Resumo: As investigações dos crimes contra a vida, praticados por agente de segurança pública militar em serviço, objeto do presente estudo, após a publicação e vigência da Lei nº 13.491/2017, trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro várias alterações nos tipos penais militares e criou-se lacunas de interpretações jurídicas, sobre as mortes decorrentes da atividade de segurança pública, quando praticados por militares, principalmente na modalidade dos crimes tentados. O presente trabalho tem a intenção de abordar em seu primeiro capítulo, o atual quadro jurídico dos crimes militares, em especial na esfera dos crimes contra a vida, consumados e tentados. Em seguida, no capítulo 02, examinarei a problemática gerada pelas interpretações equivocadas, criando duplicidade de investigações em esferas investigativas distintas na Polícia Civil e Polícia Militar. No capítulo final faz-se uma discussão sobre as políticas públicas que podem agregar na solução destas duplicidades investigativas.
1. Contabilidade dos crimes de homicídios no Brasil
Antes de aprofundarmos no assunto, é de conhecimento geral que no Brasil não existe um padrão no cômputo dos homicídios consumados e tentados. Cada Estado da federação é livre para adotar uma maneira, uma estatística própria, seguindo seus padrões de política pública de segurança.
No tocante as mortes em decorrência de intervenção de agente público de segurança, alguns Estados as computam, outros não. Alguns o fazem de forma apartada, separando-os em estatística própria, não misturando com os homicídios rotineiros, comuns.
2. Conceito de intervenção de agente público de segurança.
Nesta oportunidade, é importante destacar e esclarecer o que seria uma intervenção? O que seria uma morte tida em decorrência por intervenção de agente público de segurança?
O significado do verbo intervir, como verbo transitivo direto e intransitivo, é: Fazer uma intervenção de modo a interferir no desenvolvimento de; Interceder; Utilizar a autoridade; Usar o poder como forma de controle: “o policial interveio durante o assalto”.
Desta maneira, o agente de segurança pública deve agir e interceder contra uma ação criminosa, em decorrência de sua função, em decorrência do dever legal de agir e não se omitir diante de uma injusta agressão de um criminoso a uma vítima ou a um bem juridicamente tutelado.
Sendo assim, a intervenção do agente de segurança pública pode ocorrer mesmo que o agente esteja em seu dia e horário de folga. Ele é agente público 24h. Agora, logicamente, que só poderia reagir, se estiver armado e em condições de exercer tal prerrogativa. Não seria de bom senso, cobrar a um policial numa festa descontraído, com a família, por exemplo, a exercer esse dever de agir, ou a um policial em plena areia da praia desarmado, intervir em um assalto a mão armada. Cada caso tem a sua especificidade.
Cumpre destacar de que se o agente for vítima de uma agressão criminosa, exemplo, vítima de um roubo ou vítima de uma tentativa de homicídio, e há uma reação por sua parte, não há de se falar em intervenção. Mas na própria legítima defesa, vez que, o agente de segurança é vítima da agressão criminosa. Nestes casos, ele não age em legítima defesa de terceiros no exercício de sua prerrogativa funcional, mas do princípio legal de se defender de forma proporcional a uma agressão injusta e iminente.
3. Duplicidade nas investigações de intervenção de agente público de segurança.
A realidade mostra que a maioria dos casos de mortes em decorrência de intervenção de agente público de segurança, ocorrem dentro dos institutos legais da legítima defesa de terceiros e do estrito cumprimento do dever legal.
Ocorre que, a análise jurídica e investigativa dessas excludentes é realizada inicialmente pela polícia judiciária. Estas investigações, em sede de inquérito policial, ao serem elucidadas e confirmadas no final da investigação, são remetidas ao Juízo Criminal da Vara do Tribunal do Júri.
Entretanto, existe o questionamento: E quando não há o evento morte? Teríamos uma tentativa de homicídio com a excludente de legítima defesa de terceiros e do estrito cumprimento do dever legal? Ou apenas lesão corporal com essas excludentes?
A particularidade do fato investigado ser uma tentativa de homicídio ou lesão corporal, praticado por agentes de segurança pública militar, repercute diretamente na competência investigativa do fato.
Após a vigência da Lei nº 13.491/2017, os procedimentos militares, entre eles os crimes militares, receberam uma nova roupagem, uma nova concepção jurídica totalmente distinta da ordem anterior.
As recentes alterações no Código Penal ampliaram o rol dos crimes militares que seriam objeto da Justiça Castrense.
Advém que, existe a problemática na concepção das tipificações de ocorrências das lesões corporais e das tentativas de homicídio por intervenção de agente público de segurança militar. Pois as tentativas de homicídios são da competência do tribunal do júri e da polícia civil. Enquanto que, as lesões corporais por intervenção de agente público de segurança militar, com o advento da lei nº 13.491/2017, serão investigadas pela Polícia Militar.
Essa particularidade só ocorre nas intervenções praticados pelos agentes militares, em decorrência justamente desta legislação. Os demais agentes, como os da Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Penal, não haveria qualquer distinção de competência militar ou comum. Todos seriam julgados pela justiça comum.
Por consequência, após o registro de uma tentativa de homicídio praticado na intervenção de agente público de segurança militar, a investigação será iniciada de pronto pela polícia civil.
Porém, em algumas situações, estamos presenciando que a Polícia Militar entendendo que o fato seria descrito como lesão corporal e não como tentativa de homicídio, inicia a investigação em inquérito policial militar, sem qualquer comunicação a Polícia Civil.
Encetando assim, duas investigações paralelas com duas operativas distintas acerca do mesmo fato. A Polícia Civil investigando o fato como tentativa de homicídio em legítima defesa, em inquérito policial civil e a polícia militar, por sua vez, investigando o mesmo fato, como lesão corporal em sede de inquérito policial militar.
Duas investigações acerca do mesmo fato. E detalhe, com relatos de testemunhas prestando depoimentos nas duas instituições, sobre a mesma ocorrência.
Conforme dicção do artigo 124 da Constituição Federal: “À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”
No tocante, aos militares estaduais o artigo 125, §4º, Constituição Federal, assevera: “Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004)”.
A recente Lei de número 13.491/2017 realizou alterações no Código Penal Militar (decreto-lei nº 1.001/69) ampliando o rol dos crimes militares que seriam objeto da Justiça Castrense. Assim, possuem natureza jurídica de crimes militares os delitos cometidos nas condições previstas no artigo 9º deste diploma legal:
Crimes militares em tempo de paz
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I - os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
f) revogada. (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.
§ 1o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri. (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017)
Desta feita, a luz do critério ratione legis, em período de paz, a identificação da natureza jurídica militar do crime requer que o delito esteja tipificado na parte especial do Código Penal Militar ou em qualquer legislação extravagante, desde que, cumulativamente, se enquadre em uma das hipóteses relacionadas no referido artigo 9º, incisos II e III, do CPM, ou seja, inexistindo esse amoldamento normativo, por consequência, será de crime comum.
No que concerne aos crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civil, a própria norma constitucional estabelece em seu artigo 125, §4º que compete a Justiça Comum o processamento e julgamento por meio do Tribunal do Júri, tal exceção também se encontra no próprio artigo 9º, §1º do CPM. Sendo assim, constitucionalmente definida a competência jurisdicional para processamento e julgamento (Tribunal do Júri), resta a ser analisada a natureza jurídica do crime, bem como a atribuição para instauração e investigação.
A jurisprudência pacífica dos tribunais superiores, bem como a doutrina majoritária classifica o crime doloso contra a vida cometido por militar contra civil como crime comum, cabendo a polícia judiciária civil (federal ou estadual) a instauração e condução da investigação respectiva por meio de Inquérito Policial, e não inquérito militar. No julgamento do Recurso Extraordinário de nº 260.4048 – STF, interposto por policiais militares de acórdão que rejeitou a arguição de incompetência da Justiça comum para o julgamento de crime doloso contra a vida praticado contra civil, o Plenário do Tribunal concluiu, sobre a alteração promovida no Código Penal Militar, que, mais que modificar competências, o dispositivo excluiu do que poderia ser considerado crime militar o delito doloso contra a vida cometido por militar contra civil, em harmonia com a sistemática constitucional.
Nas palavras do Relator, Exmo. Sr. Ministro Moreira Alves
“No caso, o artigo 9º do Código Penal Militar que define quais são os crimes que, em tempo de paz, se consideram como militares, foi inserido pela Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996, um parágrafo único que determina que 'os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum”. Ora, tendo sido inserido esse parágrafo único em artigo do Código Penal Militar que define os crimes militares em tempo de paz, e sendo preceito de exegese (assim, CARLOS MAXIMILIANO, 'Hermenêutica e Aplicação do Direito', 9ª ed., n 367, ps. 308/309, Forense, Rio de Janeiro, 1979, invocando o apoio de WILLOUGHBY) o de que 'sempre que for possível sem fazer demasiada violência às palavras, interprete-se a linguagem da lei com reservas tais que se torne constitucional a medida que ela institui, ou disciplina', não há demasia alguma em se interpretar, não obstante sua forma imperfeita, que ele, ao declarar, em caráter de exceção, que todos os crimes de que trata o artigo 9º do Código Penal Militar, quando dolosos contra a vida praticados contra civil, são da competência da justiça comum, os teve, implicitamente, como excluídos do rol dos crimes considerados como militares por esse dispositivo penal, compatibilizando-se assim com o disposto no 'caput' do artigo 124 da Constituição Federal. Corrobora essa interpretação a circunstância de que, nessa mesma Lei 9.299/96, em seu artigo 2º, se modifica o 'caput' do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar e se acrescenta a ele um § 2º, excetuando-se do foro militar, que é especial, as pessoas a ele sujeitas quando se tratar de crime doloso contra a vida em que a vítima seja civil, e estabelecendo-se que nesses crimes 'a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum'. Não é admissível que se tenha pretendido, na mesma lei, estabelecer a mesma competência em dispositivo de um Código – o Penal Militar – que não é o próprio para isso e noutro de outro Código – o de Processo Penal Militar – que para isso é o adequado”.
Entendimento pacífico também no âmbito de outras Polícias Judiciárias pelo país, por exemplo, a Polícia Judiciária Civil do Estado de Goiás que através do PARECER nº 2017030778 –PCGO (Processo nº 201700016002221), concluiu que:
"(...) Por todo o exposto, compreende-se que a atribuição para apuração dos crimes dolosos contra a vida cometidos por policiais militares em desfavor de civis, em respeito aos ditames do art. 144, §4º, da Constituição Federal, pertence à Polícia Civil, dês que, com o advento da Lei federal n.º 9.299, de 07 de agosto de 1996, os citados delitos foram excluídos do rol do art. 9º, do Código Penal Militar, e, assim, assumiram a natureza jurídica de crimes comuns. A análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, consoante o demonstrado e ao reverso do propalado pelo Comando de Correições e Disciplina da Policia Militar, não autoriza outra conclusão, haja vista restar firmado, de maneira majoritária, o entendimento de que os crimes dolosos contra a vida perpetrados por militares contra civis são crimes comuns, que devem ser apurados por meio de inquérito policial, presidido por Delegado de Polícia. Irrefutável, pois, a adoção, no âmbito da Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária, da Nota Técnica n.º 02/2017, expedida pelo Centro de Apoio Operacional Criminal e de Segurança Pública e pelo Grupo Especial de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público do Estado de Goiás. É o parecer, sub censura. Encaminhem-se os autos ao Gabinete do Excelentíssimo Senhor Delegado-Geral para que o parecer aqui lançado seja apreciado e, se acolhido, sigam à Advocacia Setorial da Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária. ASSESSORIA TÉCNICO-POLICIAL DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE GOIÁS, em Goiânia, aos doze dias de maio do ano dois mil e dezessete. Fabiane Drews Alvim Delegada de Polícia Civil Titular.
4. Conclusão
Ante o exposto, entendo evidente a natureza jurídica de CRIME COMUM nos casos de crimes dolosos (consumados e tentados) contra a vida praticados por militares contra civil, por expressa exceção constitucional, legal e infralegal nos diplomas retro mencionados. Constatada a natureza jurídica de crime comum, por consequência lógica, a atribuição para instauração e investigação dos inquéritos policiais relativos a estes crimes dolosos contra a vida praticados por militares contra civil incumbe, exclusivamente, às Polícias Judiciárias Civis (Estadual ou Federal) e não da Polícia Judiciária Militar.
Ressalto, que como a investigação originária foi aberta e instaurada pela polícia civil, não caberia a polícia militar, iniciar a investigação sem a transferência desta, pela polícia civil.
Realizando uma alusão: a Polícia Civil deveria “passar o bastão” para a Polícia Militar, de forma que haja uma continuidade lógica e um mínimo de organização investigativa dentro das forças policiais de cada estado.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 13.491/2017. Brasília: Senado, 2017.
BRASIL. PARECER nº 2017030778 – PCGO
Delegado de Polícia - PCPE
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRUNO MáRCIO DE AMORIM MAGALHãES, . Duplicidades de investigações nas ocorrências por intervenção de agente público de segurança militar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 set 2022, 04:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59130/duplicidades-de-investigaes-nas-ocorrncias-por-interveno-de-agente-pblico-de-segurana-militar. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
Por: Gabriel Bacchieri Duarte Falcão
Por: Sócrates da Silva Pires
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