Resumo: O presente trabalho trata do tema do controle de convencionalidade que pode ser definido como a análise de compatibilidade da normativa interna face a normativa internacional de direitos humanos. Nesse contexto, serão abordadas as questões referentes aos aspectos dos fundamentos, efeitos e a abordagem da jurisprudência nacional e internacional, especificando mais o tema. As dificuldades em relação à matéria são a ausência de regulamentação em lei, principalmente, e a resistência de compatibilização de normas externas ao ordenamento pátrio. O estudo do tema é importante porque interfere na normativa de direitos humanos e sua concretização, trazendo consequências para a realidade social e jurídica do país. O trabalho tem objetivo descritivo e a avaliação formativa. Conclui-se que o tema não se encontra previsto de forma expressa na legislação interna, necessitando de estudos mais aprofundados para concretização do maior alcance normativa dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos.
Palavras-chaves: Controle de convencionalidade. Direitos Humanos. Força normativa.
Abstract: The current research addresses the issue of control of conventionality, which can be defined as the analysis of the compatibility of internal regulations against (as opposed to) international human rights regulations. In this context, issues related to aspects of the foundations, effects and the approach of national and international jurisprudence will be addressed, specifying the (main) theme further. The challenges related to the matter are two, the resistance of compatibility of external norms to the national legal system and, mainly, the absence of regulation in (the) law. The study of the topic is important because it interferes with human rights regulations and their implementation, bringing consequences to the social and legal reality of the country. The research aims at a descriptive analysis and proposes formative evaluation. It can be concluded that the topic is not explicitly mentioned in the internal legislation, requiring further studies to achieve the greater normative scope of international human rights treaties and conventions.
Key-words: Control of conventionality. Human rights. Normative force.
Introdução:
O estudo do controle de convencionalidade é de suma importância pois, como se verá, é mais um mecanismo de concretização dos direitos humanos. Primordialmente, o controle de convencionalidade é a análise de compatibilidade entre as normas internas dos Estados-partes e as normas internacionais de direitos humanos. Mas, na ausência deste juízo de verificação, a ratificação de Cartas de Direitos Humanos não passará de atos formais sem quaisquer perspectivas de implementação no ordenamento jurídico interno.
O tema começou a ser melhor tratado pela doutrina pátria nos últimos anos. Nos tribunais, ainda é pouco explorado. Nos tribunais internacionais já foi bastante aprimorado, em especial no Tribunal Europeu de Direitos Humanos e na Corte Interamericano de Direitos Humanos.
Neste trabalho, o estudo será feito sob o enfoque interamericano e na doutrina e jurisprudência pátrias.
1. Conceito de controle de convencionalidade
O controle de convencionalidade é a análise de compatibilidade vertical de atos internos de determinado ordenamento jurídico em face de normas internacionais.
Em paralelo ao controle de constitucionalidade, que é o juízo de compatibilidade de leis e atos normativos em face da Constituição Federal, no qual o objeto do controle é a lei (ou ato normativo) e o parâmetro é a Constituição Federal, o controle de convencionalidade tem como objeto os atos internos (comissivos ou omissivos) e, como parâmetro, os tratados internacionais de direitos humanos, os costumes internacionais, os princípios gerais de direito, os atos unilaterais ou resoluções vinculantes de organizações internacionais (RAMOS, 2013).
Ensina André de Carvalho Ramos que, data-se de 1975 o surgimento da expressão “controle de convencionalidade”, na França. Na ocasião, o termo foi utilizado para se referir ao controle doméstico de supralegalidade dos tratados, diante da impossibilidade de acesso das vítimas diretamente à Corte Europeia de Direitos Humanos. Ainda em 1975, existia a Comissão Europeia de Direitos Humanos, órgão para o qual as vítimas deveriam direcionar suas petições.
O controle de convencionalidade pode ser realizado no âmbito interno de cada país, sendo chamado de controle de convencionalidade de matriz nacional. Pode, ainda, ser realizado pelos Tribunais Internacionais, como a Corte Europeia, Interamericana e Africana de Direitos Humanos, pelo que passa a ser denominado de controle de matriz internacional.
O controle de matriz nacional é realizado pelos Tribunais internos. Há quem defenda que o juiz também é legitimado a realizar o controle da lei ou ato normativo interno frente a determinada Convenção de Direitos Humanos, no caso concreto. Neste sentido é a doutrina de Valério de Oliveira Mazzuoli, precursor da discussão do tema no Brasil, que defende a possibilidade de controle judicial por via de exceção – controle difuso ou concreto exercido pelos juízes - e por via direita – controle concentrado ou abstrato exercido pelo STF ou Tribunais de Justiça.
O controle de convencionalidade de matriz nacional é também denominado pela doutrina de provisório ou preliminar, uma vez que, mesmo que o juiz nacional realize o controle de norma interna frente a determinado Tratado de Direitos Humanos, este não vincula os Tribunais Internacionais. Em razão disso, o controle de matriz nacional é, na verdade, um controle nacional de legalidade, supralegalidade ou constitucionalidade (RAMOS, 2013).
Por isso, o controle de convencionalidade de matriz internacional é denominado pela mesma doutrina de controle de convencionalidade autêntico ou definitivo. Este é atribuído a órgãos internacionais, compostos por julgadores independentes e imparciais, que detém a “última palavra” na interpretação de Tratado de Direitos Humanos.
Diante desta dupla possibilidade de controle de uma mesma norma, surge o conceito de duplo controle ou crivo de direitos humanos, que pressupõe a atuação em separado do controle de matriz nacional e do controle de matriz internacional. A interpretação que deve ser feita, de acordo com André de Carvalho Ramos, é de que há uma dupla garantia, ou seja, qualquer ato ou norma deve ser aprovado pelos dois controles, para que sejam considerados respeitados os direitos humanos no Brasil. O autor ensina:
“A partir da teoria do duplo controle, agora deveremos exigir que todo ato interno se conforme não só ao teor da jurisprudência do STF, mas também ao da jurisprudência interamericana, cujo conteúdo deve ser estudado já nas Faculdades de Direito. Só assim será possível evitar o antagonismo entre o Supremo Tribunal Federal e os órgãos internacionais de direitos humanos, impedindo-se a ruptura e estimulando-se a convergência em prol dos direitos humanos.”
2. Fundamentos do controle de convencionalidade
Os fundamentos para a realização do controle de convencionalidade são: a boa-fé das obrigações internacionalmente contraídas e a impossibilidade de alegar as normas internas para a inobservância dos compromissos internacionais.
No artigo 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, da qual o Brasil é signatário, está consignado que “todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé. Assim, há clara violação do dever de boa-fé e de lealdade na conduta do Estado que após diversas tratativas perante a comunidade internacional, ratifica tratado, mas depois o descumpre sob o pretexto que a sua normativa interna é dotada de soberania, jogando a concretização dos direitos humanos para o patamar de mera formalidade.
No artigo 27 da Convenção de Viena, consagra-se que “Uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.
A este respeito surge uma problemática acerca da prevalência das normas. Deve prevalecer a norma interna, em homenagem à soberania dos Estados, ou deve haver a ponderação entre as normas internas e internacionais?
Ramos propõe a superação da discussão entre monistas e dualistas, impondo o chamado “unilateralismo internacionalista radical”, pelo qual “os tratados de direitos humanos devem ser cumpridos, sem considerar qualquer outro argumento de Direito interno”.
Com efeito, a realização da análise das normas é obrigatória de forma a manter a coerência do sistema de proteção de direitos humanos. Ressalte-se que o controle não é um fim em si mesmo. Deve-se analisar o ordenamento jurídico, aqui incluídas as normas internacionais de direitos humanos, uma vez que estas buscam consagrar e concretizar, como o próprio nome diz, os direitos indispensáveis do ser humano.
Cançado Trindade ensina (1993 apud PIOVESAN, 2012): “Com a interação entre o Direito Internacional e o Direito interno, os grandes beneficiários são as pessoas protegidas. (…) No presente contexto, o Direito Internacional e o Direito interno interagem e se auxiliam mutuamente no processo de expansão e fortalecimento do direito de proteção do ser humano”.
Neste diapasão, a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) prevê, no seu artigo 1.1, o direito de garantia e prevenção de violação de direitos humanos:
Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja a sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
O art. 2 da CADH prevê:
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.
3. Efeitos do controle de convencionalidade
Após a realização do controle de convencionalidade, se for constatada a inconvencionalidade de determinada norma, em tese, ela deveria ser expurgada do ordenamento. No ordenamento jurídico brasileiro, porém, uma norma apenas é expurgada quando é tida como inconvencional e inconstitucional, simultaneamente. Essa ideia é compatível com o ensinamento de Mazzuoli que defende é condição de validade da norma a dupla compatibilidade vertical material, em que a norma interna deve ser materialmente compatível com a Constituição Federal e com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Porém, ainda que a norma não passe pela análise da constitucionalidade, uma vez considerada inconvencional, sobre a norma incidirá os efeitos paralisante e de afastamento. A norma permanece “viva”, mas sem ser aplicada, afastando sua aplicação no caso concreto. E, ainda, a eficácia da norma será paralisada, embora ela continue existindo no ordenamento jurídico (PAIVA, 2017).
O ex-juiz da Corte IDH, Eduardo Ferrer Mac-Gregor ensina que o controle de convencionalidade tem três níveis de intensidade: baixo, médio e alto. O nível baixo permite ao intérprete a realização de uma “interpretação conforme” à Convenção de Direitos Humanos, gerando um efeito construtivo, em que a norma não seria considerada inválida, mas teria seus efeitos limitados à determinada interpretação em conformidade com o tratado internacional.
No controle de nível médio não há forma de compatibilizar a aplicação da norma interna com a norma internacional. O intérprete deixa de aplicar a norma interna, concretizando o efeito paralisante e de afastamento. Já o controle alto, verifica-se quando o intérprete possui o poder de expulsar a norma doméstica do ordenamento jurídico interno. No Brasil, apenas o STF ou determinado Tribunal de Justiça – a depender da natureza da norma em análise – podem exercer o controle de convencionalidade neste grau (PAIVA, 2017).
Com relação ao efeito sobre as partes, o controle de convencionalidade interno é semelhante ao controle de constitucionalidade. No controle difuso, a regra é que a decisão terá efeitos ex tunc e inter partes. No controle concentrado, a decisão terá efeitos erga omnes, ex tunc e vinculante, em regra.
4. Controle de convencionalidade na Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) já se debruçou diversas vezes sobre o controle de convencionalidade. Não poderia ser diferente, visto que a Corte IDH é o órgão legitimado para a análise de compatibilidade de leis internas frente a Convenção Americana de Direitos Humanos e demais Convenções no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos.
Alguns casos são paradigmáticos pois trataram diretamente da doutrina do controle de convencionalidade.
O caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile inaugurou a discussão na Corte IDH. Nele, a Corte IDH estabeleceu o dever do Poder Judiciário, por seus Tribunais e juízes, em exercê-lo. Para a Corte, “(…) quando um Estado ratifica um tratado internacional como a Convenção Americana, seus juízes, como parte do aparato estatal, também estão submetidas a ela, o que os obriga a velar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam diminuídos pela aplicação de leis contrárias a seu objeto e a seu fim e que, desde o início, carecem de efeitos jurídicos”. Pode-se concluir que o controle de convencionalidade tem natureza de questão de ordem pública, podendo ser analisado pelos juízes de ofício.
No caso Guelman vs. Uruguai, a Corte IDH reafirmou que toda autoridade pública tem o poder-dever de exercer o controle de convencionalidade. Não somente os membros do Poder Judiciário, mas também toda e qualquer autoridade pública tem esse dever. A Corte IDH estabelece uma diretriz no sentindo de “(…) os juízes e órgãos vinculados à administração de justiça, em todos os níveis, possuem a obrigação de exercer ex officio um controle de convencionalidade entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e da normativa processual correspondente” (PAIVA, 2017). No mesmo sentido a Corte IDH decidiu no Caso dos Trabalhadores Demitidos do Congresso vs. Peru (MAZZUOLI, 2011).
A Corte IDH definiu, ainda, que o controle de ofício deve ter como parâmetro a jurisprudência por ela formada. No julgamento do caso Cabrera Garcia e Montiel Flores vs. México, a Corte afirmou que “a atuação dos órgãos nacionais (incluindo os juízes), além de aplicar a normativa interna que os rege, têm a obrigação de seguir as orientações e diretrizes dos pactos internacionais que o Estado-parte, no gozo de sua soberania, reconheceu expressamente e cujo compromisso internacional assumiu”.
Já no caso Olmedo Bustos e outros vs. Chile, em que se analisou a violação ao direito de liberdade de expressão na proibição de exibição do filme “A Última Tentação de Cristo”, a Corte IDH firmou o entendimento de que as normas constitucionais originárias podem ser objeto do controle de convencionalidade. Para a Corte IDH, a natureza interna da normal é um mero fato perante a comunidade internacional, não podendo servir como excludente de responsabilidade internacional por violação de direitos humanos (PAIVA, 2017).
Por fim, a competência consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos também forneceu parâmetros para o controle de convencionalidade. Na Opinião Consultiva nº 21/2014, cujo tema de consulta eram “os direitos da criança e adolescentes em situação de rua”, solicitada pela Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, a Corte IDH entendeu que as opiniões consultivas também são normas paramétricas para controle de convencionalidade (PAIVA, 2017).
5. A proteção dos direitos humanos no direito brasileiro
O controle de convencionalidade de matriz nacional brasileiro tem como fundamento o direito constitucional. A Constituição Federal prevê, no art. 5º, §§ 2º e 3º, consagra expressamente a supremacia hierárquica dos tratados internacionais sobre as normas infraconstitucionais. É importante a análise da hierarquia, visto que o controle jurisdicional da convencionalidade pressupõe justamente a posição superior do Tratado Internacional em comparação com a lei interna que será analisada.
O parágrafo 3º do artigo 5º foi acrescentado à Carta Magna pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004. Ele dispõe que “Os tratados e convenções internacionais de direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Este dispositivo concede clara posição constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos incorporados pelo rito legislativo semelhante ao das emendas à constituição.
Mas, antes mesmo desta adição ao texto constitucional, parte da doutrina entendia que o parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal já asseguraria hierarquia constitucional a tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. O mencionado dispositivo dispõe que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Para os Flávia Piovesan e Cançado Trindade, por exemplo, este dispositivo deve ser interpretado como uma cláusula aberta, concedendo aos direitos previstos nos tratados de direitos humanos, independentemente do rito pelo qual foram incorporados ao ordenamento interno, o status constitucional.
O prof. Cançado Trindade foi o autor da proposta perante a Assembleia Nacional Constituinte de inclusão do parágrafo segundo ao artigo 5º da Constituição Federal. Para ele, o parâmetro para saber se se deve aplicar a norma doméstica ou internacional não é a hierarquia da norma no ordenamento, mas qual delas protege mais o indivíduo. O Direito Internacional não seria superior ao Interno pela forma, mas pela substância, ou seja, se fornecer proteção mais ampla (GALINDO, 2005).
A Constituição Federal, apenas com este dispositivo, teria concedido aos direitos internacionais uma natureza especial, ou seja, a natureza de norma constitucional. Essa conclusão advém ainda de interpretação sistemática e teleológica da Carta Suprema, especialmente em face da força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional (PIOVESAN, 2012).
Apesar deste entendimento parecer mais condizente com a força expansiva dos direitos humanos, no julgamento do RE 466.343, o Supremo Tribunal Federal entendeu que os tratados de direitos humanos podem ter dois níveis hierárquicos, a depender do rito de incorporação dos tratados. Aqueles tratados incorporados pelo rito ordinário têm hierarquia infraconstitucional, mas hierarquia supralegal. Por sua vez, os tratados incorporados pelo procedimento especial do artigo 5º, §3º, da Constituição Federal têm hierarquia constitucional.
Assim, não prevalece a doutrina da cláusula aberta do artigo 5º, §2º, da Constituição, embora, em termos de controle de convencionalidade, qualquer tratado de direitos humanos devidamente ratificado e incorporado ao ordenamento interno, possa ser utilizado como parâmetro do controle de convencionalidade. Mazzuoli defende que a norma interna deve passar por uma dupla compatibilidade vertical material como condição de validade, devendo vencer o escrutínio da Constituição Federal e dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Parece-nos que o primeiro vislumbre de juízo de adequação material da normativa interna brasileira ocorreu na análise da validade da norma constitucional que admite a prisão civil do depositário infiel, prevista no artigo 5º, LXVII, da Carta Magna. A Convenção Americana de Direitos Humanos, no artigo 7.7, consagra que “ninguém será detido por dívidas (…)”. O STF, ao se debruçar sobre a questão, editou a súmula vinculante nº 25 com o seguinte teor: É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito. Interessante é que a norma constitucional não foi revogada, deixando de ser aplicável, em virtude do efeito paralisante dos tratados de direitos humanos (SARLET, 2015). É que, por ser uma norma constitucional originária, o Supremo Tribunal Federal não poderia revogá-la, pois o próprio Tribunal Supremo não admite a tese das “normas constitucionais inconstitucionais” (PAIVA, 2017).
O crime de desacato, previsto no artigo 331 do Código Penal brasileiro, é constantemente questionamento pelos atores da justiça, pois configura efeito inibitório ao direito de liberdade de expressão dos indivíduos perante a conduta dos funcionários públicos. A Corte IDH já se manifestou sobre o crime de desacato, considerando-o inconvencional. No caso Palamara Iribarne vs. Chile, a Corte determinou ao Chile a adoção de medidas para modificar a legislação interna para torná-la compatível com os parâmetros internacionais em matéria de liberdade de pensamento e expressão. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em expresso controle de convencionalidade num caso concreto, decidiu que a existência de tal norma no ordenamento jurídico brasileiro é inaceitável, pois faz com que as pessoas se abstenham de usufruir do direito à liberdade de expressão (PAIVA, 2017). Em 2020, o STF, em sentido contrário, entendeu que o crime de desacato é constitucional.
A divergência entre a jurisprudência interna e externa mais emblemática é a do caso Guerrilha do Araguaia, também chamada de Gomes Lund vs. Brasil. Este caso trata da responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de aproximadamente setenta pessoas, dentre elas integrantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e camponeses da região do Araguaia, no estado do Tocantins, entre 1972 e 1975. Do ocorrido, resultou a chamada Lei de Anistia, que concedeu o perdão aos agentes da ditadura envolvidos nas violações de direitos humanos da época. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos submeteu o caso à Corte IDH, que julgou o Estado brasileiro responsável pela violação de diversos direitos dos envolvidos, considerando, ainda, incompatíveis com a CADH a anistia de graves violações de direitos humanos. O STF, em sentido lamentavelmente contrário, no julgamento da ADPF 153, que a Lei de Anistia foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988.
6. Considerações Finais:
A análise da validade da norma interna deve ser realizada, prioritariamente, pelos órgãos domésticos para manter a harmonia das normas internas e internacionais dos direitos humanos. É preciso relembrar que é um compromisso da própria Constituição Federal a prevalência de direitos humanos nas relações internacionais da República Federativa do Brasil (artigo 4º, II, Constituição Federal). Como visto, é poder-dever das autoridades competentes em exercer esta análise, sob pena de se considerar os Tratados de Direitos Humanos com vigência no país como meras folhas de papel. Assim, cabe a outros atores do sistema de justiça, entre eles o Ministério Público e a Defensoria Pública, provocar os juízes e Tribunais locais. A Defensoria Pública, pela redação do artigo 134 da Constituição Federal é promotora dos direitos humanos. Assim, deve agir diante de leis inconvencionais ou às omissões limitadoras de gozo de direitos humanos.
Por fim, nota-se que o ordenamento jurídico brasileiro já teve a oportunidade de realização do controle de convencionalidade diversas vezes, havendo tão somente uma atuação direta discreta do STJ. Há, portanto, um longo caminho para a inclusão sistemática do controle de convencionalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Não pela formalidade em si, mas como forma de incluir no ordenamento mais um mecanismo de concretização dos direitos humanos.
Referências bibliográficas:
GALINDO, George Rodrigo Bandeira. O §3º do art. 5º da Constituição Federal: um retrocesso para a proteção internacional dos direitos humanos no Brasil. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r28552.pdf. Acesso em 07 de setembro de 2022.
MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
PAIVA, Caio Cezar; HEEMAN, Thimotie Aragon. Jurisprudência Internacional de Direitos Humanos. 2 ed. Belo Horizonte: Editora CEI, 2017.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 13 ed., rev. E atual. São Paulo: Saraiva, 2012.
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
SARLET, Ingo Wolfgang. Prisão civil do depositário infiel e o “controle de convencionalidade”. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-abr-24/direitos-fundamentais-prisao-civil-depositario-infiel-controle-convencionalidade. Acesso em 08 de setembro de 2022.
Advogada. Graduada pela Universidade Potiguar.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MEDEIROS, Romeica Resende de. O controle de convencionalidade no ordenamento jurídico brasileiro. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 set 2022, 04:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59163/o-controle-de-convencionalidade-no-ordenamento-jurdico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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