RESUMO: O presente artigo se dispõe a analisar as formas de reconhecimento de paternidade socioafetiva estabelecidas pelo Provimento nº 63/2017 do CNJ. Analisa, ainda, os argumentos estabelecidos pelo CNJ como fundamentos para a edição do referido ato normativo.
PALAVRAS-CHAVE: reconhecimento; paternidade; socioafetiva.
ABSTRACT: This article aims to analyze the forms of recognition of socio-affective paternity established by Provision No. 63/2017 of the CNJ. It also analyzes the arguments established by the CNJ as grounds for issuing the aforementioned normative act.
KEYWORDS: recognition; paternity; socio-affective.
INTRODUÇÃO
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, em 14 de agosto de 2019, editou e publicou o Provimento nº 83/2019, instrumento que trouxe marcante facilitação no reconhecimento da paternidade socioafetiva no Brasil.
Com efeito, o referido ato normativo alterou o Provimento nº 63/2017 do CNJ, tendo modificado o caput do artigo 10 e acrescentado outros dispositivos que versam a respeito desta temática.
Neste sentido, representa um verdadeiro avanço no reconhecimento de outra forma de filiação, já presente na realidade fática das relações familiares brasileiras, dando suporte institucional e normativo às pessoas que vivenciam estas realidades.
Tal ferramenta funciona, pois, como um efetivo mecanismo de garantia e de efetividade da dignidade da pessoa humana, que abarca, por óbvio, os aspectos relacionados às dinâmicas familiares e todas as formas de paternidade, numa compreensão abrangente de família.
Salienta-se que a paternidade socioafetiva, antes da edição do supramencionado Provimento nº 83/2019, já vinha sendo objeto de ações judiciais com a finalidade do seu reconhecimento, não sendo fruto apenas de uma iniciativa isolada do Conselho Nacional de Justiça, como órgão do Poder Judiciário Brasileiro.
É importante frisar, ainda, que a socioafetividade e as suas consequências encontram relevante amparo na doutrina brasileira, como uma decorrência dos princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana.
Ademais, o Código Civil brasileiro prevê a possibilidade de o parentesco ser resultante de outra origem que não a consanguinidade.
É importante pontuar também que a Constituição Federal de 1988 reconhece os mesmos direitos e as mesmas qualificações aos filhos, independentemente da forma da paternidade/maternidade, havidos ou não da relação matrimonial ou por adoção, sendo vedada qualquer designação discriminatória em relação à filiação.
Nota-se, então, que o provimento nº 63/2017 do CNJ confere segurança jurídica à paternidade ou à maternidade socioafetiva já estabelecida no mundo dos fatos, inclusive no que tange aos aspectos patrimoniais e sucessórios.
1. FORMAS DE RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
O artigo 10, caput, do Provimento nº 63/2017 do CNJ, com redação dada pelo Provimento nº 83/2019, estabelece expressamente que o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais.
Da leitura do referido dispositivo, depreende-se que, em caso de adolescentes e adultos, a paternidade ou a maternidade socioafetiva pode ser reconhecida em âmbito administrativo, pela via do ofício de registro civil das pessoas naturais.
Tal compreensão decorre da necessária relação entre o disposto no Provimento e o disposto no artigo 2º, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que preconiza que são adolescentes aqueles que possuem entre doze e dezoito anos de idade.
A contrario sensu, não se pode reconhecer a paternidade ou a maternidade socioafetiva de crianças pela via administrativa, devendo ser eleita a via judicial para esta finalidade, havendo vedação normativa neste sentido.
O parágrafo primeiro do artigo 10 prevê a irrevogabilidade do reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, somente podendo haver desconstituição pela via judicial, nos casos de vício de vontade, fraude ou simulação.
É, pois, uma forma de evitar manipulação do reconhecimento de vínculos de filiação de forma indevida, que pode trazer prejuízos à segurança jurídica, ao patrimônio público e a terceiros, de modo geral.
Já o parágrafo segundo veda o reconhecimento de paternidade ou maternidade por pessoa menor de dezoito anos de idade, independentemente do estado civil, em consonância com o disposto no artigo 40 do ECA, no que tange à adoção.
No parágrafo seguinte, consta a vedação de reconhecimento de paternidade ou maternidade socioafetiva entre irmãos entre si e por ascendentes, na linha da vedação à adoção por tais pessoas, constante do artigo 42, parágrafo 1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que já vem sofrendo interpretações menos literais no âmbito judicial.
O parágrafo quarto estabelece a obrigatoriedade de o pretenso pai ou mãe ser ao menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido, em conformidade com o disposto no artigo 42, parágrafo 3º, do ECA, no que concerne à adoção.
O artigo 10-A, caput, prevê dois elementos fundamentais para o reconhecimento da filiação socioafetiva: a estabilidade do vínculo afetivo e a exteriorização social de tal relação.
Tais elementos, se reunidos, indicam a existência de paternidade ou maternidade socioafetiva e caracterizam-se por formar o que a doutrina e a jurisprudência reconhecem como posse do estado de filho.
É importante ressaltar que o paragrafo 1º do referido artigo aponta que o registrador, no caso concreto, em âmbito administrativo, deverá atestar a existência do vínculo afetivo da paternidade ou maternidade socioafetiva mediante apuração objetiva, verificando os elementos concretos.
Neste contexto, todos os meios de prova em direito admitidos poderão ser utilizados para comprovar a socioafetividade, a exemplo de documentos; apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência social; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; vínculo de conjugalidade - casamento ou união estável- com o ascendente biológico; inscrição como dependentes do requerente em entidades associativas; fotografias em celebrações relevantes; declaração de testemunhas com firma reconhecida; etc.
Estas formas de comprovação estão expressamente mencionadas no parágrafo 2º do artigo 10-A do Provimento nº 63/2017 do CNJ, sendo, por óbvio, um rol meramente exemplificativo de meios de comprovação da socioafetividade.
A evidência de que este rol não é exaustivo é a previsão, no parágrafo seguinte, no sentido de que a ausência destes documentos não impede o registro, desde que justificada a impossibilidade e que o registrador ateste como apurou o vínculo socioafetivo.
Outrossim, dispõe o parágrafo 4º que os documentos colhidos na apuração do vínculo socioafetivo deverão ser arquivados pelo registrador (originais ou cópias), juntamente com o requerimento.
Um importante avanço trazido no artigo 11, caput, do Provimento nº 63/2017, é a possibilidade de o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva ser processado perante o oficial de registro civil das pessoas naturais, ainda que diverso daquele em que foi lavrado o assento, mediante a exibição de documento oficial de identificação com foto do requerente e da certidão de nascimento do filho, ambos em original e cópia, sem constar do traslado qualquer menção à origem da filiação.
Trata-se, pois, de fundamental garantia da igualdade dos vínculos de filiação, vedando qualquer designação discriminatória à filiação socioafetiva.
O parágrafo 4º do artigo11 dispõe que, se o filho for menor de 18 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento.
Já o paragrafo 8º estabelece que o reconhecimento pode ocorrer por meio de documento público ou particular de disposição de última vontade, desde que seguidos os demais trâmites estabelecidos no Provimento nº 63/2017.
O artigo 12 preconiza que, em caso de o oficial registrador suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração da posse do estado de filho, fundamentará a recusa, não praticará o ato e encaminhará o pedido ao juiz competente.
Por sua vez, o artigo 13 prevê que a discussão judicial sobre o reconhecimento da paternidade ou de procedimento de adoção obstará o reconhecimento da filiação pela sistemática estabelecida no Provimento nº 63/2017.
Neste contexto, o parágrafo único do artigo 13 prevê a obrigatoriedade de o requerente declarar o desconhecimento da existência de processo judicial em que se discuta a filiação do reconhecido, sob pena de incorrer em ilícito civil e penal.
O artigo 14, caput, dispõe que o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro e mais de dois pais e de duas mães no campo filiação no assento de nascimento.
No parágrafo 1º consta a disposição de que somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado materno ou materno, pois a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo deverá tramitar pela via judicial, conforme parágrafo 2º.
Há, ainda, a previsão de que o reconhecimento espontâneo da paternidade ou maternidade socioafetiva não obstaculizará a discussão judicial sobre a verdade biológica.
2. FUNDAMENTOS PARA A EDIÇÃO DO PROVIMENTO Nº 63/2017 DO CNJ
O Conselho Nacional de Justiça – CNJ, ao editar o Provimento nº 63/2017, por intermédio do Corregedor Nacional de Justiça, utilizou-se de suas atribuições legais e constitucionais, levando em consideração o poder fiscalizatório e normativo do Poder Judiciário quanto aos atos praticados por seus órgãos, nos termos do artigo 103-B, §4º, I, II e III, da Constituição Federal.
Levou em consideração, ainda, a competência do Poder Judiciário de fiscalizar os serviços notariais e registrais, nos moldes dos artigos 103-B, §4º, I e III; e 236, §1º, da Constituição Federal.
Todavia, no que concerne especificamente à paternidade ou maternidade socioafetiva, os fundamentos utilizados pelo CNJ abrangem aspectos doutrinários, jurisprudenciais e legislativos.
Com efeito, quando da edição do referido Provimento, já existiam normas regulamentadoras dos procedimentos de reconhecimento voluntário de paternidade e maternidade socioafetiva perante os oficiais de registro civil de pessoas naturais editadas pelas Corregedorias-Gerais de Justiça de Estados.
Tal contexto decorre, inexoravelmente, da existência de ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial deste instituto, de modo a contemplar os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana, como vetores axiológicos das relações familiares.
A título de exemplo da aceitação jurisprudencial da paternidade ou maternidade socioafetiva, o Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 898.060/SC, reconheceu que o mero fato de existir paternidade socioafetiva no caso concreto, declarada ou não em âmbito registral, não obsta o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante fundamentado nos laços biológicos, com os efeitos jurídicos próprios.
Neste contexto, também é reconhecida em âmbito jurisprudencial e doutrinário a paternidade ou a maternidade socioafetiva em famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo, com supedâneo no entendimento do STF na ADPF nº 132/RJ e na ADI nº 4.277/DF.
É importante frisar, ainda, que o CNJ considerou o princípio da igualdade jurídica e de filiação, como instrumento de isonomia em sua dimensão substancial, de modo a impedir ilegítimas distinções baseadas em elementos discriminatórios.
Estes princípios, de fundamental relevância para uma nova compreensão das relações familiares e de suas novas modalidades, encontram previsão constitucional nos artigos 5º, caput; e 227, §6º, respectivamente.
Nesta senda, é absolutamente vedada qualquer distinção ilegítima entre filhos, independentemente da forma de filiação, se havidos ou não da relação matrimonial, ou por adoção, se decorrente de laços consanguíneos ou socioafetivos.
O ordenamento jurídico brasileiro, como se vê, cria barreiras intransponíveis para discriminações no âmbito familiar, de modo a tutelar, em todas as dimensões, a igualdade das filiações, sendo vedadas, inclusive, as designações discriminatórias.
Do mesmo modo, acompanhando o mandado constitucional de não discriminação no âmbito da filiação, o Código Civil, no seu artigo 1596, preconiza que os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Na compreensão de filiação, nos termos supramencionadas, por óbvio, está englobada a filiação socioafetiva, uma vez que o espectro protetivo da Constitucional e do Código Civil abrange todas as concepções de maternidade ou paternidade,
Como se vê, há uma rede protetiva de normas, entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que garantem a nova compreensão das relações familiares.
A antiga noção de família, baseada nos laços consanguíneos e nos aspectos matrimoniais, transformou-se em uma compreensão de família eudemonista, tendo como fundamento maior os laços afetivos e a busca da felicidade em todas as suas dimensões.
E, atento à nova realidade, neste sentido caminhou o Conselho Nacional de Justiça ao editar o Provimento nº 63/2017, com posterior redação dada pelo Provimento nº 83/2019.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 10 de setembro de 2022.
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: <https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2525>. Acesso em: 10 de setembro de 2022.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.> Acesso em: 10 de setembro de 2022.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>.
Graduado em Direito pela Universidade do Estado da Bahia-UNEB;
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Haeckel Rodrigo Bulcão da. Paternidade socioafetiva e suas formas de reconhecimento: uma análise do Provimento nº 63/2017 do CNJ Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2022, 04:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59204/paternidade-socioafetiva-e-suas-formas-de-reconhecimento-uma-anlise-do-provimento-n-63-2017-do-cnj. Acesso em: 23 dez 2024.
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