásia.
Depois de sofrer algumas modificações no seu significado, hoje, o termo eutanásia se refere à morte, provocada por algum sujeito, de pacientes com doenças incuráveis e vítimas de sofrimento, tendo como motivação sentimentos humanísticos e, dessa forma, havendo interferência no processo de morte. “Atualmente, porém, tem se falado de eutanásia como uma morte provocada por sentimento de piedade à pessoa que sofre. Em vez de deixar a morte acontecer, a eutanásia, no seu sentido atual, age sobre a morte, antecipando-a”. (BORGES, 2001. p.285)
Analisando o conceito exposto, pode-se constatar claramente que a diferença entre a ortotanásia (englobando o testamento vital) e a eutanásia reside na interferência humana no processo de morte da pessoa. Enquanto a ortotanásia consiste em uma omissão (não interferência humana), ao deixar que o processo de morte se desenvolva de forma natural, na eutanásia, há a interferência do homem nesse processo, pois atua de algum modo para antecipar a morte do enfermo com a finalidade de cessar o sofrimento deste.
4.A polêmica
A questão da licitude do testamento vital é um objeto, sem dúvida, bastante polêmico. No âmbito prático, trazer conforto à morte de um paciente terminal, poupando-o de um suposto sofrimento prolongado, e considerar a vontade de decisão do mesmo parecem feitos positivos. Entretanto, na ótica jurídica, o testamento vital pode ser entendido como inconstitucional, uma vez que não vai ao encontro de um dos direitos fundamentais que é o direito à vida.
O direito de morrer dignamente nada mais é que a reapropriação da morte pelo enfermo, de modo que este não seja obrigado a se submeter a tratamentos excessivos e ineficazes que, tão somente, prolongarão o seu processo de morte e, conseguintemente, aumentarão a sua agonia. Trata-se, portanto, do direito do doente de não se submeter à chamada “obstinação terapêutica”, já supraexplicitada, de modo que seja resguardada a dignidade do indivíduo não só durante a sua vida, mas até mesmo durante o momento de sua morte.
Pressupõe-se que não é o ser humano quem deve estar subordinado à tecnologia, mas o contrário, de modo que os procedimentos tecnológicos devem propiciar benefícios ao paciente e não prolongar a sua dor. “É um apelo ao direito de viver uma morte de feição humana [...] não objeto da ciência, mas sujeito da existência”. (BORGES, 2001, p.284) Além disso, o direito a uma morte digna abriga vários outros direitos, como o da liberdade, o da autonomia, o da vontade e, principalmente, o da dignidade da pessoa humana.
Por outro lado, atendo-se para uma visão formal do testamento vital, questiona-se o seu suposto desacordo com a Constituição Federal. Segundo o artigo 60 desta, o direito à vida é um direito fundamental e, como tal, atua como uma cláusula pétrea. Cláusula pétrea, por sua vez, significa artigo ou disposição legal que deve ser cumprido obrigatoriamente. Não permite renúncia ou inaplicabilidade por estar petrificada, dura, imóvel e por ser inquebrável e intocável. É lei ou norma que se cumpre sem qualquer discussão quanto a sua interpretação de viabilidade (fática ou de direito). Assim, o principal argumento dos críticos do testamento vital é que, baseando-se no direito à vida, a vida humana deve ser preservada a qualquer custo.
A transposição da letra da lei para o caso concreto é algo extremamente difícil. Como se pode perceber, o testamento vital, embora tenha controvérsias no âmbito jurídico, afirma os princípios da dignidade humana e da autonomia da vontade. Não se deve pensar apenas como jurista. O direito, acima de tudo, é feito por pessoas, sendo necessária a análise e interpretação minuciosas de cada caso real. Considerando a vertente humana, os dados contidos na constituição devem ser revistos e reformulados para que a resolução que confirma a validade do testamento vital tenha, de fato, efeito de lei.
5.Direito Comparado
Nos Estados Unidos da América, o testamento vital tem valor legal, tendo surgido com o “Natural Death Act”, na Califórnia, na década de 1970. Exige-se que tal documento seja assinado por pessoa maior e capaz, perante duas testemunhas independentes, e que só tenha efeitos depois de quatorze dias da assinatura, sendo revogável a qualquer tempo. Além disso, tem um valor limitado no tempo, de aproximadamente cinco anos. O estado de fase terminal deve ser atestado por dois médicos. O médico que desrespeita as disposições do testamento sofre sanções disciplinares.
Na Argentina, o documento que materializa as declarações de vontade em caso de incapacidade decorrente de grave enfermidade, denomina-se “Declaraciones de Voluntad Unilateral” ou “Directivas Antecipadas de Voluntad para Tratamientos Medicos”. Já foi adotado em algumas províncias por meio de lei própria, sendo que os doutrinadores preferem essas expressões ao Testamento Vital (INANT, 2005, p. 8), argumentando que é da essência do testamento a produção de efeitos “post mortem” (depois da morte), o que não é o caso das “directivas anticipadas de voluntad”, que se prestam a tutelar o cumprimento da vontade do titular ainda em vida, porém em momento posterior, geralmente quando não mais é possível que este manifeste livremente sua vontade em razão de incapacidade ou devido ao comprometimento de seu estado psicológico e emocional, naturais de quem se encontra em estado de grave enfermidade.
O Uruguai foi um dos primeiros países a legislar sobre a eutanásia. Em 1934, quando entrou em vigor o Código Penal, tipificou-se o homicídio piedoso. Facultou-se ao juiz a não aplicação da pena à pessoa que realiza a eutanásia, se presentes os requisitos de ter antecedentes honráveis; ser realizado por motivo piedoso e a vítima ter feito reiteradas súplicas. Não há uma autorização para a realização da eutanásia. O que pode ocorrer é a não aplicação da pena, decidida pelo juiz.
Coltro e Telles comentam que, na Suíça, o suicídio assistido tem previsão legal. Já o documento em que são contidas as declarações de vontade não se encontra regulamentado por lei, conforme assinala:
Há uma organização oficialmente reconhecida, denominada Exit, que conta com cerca de 60 mil associados e cujo âmbito de atuação é justamente o de prestar assistência ao doente que queira a morte assistida. (...) A Corte Nacional Suíça reconheceu o direito de uma pessoa determinar a forma e o momento de terminar com a própria existência, mas não existe lei escrita regulamentando a conduta, que não é necessariamente praticada por médicos e pode ocorrer em instituições não governamentais. (COLTRO e TELLES, 2010, p. 151)
Na Inglaterra, a ideia de permitir que a pessoa opte pela morte em vez de submeter-se a tratamentos dolorosos data da década de 60, conforme assinalam Coltro e Telles:
(...) finalmente, a ‘morte contemporânea’, trazendo à baila o direito de morrer bem, o que inclui o direito de preferir a morte ao tratamento de doença incurável ou em estado terminal, movimento iniciado na Inglaterra, no final da década de 1960 e a partir da possibilidade de cuidados paliativos. (COLTRO e TELLES, 2010, p.147)
6.Conclusão
A vida é um poema enorme, uma explosão de gestos e sentidos espalhados pelo espaço. Mas como tudo o que é humano, a vida é também cansaço que anseia pelo sono. Como diz o poeta sagrado, ‘para todas as coisas há o seu tempo, debaixo do sol; há um tempo de nascer e um tempo de morrer (...) (ALVES, Rubem)
Se a vida, por um lado, não é um bem jurídico disponível, não cabe, por outro lado, impor às pessoas um “dever de viver” a todo custo, o que indica, assim, que morrer dignamente nada mais é do que uma decorrência lógica do princípio da dignidade da pessoa humana. A pessoa tem a proteção legal de sua dignidade e, para isso, é fundamental o exercício do direito de liberdade, o direito de exercer a sua autonomia e de decidir onde e como deseja morrer. Esta decisão deve ser respeitada. É velho o ditado segundo o qual cada um sabe o que é melhor para si.
Em respeito à pessoa, à sua dignidade e à autodeterminação é que se defende a validade dos chamados Testamentos Vitais. Estes traçam as diretrizes para o reconhecimento da morte como elemento natural da vida, sendo parte da condição humana ser mortal. É humano deixar que a morte ocorra sem o recorrimento a determinados meios artificiais que prolonguem inutilmente a agonia. A intervenção terapêutica contra a vontade do paciente é um atentado contra a sua dignidade.
Diante das bases expostas, resta concluir que, embora a resolução 1.995/2012 publicada no Diário oficial signifique um avanço no âmbito jurídico, ela não é suficiente para que o testamento vital seja amplamente aceito e válido. Tal documento não somente deve encontrar espaço no ordenamento brasileiro como urge reconhecer sua validade por meio de lei, fazendo-se necessária uma reformulação na Constituição Federal. Dessa forma, o Testamento Vital de fato consagraria o direito à autodeterminação da pessoa quanto aos meios de tratamento médico a que pretenda ou não se submeter.
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Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PANTOJA, Rebecca Scalzilli Ramos. Testamento Vital: diretrizes para uma morte digna Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jan 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59072/testamento-vital-diretrizes-para-uma-morte-digna. Acesso em: 25 dez 2024.
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