Resumo: As agências reguladoras foram criadas para uma atuação independente, sem se curvar a interesses quaisquer, sejam eles de usuários, de prestadores de serviços concedidos ou do próprio poder público. O objetivo foi evitar as mais diversas pressões de setores importantes da economia, afastando-se privilégios. Após 25 anos da criação das primeiras agências reguladoras, o que se viu ao longo do tempo foi um desvirtuamento dos objetivos traçados no momento da concepção desse modelo. Muitas questões passaram a ser debatidas. Qual o real papel das agências reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro? Quais os limites do seu poder regulamentador? Quão autônomos são, de fato, esses órgãos? Quanto aos seus dirigentes, temos realmente visto indicações pelo perfil técnico ou as agências tornaram-se moeda de troca política? A influência dos setores econômicos e a interferência política têm sido frequentes? Os serviços públicos estão sendo fiscalizados a contento? A atuação das agências tem sido pautada para estimular uma concorrência salutar entre empresas? Esses órgãos reguladores estão, de fato, cumprindo sua função social e agindo para garantir serviços de qualidade e tarifas justas? E o mais relevante: os direitos do consumidor, parte mais vulnerável da relação a ser regulada, têm sido observados? A pesquisa, pautada em fontes bibliográficas e documentais, justifica-se para demonstrar a importância dos órgãos reguladores, mas do modo como foram concebidos em nosso Estado. Nossa missão será comprovar que serviços adequados, contínuos e eficientes serão obtidos se os setores econômicos forem devidamente regulados, observando, em especial, os interesses da parte mais vulnerável da relação, isto é, o consumidor.
Palavras-chave: Direito das Relações de Consumo; Direito Administrativo; Direitos Humanos Fundamentais; Agências Reguladoras; Sociedade de Consumo
Abstract: The regulatory agencies were created to act independently, without bowing to any interests, whether those of users, providers of granted services or the government itself. The goal was to avoid the most diverse pressures from important sectors of the economy, ruling out privileges. Twenty-five years after the creation of the first regulatory agencies, what has been seen over time is a distortion of the objectives outlined at the time of conception of this model. Many questions started to be debated. What is the real role of regulatory agencies in the Brazilian legal system? What are the limits of their regulatory power? How autonomous are these agencies in fact? As for their leaders, have we really seen nominations for technical profile or have the agencies become a political bargaining chip? Has the influence of economic sectors and political interference been frequent? Are public services being adequately supervised? Are the agencies acting to stimulate healthy competition among companies? Are these regulatory agencies, in fact, fulfilling their social function and acting to ensure quality services and fair tariffs? And most importantly, have the rights of the consumer, the most vulnerable part of the relationship to be regulated, been observed? The research, based on bibliographic and documental sources, is justified in order to demonstrate the importance of regulatory agencies, but the way they were conceived in our state. Our mission will be to prove that adequate, continuous and efficient services will be obtained if the economic sectors are properly regulated, observing, especially, the interests of the most vulnerable part of the relation, that is, the consumer.
Keywords: Consumer Relations Law; Administrative Law; Fundamental Human Rights; Regulatory Agencies; Consumer Society
1. Introdução
Após três décadas de vigência da Lei 8.078/90, o consumidor ainda não se vê plenamente amparado. Diuturnamente seus direitos são desrespeitados, mostrando o destemor dos fornecedores ante as reprimendas previstas na legislação.
A lei consumerista tem sua gênese no texto constitucional, que concedeu à tutela do consumidor status de direito fundamental e de princípio geral da ordem econômica. Os direitos dos consumidores têm um grau de relevância tamanha que podem ser considerados integrantes do rol de direitos humanos constitucionalmente consagrados. Inegável, portanto, a importância atribuída à proteção dos consumidores em nosso país.
A tutela dos consumidores, direito fundamental do cidadão, relaciona-se à salvaguarda de seus direitos econômicos e sociais na consecução de um Estado Democrático de Direito. Resguardar esses direitos constitui fator preponderante para formação de uma sociedade livre, justa e solidária, para o desenvolvimento nacional, para erradicação da pobreza, além da redução das desigualdades e promoção do bem comum, objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, como preconiza o artigo 3º da nossa Lei Maior.
As relações de consumo, considerando-se a evolução da sociedade, podem ser vistas como a materialização da cidadania, que, por sua vez, manifesta-se na disponibilização aos consumidores do pleno acesso a produtos e serviços públicos essenciais.
As transformações econômicas do Estado brasileiro na década de 1990 extinguindo certas restrições ao capital estrangeiro, flexibilizando monopólios estatais e instituindo o Programa Nacional de Desestatização, por exemplo, acarretaram a transferência para iniciativa privada de atividades até então exploradas pelo setor público.
Alterou-se, portanto, a posição do Estado, que deixou de prestar diretamente serviços e intervir em setores econômicos, ampliando, porém, a sua atuação regulatória.
Nesse contexto, surgem as agências reguladoras no Brasil. No momento em que o modelo de Estado era alterado por Emendas à Constituição de 1988, a atividade regulatória passou a ser prevista, de modo expresso, no texto constitucional. Assim, setores como o de telecomunicações e de petróleo passaram a contar com órgãos reguladores autônomos.
O impacto das decisões das agências reguladoras na vida dos consumidores é incontestável. Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), apenas para citar algumas delas, regulam setores vitais para as relações de consumo.
A atuação das agências reguladoras e a tutela dos interesses dos consumidores é o que se pretende abordar nesse artigo.
2. Constitucionalização e a defesa do consumidor como direito fundamental
A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXXII, traz uma imposição ao Estado. Determina-se que seja promovida, na forma da lei, a defesa do consumidor. Trata-se de importante dispositivo que, reforçado pelo artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”), fundamenta a legislação consumerista do nosso país, composta por normas de ordem pública e de interesse social.
Essa posição dada à defesa dos consumidores, isto é, alocação entre os direitos e garantias fundamentais demonstra a relevância do tema em nosso país. Ressalte-se que essa importância é reiterada em outros dispositivos constitucionais, como o artigo 170, inciso V, quando atribui à defesa do consumidor a estatura de princípio da ordem econômica.
Segundo Claudia Lima Marques, “certos estão aqueles que consideram a Constituição Federal de 1988 como o centro irradiador e o marco de reconstrução de um direito privado brasileiro mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade, um direito privado solidário. Em outras palavras, a Constituição seria a garantia (de existência e de proibição de retrocesso) e o limite (limite-guia e limite-função) de um direito privado construído sob seu sistema de valores e incluindo a defesa do consumidor como princípio geral”.[1]
Nesse contexto, especialmente após a vigência do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990), fortalecendo, pois, o movimento consumerista no país, estrutura-se o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), regulamentado pelo Decreto Presidencial nº 2.181, de 20 de março de 1997, composto por Procons, Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacias de Defesa do Consumidor, Juizados Especiais Cíveis e Organizações Civis de defesa do consumidor para atuação articulada e integrada com a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon).
Isso tudo tem ligação direta com o fenômeno da constitucionalização do direito, ou seja, a supremacia da Constituição vigendo por todo ordenamento jurídico. Temas afetos a ramos infraconstitucionais passam a constar do texto constitucional. Assim, os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras constitucionais passam a balizar a validade e o sentido de todas as normas infraconstitucionais.
A Constituição de 1988, elaborada após período de exceção, é exemplo desse fenômeno, trazendo forte conteúdo social e normas programáticas (metas a serem atingidas pelo Estado). Há uma concepção protetiva aos direitos de fraternidade e solidariedade, que a doutrina identifica como direitos de terceira dimensão. Pode-se dizer, ainda, que há o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana, o que aproxima a ciência jurídica da Filosofia.
Nessa esteira da constitucionalização, a defesa do consumidor adquire status de direito fundamental que, segundo Ingo Wolfgang Sarlet[2], baseado em Robert Alexy, é toda aquela posição jurídica relativa às pessoas, que, do ponto de vista do Direito Constitucional positivo, foi, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade material), integrada ao texto da Constituição e, assim, retirada da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal).
Ao se elevar um determinado direito à categoria de direito fundamental é possível compreender que a ele está se atribuindo significativa carga valorativa por abranger, em sua essência, questões relativas à estrutura básica do Estado e da sociedade.
Assim, temos que a defesa do consumidor formalmente é um direito fundamental, mas materialmente também o é, dado o vínculo existente com o princípio da dignidade humana, buscando-se a realização de necessidade básica do homem, em especial numa sociedade pós-moderna, que é a necessidade de consumir.
3. Direitos do consumidor como direitos humanos
Os direitos humanos são aqueles inerentes ao homem pelo simples fato de sua existência, cuja finalidade é assegurar a sua dignidade e evitar sofrimentos. Em uma visão kantiana, diz-se haver o direito da humanidade na própria pessoa. Os direitos humanos convergem para preservação da dignidade humana, de modo que ao se concretizar aqueles, se assegurará esta.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), em seus primeiros artigos, traz um conceito mais contemporâneo para humanidade ao asseverar, em especial, que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotadas de razão e consciência e devem agir em relação ao próximo com espírito fraterno.
Tratando-se de humanidade e fraternidade, vale relembrar Kant: “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente com um fim e nunca como um meio”.[3]
Mais comumente, vê-se a terminologia direitos humanos empregada em questões afetas ao direito internacional. Porém, a expressão direitos humanos fundamentais ganhou espaço em nosso ordenamento jurídico especialmente por conta do Título II da nossa Constituição (artigo 17). José Afonso da Silva entende ser mais adequado falar-se em direitos fundamentais do homem, uma vez que “além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”.[4] Assim, temos que os direitos fundamentais do homem tem por finalidade a garantir a dignidade, a igualdade e a liberdade da pessoa humana.
Não nos parece haver dúvidas que a defesa do consumidor é um direito humano, porquanto a necessidade do homem em consumir para sua própria existência reflete na garantia de sua dignidade. Ademais, sendo a parte vulnerável, o consumidor recebe do Estado, mormente a partir da Constituição de 1988 e dentro de uma visão social e humanista, uma proteção também para equilibrar a relação de consumo.
O Código de Defesa do Consumidor, portanto, tem por premissa a presunção de desigualdade jurídica entre consumidor e fornecedor, tendo por escopo resguardar a dignidade da parte mais frágil dessa relação.
4. O Código de Defesa do Consumidor como sistema multidisciplinar e diálogo das fontes
O Código de Defesa do Consumidor é tratado como um microssistema multidisciplinar ao congregar diversos ramos do Direito para efetivar a proteção pretendida ao consumidor. Trata-se de um reflexo da sociedade pluralista pós-moderna. Assim, surge a necessidade de se coordenar as leis existentes no mesmo ordenamento de modo a propiciar um sistema jurídico que se mostre eficiente e justo. Isso significa dar um passo a mais na tradicional metodologia de solução de conflitos. Busca-se, doravante, mais que a mera utilização de critérios como anterioridade, especialidade e hierarquia. Quer-se uma harmonização e coordenação entre as normas que compõem o ordenamento jurídico, permitindo uma maior eficiência funcional de um sistema que é plural e complexo.
É nessa esteira que o jurista alemão Erik Jayme propõe uma coordenação de fontes de modo a estabelecer coerência ao sistema jurídico e alcançar sua finalidade. Surge, pois, a expressão diálogo das fontes, permitindo, de forma coordenada, aplicar-se mais de uma norma ao mesmo tempo e ao mesmo caso, quer seja complementarmente, subsidiariamente ou permitindo opção voluntária das partes acerca da fonte prevalente.[5] Essa doutrina foi trazida ao Brasil por Claudia Lima Marques.
No tocante ao Código de Defesa do Consumidor, temos normas de Direito Constitucional (acerca da dignidade da pessoa humana); de Direito Civil (sobre responsabilidade civil do fornecedor); de Direito Processual Civil (ao tratar de ônus da prova, por exemplo); de Direito Processual Civil Coletivo (no que se refere à tutela coletiva do consumidor); Direito Administrativo (proteção administrativa do consumidor); Direito Penal (infrações penais).
Assim como o Direito do Consumidor, como um microssistema, abrange diversas disciplinas, o Direito Regulatório, que trata com mais detalhamento das agências reguladoras, também deve ser estudado por diversos prismas, como o da Administração Pública, o da Economia e do Direito.
Aqui cabe uma menção a Edgar Morin, filósofo cuja centralidade do seu pensamento, ancorada em sua teoria da complexidade do pensamento, reside na necessidade de se encontrar conhecimento relevante em nossa constante busca para compreender o sentido das experiências vividas. Para tanto, não podemos estar reduzidos apenas e tão somente ao ponto de vista de uma única disciplina. O conhecimento deve ser visto e trabalhado como um todo conectado.
Diz o filósofo que “vivemos numa realidade multidimensional, simultaneamente econômica, psicológica, mitológica, sociológica, mas estudamos estas dimensões separadamente e não umas em relação com as outras. O princípio de separação torna-nos talvez mais lúcidos sobre uma pequena parte separada do seu contexto, mas nos torna cegos ou míopes sobre a relação entre a parte e o seu contexto”.[6]
Ainda sobre o diálogo das fontes, vale destacar o modo de conformação das leis na visão de Claudia Lima Marques, em especial ao tratar do Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil. Segundo a doutrinadora, são três os tipos de “diálogo” possíveis entre essas leis, a saber:
a-) aplicação simultânea das duas leis, servindo uma de base conceitual para a outra, o que ela chama de diálogo sistemático de coerência, especialmente se uma lei é geral e a outra especial, se uma é a lei central do sistema e outra um microssistema específico, não completo materialmente, apenas com completude subjetiva de tutela de um grupo da sociedade. Podemos citar como exemplo a definição de decadência, não trazida pela lei consumerista, mas presente no Código Civil;
b-) aplicação coordenada das duas leis, podendo uma lei complementar a aplicação da outra, dependendo do seu campo de aplicação no caso concreto, a indicar a aplicação complementar tanto de suas normas quanto de seus princípios, no que couber, no que for necessário ou subsidiariamente. É o chamado diálogo sistemático de complementaridade e subsidiariedade em antinomias aparentes ou reais. O sistema geral de responsabilidade civil sem culpa, por exemplo, pode ser utilizado para regular aspectos de casos envolvendo consumidor, se a norma lhe for mais favorável;
c-) há, ainda, o diálogo das influências recíprocas sistemáticas, como em uma possível redefinição do campo de aplicação de uma lei, por exemplo, no caso das definições de consumidor stricto sensu e de consumidor equiparado sofrerem influências finalísticas do novo Código Civil, com a finalidade de se regular relações entre iguais (dois iguais consumidores). É o chamado diálogo de coordenação e adaptação sistemática.[7]
5. A sociedade de consumo e seus riscos
Vivemos uma sociedade que incentiva a todo momento um consumo cada vez maior, levado pela emoção, sem que haja entendimento claro dos indivíduos para as consequências que esse comportamento desordenado possa causar.
Rachel Carson, em sua obra “Primavera silenciosa”, que inaugura o movimento ambientalista moderno, traduziu o temor que lhe acometia no tocante ao avanço da tecnologia em uma trajetória mais veloz que o senso de responsabilidade moral da humanidade. Carson, mesmo sendo alvo de duras críticas, fomentou um debate nos Estados Unidos da América acerca dos riscos à fauna, flora e aos seres humanos no que se refere ao uso de pesticidas, sugerindo adoção de políticas públicas tendentes à regulação do setor químico.
Uma das preocupações da autora era o impacto aos seres vivos que vivem no solo, importantes para o equilíbrio ecossistêmico, ao serem expostos ao poder de substâncias químicas. O solo passa ter sua produtividade comprometida e afetam tudo o que dele depende. Plantas têm crescimento afetado e tendem a morrer, porém, as que produzem frutos o fazem de forma já contaminada pelo efeito tóxico.
A pretexto de se produzir mais, de forma mais ágil, dinâmica, o ser humano deixa de lado uma reflexão ambiental. Importante é produzir a qualquer custo e lucrar mais. Os impactos ao meio ambiente são significativos, sendo a atuação humana a responsável pela destruição de solo, ar, rios, mares.
Edward O. Wilson, em sua obra “Diversidade da Vida”, questionou a moralidade da ação humana pela ausência do comando da consciência moderado pelo exame racional das consequências.[8] Nessa obra o autor faz menção a catástrofes que interromperam a evolução e empobreceram a diversidade de fauna e flora ao longo de milhões de anos. Assevera que os 5 primeiros desastres ecológicos custaram entre 10 e 100 milhões de anos para reparação. Uma sexta catástrofe, no entanto, poderá ser irreversível.
Ulrich Beck, sociólogo alemão, cunhou a expressão “sociedade de risco” para designar a sociedade que produz riscos e ameaças sobre as bases naturais da vida. O autor rompe com a categorização tradicional do tempo segundo as ideias de passado, presente e futuro. Passado e futuro fazem parte do presente da sociedade capitalista.
Para Beck, o risco não significa catástrofe, mas a antecipação da catástrofe. Os riscos encenam o futuro no presente de forma que a antecipação da catástrofe futura no presente possa vir a ser política de transformação.
A distribuição de riscos em uma sociedade industrial, de produção não tem correspondência com diferenças sociais, econômicas e geográficas como na chamada primeira modernidade. O autor alemão entende que o desenvolvimento da ciência e da técnica já não podem prever e controlar os riscos que contribuíram para criar e que trazem consequências graves para saúde humana e para o meio ambiente, desconhecidas em um longo prazo, mas que, ao serem descobertas, tendem a ser irreversíveis.
Os riscos apontados por Beck são de várias ordens. São riscos ecológicos, químicos, nucleares e genéticos, que são produzidos pela indústria, externalizados e individualizados economicamente, legitimados cientificamente, mas que podem ser minimizados se implementadas políticas públicas adequadas.
Ressalte-se que a sociedade de risco não se resume aos riscos ambientais e de saúde. Há uma série de modificações na sociedade que devem ser consideradas, por exemplo as transformações em padrões de emprego com aumento da insegurança laboral e cada vez menos influência das tradições e hábitos familiares na identidade individual, o que faz mudar o comportamento humano.
O conceito de sociedade de risco se cruza com o de globalização. Os riscos são “democráticos” e afetam nações e classes sociais diversas, sem respeitar quaisquer fronteiras. Todavia, a distribuição de riqueza é concentrada. Os riscos, inevitavelmente, atingirão quem os produziu. Aqueles que possuem alguma riqueza terão condição melhor de buscar meios de proteção, ao passo que os demais, a grande maioria, estarão sujeitos aos acontecimentos e ao sofrimento consequente deles.
E quem está por trás das ações que geram esses riscos para a humanidade? O próprio homem. Como agentes de escolhas, os indivíduos passam a ter, segundo Beck, um “elevado nível de controle e responsabilidade quanto à exposição aos perigos” e seriam os próprios “produtores e gestores da sua carga de riscos”.
Para esse autor, o sujeito é elemento central das ações no mundo e a individualização é analisada a partir do contexto da “modernidade reflexiva”, isto é, deriva de um processo de radicalização da modernidade, rompendo-se com as previsibilidades da vida social, contrapondo-se à ideia de que somente uma forma de modernidade existe, qual seja, a da sociedade industrial.
A existência de risco é marca da nossa sociedade, seja como resultado da globalização, da industrialização ou mesmo do processo de tomada de decisões. Está característica está em nosso cotidiano, em nosso dia a dia. É a própria pós-modernidade em nossas vidas com toda sua urgência, com todos seus riscos.
A modernização traz consequências que ameaçam as condições básicas de vida. Beck aponta que vivemos em uma civilização que ameaça a si mesma. A incessante produção de riqueza é acompanhada por uma igualmente incessante produção social de riscos globalizados, atingindo indistintamente todas as nações, todos os povos.
Em uma pós-moderna sociedade de consumo, ou de hiperconsumo, há suficiente consciência dos riscos que são gerados e suas consequências? Parece-nos que não, como não nos parece haver medidas concretas para se evitar riscos e danos. Trata-se de uma questão cultural, enraizada ao longo do tempo nos indivíduos, que prezam o ter, o possuir, o prazer, sem dimensionar o que o futuro pode reservar para a atual e futuras gerações.
6. Breve histórico sobre a criação das Agências Reguladoras
As Agências Reguladoras surgiram no final do século XIX nos Estados Unidos, mais especificamente em 1887, quando o Interstate Commerce Act constituiu um marco para uma nova gestão pública naquele país. Foi por meio dele que regras para práticas tarifárias das companhias ferroviárias foram fixadas, criando-se, inclusive, uma autoridade independente para regular o setor denominada Interstate Commerce Comission.
Ante a fragilidade do Estado norte-americano nos anos 1880, a constituição de instituições sólidas e autônomas ao Poder Executivo para regulação de serviços públicos essenciais aos cidadãos tornou-se algo fundamental. Essas instituições, para desempenho do seu papel regulamentar, necessitavam de quadro técnico qualificado. Para efetividade de suas funções também se fazia relevante que o processo de elaboração e aprovação das regras para os setores essenciais fosse despido de qualquer viés burocrático próprio da administração pública.
A Interstate Commerce Comission foi o modelo para que outras instituições regulatórias independentes surgissem nos Estados Unidos. Essa independência em relação ao Poder Executivo justifica-se para que houvesse atuação imparcial, sem pressões políticas, voltada para implementação de políticas públicas perenes, mediante adoção de decisões técnicas.
Desse modo, a sociedade americana, cansada da burocracia que pautava a administração pública, absorveu esse novo modelo de regulação de setores essenciais de forma bastante positiva. E essa experiência bem-sucedida logo atravessou o Atlântico, desembarcando no continente europeu.
No entanto, foi na década de 1930, durante a chamada Grande Depressão, que as agências reguladoras tomaram corpo, fruto dos programas implementados nos Estados Unidos, entre 1933 e 1937, pelo governo do presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar a economia norte-americana (“New Deal”), em crise ante ao modelo liberal clássico vigente.
A proliferação dessas agências resultou em questionamentos quanto a sua legitimidade para regulação de setores essenciais para a sociedade americana. Isso em razão de seus membros não se submeterem a sufrágio, ou seja, embora técnicos, não eram escolhidos pelo povo, contrapondo-se ao que ocorria na administração burocrática predominante.
A constitucionalidade dessas instituições também era questionada. Juristas americanos ponderavam que o modelo carecia de conformação constitucional, alguns tratando-o como anomalia jurídica, sem enquadramento no ordenamento vigente no país.
Por outro prisma, a sociedade depositava nessas agências independentes sua confiança para consecução de medidas que atendessem os interesses dos cidadãos, de forma mais objetiva e imparcial do que as autoridades eleitas. Era a própria sociedade, portanto, que conferia a essas instituições a legitimidade.
Todavia, para evitar o abuso de poder e a interferência indiscriminada no mercado econômico por parte das agências, o governo americano edita, em 1946, a Lei de Procedimento Administrativo, como um mecanismo de formalização procedimental e homogeneização do funcionamento dos órgãos administrativos, possibilitando o controle judicial das decisões finais das agências pelo Poder Judiciário.
Na década de 1980, a ampla discricionariedade técnica das agências e o acúmulo de regras fez com que o governo Ronald Regan adotasse uma proposta de desregulamentação, observando-se o engessamento de setores importantes da economia americana. O Poder Judiciário, assim, passou a apreciar a real necessidade de regulamentos, considerando o prisma da razoabilidade. E dessa maneira, o modelo inicial de agências reguladoras, independentes e autônomas, restou contestado, reduzindo-se a sua função reguladora.
O que se viu a partir de então foi uma atuação em defesa da concorrência, afastando-se as agências da sociedade civil e as aproximando da Administração Direta e do mercado. Essas instituições perdem a ingerência em relação aos agentes privados e seus atos regulatórios passam a ser controlados externamente.
7. Surgimento das Agências Reguladoras no Brasil
O Brasil, na década de 1980, convivia com uma economia estagnada e altos índices inflacionários. O Estado, intervencionista, dava sinais de desgaste, sendo incapaz de prestar serviços públicos essenciais de qualidade. A atuação estatal na atividade econômica fez crescer a máquina administrativa, fazendo esgotar-se a capacidade de investimento, além de revelar total ineficiência de gestão. As diferenças sociais tornavam-se mais gritantes, a pobreza mais evidente e a corrupção mais endêmica. Premente, portanto, a necessidade de um Estado mais enxuto, abrindo à iniciativa privada a prestação de serviços até então sob a égide do poder público.
Na década de 1990, com o Programa Nacional de Desestatização, o Estado adota nova postura, transferindo para a iniciativa privada a prestação de serviços e, por conseguinte, adquirindo um novo papel de regulação do mercado. No atendimento do interesse público, passa a editar normas e fiscalizar as concessionárias, permissionárias e autorizatárias, de modo a garantir a continuidade e a qualidade dos serviços, resguardando os interesses da parte mais frágil dentro da relação econômica: o consumidor-usuário.
Em princípio, ante a baixa qualidade dos serviços oferecidos aos cidadãos, esperava-se que essa melhor regulação dos setores econômicos fosse gerar maior benefício a toda sociedade. Ao menos, essa era a perspectiva ao final da década de 1990, quando o modelo aqui foi implantado, algo que já não se confirmou logo nos primeiros anos de atividade dos órgãos reguladores.
No Brasil, as agências reguladoras surgiram para regular setores importantes da vida econômica antes vinculados à máquina estatal. Nos Estados Unidos, por sua vez, os órgãos reguladores foram criados para regrar setores não submetidos a qualquer regulamentação.
São agências reguladoras “entidades administrativas com alto grau de especialização técnica, integrantes da estrutura formal da administração pública, instituídas como autarquias sob regime especial, com a função de regular um setor específico de atividade econômica ou um determinado serviço público, ou de intervir em certas relações jurídicas decorrentes dessas atividades, que devem atuar com a maior autonomia possível relativamente ao Poder Executivo e com imparcialidade perante as partes interessadas (Estado, setores regulados e sociedade)”.[9]
Desse modo, a criação das agências reguladoras em nosso país, na esteira da desestatização de parte da prestação de serviços públicos, portanto, ante a uma nova configuração do Estado, trouxe consigo alguns pressupostos, como a defesa do interesse público e o equilíbrio nas relações de consumo no setor regulado.
8. Como estão estruturadas as Agências Reguladoras no Brasil
As agências reguladoras, criadas por lei específica e tidas como autarquias especiais, são dotadas de autonomia administrativa, financeira e patrimonial. Seus dirigentes, com mandatos fixos, são indicados pelo Presidente da República e, após aprovação pelo Senado Federal, por ele nomeados.
Esse modelo foi pensado para uma atuação independente, sem privilegiar interesses quaisquer, sejam eles de usuários, de prestadores de serviços concedidos ou do próprio poder público. O objetivo, portanto, foi de se evitar as mais diversas pressões de setores importantes da economia, afastando-se eventuais privilégios, especialmente nos casos de convivência entre empresas estatais e privadas na prestação de serviço público.
Agir de modo isento não significa que, ao disciplinar e controlar certas atividades, as agências reguladoras não tenham que se pautar por princípios constitucionalmente consagrados de proteção do consumidor.
9. A Lei Geral das Agências Reguladoras Federais (Lei 13.848/2019)
O aperfeiçoamento das normas referentes às agências reguladoras é algo recorrentemente cobrado pela iniciativa privada e pelos consumidores, buscando-se uma maior segurança jurídica e a melhor gestão desses órgãos reguladores.
Nesse contexto, em 26 de junho de 2019 foi publicada a Lei nº 13.848/2019, que dispõe sobre a gestão, a organização, o processo decisório e o controle social das agências reguladoras. É possível a existência de agências reguladoras municipais, estaduais e federais. Essa norma, entretanto, refere-se apenas às agências reguladoras em âmbito federal.
Sobre a natureza especial conferida à agência reguladora, a lei, em seu artigo 3º, ressalta que ela se caracteriza pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos. Outras disposições da própria Lei 13.848/2019, além das leis específicas de cada agência reguladora também conferem características especiais a esses órgãos.
No tocante à autonomia administrativa, a lei menciona as seguintes competências (art. 3º, § 2º):
I - solicitar diretamente ao Ministério da Economia:
a) autorização para a realização de concursos públicos;
b) provimento dos cargos autorizados em lei para seu quadro de pessoal, observada a disponibilidade orçamentária;
c) alterações no respectivo quadro de pessoal, fundamentadas em estudos de dimensionamento, bem como alterações nos planos de carreira de seus servidores;
II - conceder diárias e passagens em deslocamentos nacionais e internacionais e autorizar afastamentos do País a servidores da agência;
III - celebrar contratos administrativos e prorrogar contratos em vigor relativos a atividades de custeio, independentemente do valor.
Algo bastante relevante expresso na lei refere-se à adoção de práticas de gestão de riscos e de controle interno (compliance), bem como elaboração e divulgação de programa de integridade para ações institucionais voltadas para prevenir, detectar, punir e remediar eventuais fraudes e atos de corrupção. São mecanismos que reforçam a necessidade de observância dos fins públicos para os quais foram criadas as agências reguladoras. Temos, pois, uma evidência de que autonomia difere de independência.
O atendimento ao interesse público é reiterado na legislação ao se tratar do processo decisório das agências reguladoras. Além de atentar-se ao princípio da proporcionalidade, há ainda o dever de motivar suas deliberações, inclusive quanto à edição ou não de atos normativos.
Outro ponto importante refere-se à Análise de Impactos Regulatórios (AIR). A adoção e as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos e consumidores deverão ser precedidas de Análise de Impacto Regulatório, trazendo informações e dados sobre possíveis efeitos do ato normativo.
O Decreto nº 10.411, de 30 de junho de 2020, regulamenta o conteúdo e a metodologia da Análise de Impacto Regulatório, os requisitos mínimos que serão objeto de exame, bem como os casos em que sua realização é obrigatória e aqueles em que poderá ser dispensada.
Nos casos em que a realização da Análise de Impacto Regulatório for dispensada, deverá ser disponibilizada, no mínimo, nota técnica ou documento equivalente que tenha fundamentado a proposta de decisão.
Elaborado relatório da Análise de Impacto Regulatório, caberá ao Conselho Diretor ou Diretoria Colegiada manifestar-se sobre adequação da proposta de ato normativo aos objetivos pretendidos, indicando se os impactos estimados recomendam sua adoção, e, quando for o caso, quais os complementos necessários.
Essa manifestação da diretoria da agência reguladora somada ao relatório da Análise de Impacto Regulatório compõem a documentação que será disponibilizada para se realizar consulta ou audiência pública.
A consulta pública é o instrumento de apoio à tomada de decisão por meio do qual a sociedade é consultada previamente, para que sejam enviadas críticas, sugestões e contribuições por quaisquer interessados, sobre proposta de norma regulatória aplicável ao setor de atuação da agência reguladora.
A audiência pública é o instrumento de apoio à tomada de decisão por meio do qual é facultada a manifestação oral por quaisquer interessados em sessão pública previamente destinada a debater matéria relevante.
As leis que criaram a ANEEL, ANATEL, ANP, ANTAQ, ANTT, ANAC e ANM têm previsão de consulta pública prévia à edição de normas obrigatoriamente. Ao passo que as leis que disciplinam a ANVISA, ANCINE, ANA e ANS facultam a utilização desses mecanismos de participação.
A Lei Geral das Agências Reguladoras uniformiza essa questão, devendo a consulta pública ocorrer previamente à edição de qualquer ato normativo de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários.
Ao prever participação popular no processo normativo das agências, a Lei 13.848/2019 buscou conferir maior legitimidade, transparência e qualidade às decisões desses órgãos reguladores, além de reduzir possíveis distorções interpretativas posteriores.
Ressalte-se, entretanto, que a Lei Geral das Agências Reguladoras obriga a realização de consulta pública apenas nos processos normativos, não disciplinando sobre consultas públicas em outros processos decisórios da agência, podendo restar comprometida a transparência e eficiência que a lei busca atingir.
O artigo 9º, § 5º, da Lei Geral das Agências Reguladoras prevê que deverá ser disponibilizado o posicionamento do órgão regulador acerca das críticas ou as contribuições apresentadas no processo de consulta pública em até 30 (trinta) dias úteis após a reunião do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada para deliberação final sobre a matéria. Ou seja, ao não acatar as ponderações oriundas do processo de consulta pública, a direção da agência reguladora deverá esclarecer a razão de não o ter feito, muito embora não haja previsão de sanções quando da ausência dessa motivação.
Frise-se que as reuniões deliberativas do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada da agência reguladora serão públicas e gravadas em meio eletrônico, exceto quando se tratar de deliberações sobre documentos classificados como sigilosos e matéria de natureza administrativa.
Quanto ao controle externo das agências reguladoras, essa missão caberá ao Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas da União.
A agência reguladora deverá elaborar relatório anual circunstanciado de suas atividades, destacando o cumprimento da política do setor, definida pelos Poderes Legislativo e Executivo, e o cumprimento dos planos estratégico e de gestão anual, que têm por objetivo, conforme artigo 15, § 1º, da Lei 13.848/2019:
I - aperfeiçoar o acompanhamento das ações da agência reguladora, inclusive de sua gestão, promovendo maior transparência e controle social;
II - aperfeiçoar as relações de cooperação da agência reguladora com o poder público, em particular no cumprimento das políticas públicas definidas em lei;
III - promover o aumento da eficiência e da qualidade dos serviços da agência reguladora de forma a melhorar o seu desempenho, bem como incrementar a satisfação dos interesses da sociedade, com foco nos resultados;
IV - permitir o acompanhamento da atuação administrativa e a avaliação da gestão da agência.
Destaque-se a promoção do aumento da eficiência e da qualidade dos serviços do órgão regulador para melhoria do seu desempenho, tendo como foco a satisfação dos interesses da sociedade, algo que, por vezes, não se concretiza na prática.
Ao se falar em informação eficiente, a lei determina que a agência reguladora deverá implementar um plano de comunicação voltado à divulgação de suas atividades e dos direitos dos usuários perante a própria agência, bem como as empresas que compõem o setor regulado.
O artigo 31 da Lei 13.848/2019 prevê que no exercício de suas atribuições, e em articulação com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) e com o órgão de defesa do consumidor do Ministério da Justiça e Segurança Pública, incumbe às agências reguladoras zelar pelo cumprimento da legislação de defesa do consumidor, monitorando e acompanhando as práticas de mercado dos agentes do setor regulado.
Já o artigo 32 da referida lei autoriza as agências reguladoras a celebrarem, com força de título executivo extrajudicial, termo de ajustamento de conduta com pessoas físicas ou jurídicas sujeitas a sua competência regulatória.
Enquanto perdurar a vigência do termo de ajustamento de conduta, ficará suspensa, em relação aos fatos que deram causa a sua celebração, a aplicação de sanções administrativas de competência da agência reguladora à pessoa física ou jurídica que o houver firmado. Ainda, a agência reguladora deverá ser comunicada quando da celebração do termo de ajustamento de conduta a que se refere o § 6º do artigo 5º da Lei nº 7.347/85, caso o termo tenha por objeto matéria de natureza regulatória de sua competência.
10. As Agências Reguladoras e a tutela dos consumidores
São constantes as reclamações, por parte dos consumidores, no tocante às ações promovidas pelas agências reguladoras. Algumas, vale dizer, ao priorizarem os setores econômicos e os investimentos privados, são lesivas aos direitos do consumidor, sendo frustrada a expectativa de se ter no Estado um aliado na fiscalização dos prestadores de serviços públicos.
Para melhor desempenho da função reguladora, a escolha dos dirigentes das agências deveria ser pautada por critérios eminentemente técnicos, sem prevalência de influências político-partidárias. Ao se permitir que esses órgãos expeçam regulamento específico para um setor econômico relevante, fundamental a qualificação técnica de seus dirigentes para correta tomada de decisões.
A Lei Geral das Agências Reguladoras, ao alterar a Lei 9.986/2000, estabeleceu novos requisitos para o Presidente, Diretor-Presidente ou Diretor-Geral e os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada das agências reguladoras:
Art. 5º O Presidente, Diretor-Presidente ou Diretor-Geral (CD I) e os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada (CD II) serão brasileiros, indicados pelo Presidente da República e por ele nomeados, após aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea “f” do inciso III do art. 52 da Constituição Federal, entre cidadãos de reputação ilibada e de notório conhecimento no campo de sua especialidade, devendo ser atendidos 1 (um) dos requisitos das alíneas “a”, “b” e “c” do inciso I e, cumulativamente, o inciso II:
I - ter experiência profissional de, no mínimo:
a) 10 (dez) anos, no setor público ou privado, no campo de atividade da agência reguladora ou em área a ela conexa, em função de direção superior; ou
b) 4 (quatro) anos ocupando pelo menos um dos seguintes cargos:
1. cargo de direção ou de chefia superior em empresa no campo de atividade da agência reguladora, entendendo-se como cargo de chefia superior aquele situado nos 2 (dois) níveis hierárquicos não estatutários mais altos da empresa;
2. cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 ou superior, no setor público;
3. cargo de docente ou de pesquisador no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa; ou
c) 10 (dez) anos de experiência como profissional liberal no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa; e
II - ter formação acadêmica compatível com o cargo para o qual foi indicado.
Outras vedações para membros do Conselho Diretor ou Diretoria Colegiada foram previstas nos artigos 8º-A e 8º-B, da Lei 9.986/2000, alterada pela Lei 13/848/2019.
São alterações relevantes, uma vez que, ao longo dos anos, temos verificado o poderio econômico de grandes empresas e o jogo político pouco republicano desvirtuarem as agências reguladoras dos objetivos iniciais para os quais elas foram criadas. A atuação das agências passou a beneficiar interesses de grandes grupos econômicos em detrimento da parte mais frágil na relação: o consumidor. Ressalte-se que a participação efetiva dos usuários de serviços públicos na tomada de decisões dos órgãos reguladores ainda inexiste, em que pese os novos ditames da Lei Geral das Agências Reguladoras.
O fenômeno denominado captura das agências reguladoras, notadamente quando se verificam distorções do interesse público em favor do interesse privado, é fomentado pela enorme pressão do poder econômico das empresas reguladas e de grupos de interesses, afetando atuação isenta dos órgãos reguladores e, principalmente, descumprindo um mandamento constitucional de promoção, pelo Estado, da defesa do consumidor.
Sem um equilíbrio necessário de forças, o que temos presenciado é a redução, cada vez mais frequente, da eficiência e da qualidade dos serviços prestados, justamente o oposto do que se esperava quando da criação do modelo regulatório brasileiro.
Poucos são os instrumentos utilizados para coibir afrontas aos direitos dos consumidores. Revisão de valores tarifários abusivos, encampação, aplicação de sanções são raramente vistas.
Em meio à pandemia causada pela Covid-19, quando inúmeros trabalhadores perderam seus empregos ou tiveram seus vencimentos reduzidos, a diretoria da ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) aprovou, em 30 de junho de 2020, novas tarifas para a distribuidora de eletricidade Enel São Paulo, representando elevação média de 4,23% para os consumidores da empresa, cerca de 18 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo.
A revisão periódica da tarifa está prevista nos contratos de concessão com a ANEEL. A agência que regula o setor de energia elétrica alegou que o aumento da tarifa teve por objetivo obter o equilíbrio com base na remuneração dos investimentos das empresas e a cobertura de despesas efetivamente reconhecidas pela ANEEL. Em nenhum momento, no entanto, uma breve referência aos consumidores e as consequências advindas da crise causada pelo novo coronavírus. Percebe-se que há preocupação de se “manter o equilíbrio” apenas para um dos lados da relação de consumo, sem dar alternativas para a parte mais vulnerável.
Em 15 de julho de 2020, o Presidente da República sancionou o novo marco legal do saneamento, abrindo espaço para a iniciativa privada atuar com maior fôlego na exploração dos serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto. Um dos principais pilares do novo marco é proibir que empresas públicas estaduais, que hoje dominam o setor, contratem, sem processo licitatório, com municípios, permitindo que a iniciativa privada participe mais ativamente desse mercado.
Embora se tenha expectativa de privatizações e investimentos maciços neste setor, há quem vislumbre que essa universalização dos serviços de saneamento somente se dará com aumento das tarifas, mais uma vez penalizando os consumidores. Isso porque as cidades pouco atrativas aos investimentos privados podem continuar nas mãos do setor público, que apenas teria alguma condição de ampliar a oferta dos serviços com aumento tarifário.
Caberá à Agência Nacional de Águas (ANA) formular as diretrizes regulatórias para o setor, inclusive a definição das tarifas pagas pelos consumidores. A intenção é centralizar em uma única agência reguladora a edição de normas referenciais para adoção pelos órgãos reguladores estaduais e empresas do setor. Embora ainda recente o regramento do setor, importante um olhar atento para que, novamente, não recaia sobre o consumidor mais uma carga sob o pretexto da expansão dos serviços de saneamento básico.
Como podemos observar em apenas dois exemplos, a atividade regulatória do Estado não tem espelhado de forma preponderante o interesse coletivo. Ao contrário, privilegia-se setores econômicos e políticos. Quando o interesse do consumidor é suplantado pelos interesses privados, frustram-se os objetivos iniciais pelos quais foram idealizadas as agências reguladoras.
Ao se afastar do atendimento ao interesse público, cedendo às pressões da iniciativa privada, as decisões das agências reguladoras alijadas de boa técnica são questionadas perante o Poder Judiciário. Entretanto, valendo-se do princípio da deferência, o Poder Judiciário exime-se da apreciação das questões que lhe são submetidas, deixando os consumidores dos serviços sem respaldo.
Quando se pronuncia, entretanto, o Poder Judiciário vai além da análise de aspectos procedimentais, como o devido processo legal, a legalidade, a razoabilidade e a proporcionalidade das decisões administrativas. A interferência judicial é mais profunda, ingressando em meandros de uma complexa cadeia normativa, manifestando-se sobre o mérito e conveniência das decisões regulatórias, por vezes sem conhecimento técnico suficiente para tanto.
Apenas com a harmonização dos interesses e a observância dos ditames constitucionais acerca dos direitos dos consumidores é que será possível afastar o descrédito do atual modelo regulatório vigente em nosso país.
Por esse motivo, relevante relembrar como foram concebidos os órgãos reguladores em nosso Estado. Serviços adequados, contínuos e eficientes serão obtidos se os setores econômicos forem devidamente regulados, observando, em especial, os interesses da parte mais vulnerável da relação, isto é, o consumidor.
Acerca da competência normativa das agências reguladoras, o Plenário do Supremo Tribunal Federal [10] registrou que “o advento das agências reguladoras setoriais representa inegável aperfeiçoamento da arquitetura institucional do Estado de Direito contemporâneo no sentido do oferecimento de uma resposta da Administração Pública para fazer frente à complexidade das relações sociais verificadas na modernidade. A exigência de agilidade e flexibilidade cada vez maiores do Estado diante das ininterruptas demandas econômicas e sociais que lhe são direcionadas levou à emergência de estruturas administrativas relativamente autônomas e independentes — as chamadas agências — dotadas de mecanismos aptos e eficazes para a regulação de setores específicos, o que inclui a competência para editar atos qualificados como normativos. Nesse contexto, o escopo do modelo regulatório adotado no Brasil não se reduz à regulação concorrencial, não se limitando à correção das chamadas “falhas de mercado”. Pelo contrário, incorpora também instrumentos necessários para o atingimento de objetivos gerais de interesse público: regulação social, e não apenas econômica”.
Preocupante, contudo, quando a legitimidade das agências reguladoras para exercer poder normativo confunde-se com nomeações dos seus dirigentes não por critérios técnicos, mas políticos. Nesse contexto, temos verificado a influência das empresas privadas prestadoras de serviço público nas decisões dos dirigentes das agências, contrariando, assim, o interesse dos consumidores. Com novas regras trazidas pela Lei Geral das Agências Reguladoras, estabelecendo novos requisitos para nomeação do Presidente, Diretor-Presidente ou Diretor-Geral dos órgãos reguladores, bem como para os demais membros do Conselho Diretor ou da Diretoria Colegiada, espera-se que essa questão seja superada e o rigor técnico prevaleça para a melhor regulação de setores essenciais da economia.
11. Conclusão
No momento em que o Estado transfere para a iniciativa privada a prestação de serviços, a Administração Pública adquire um novo papel de regulação do mercado. Atendendo ao interesse público, deve editar normas e fiscalizar as concessionárias, permissionárias e autorizatárias, de modo a garantir a continuidade e a qualidade dos serviços, resguardando os interesses da parte mais frágil dentro da relação econômica: o consumidor-usuário.
Assim, a organização da atividade econômica através do Estado passou a ser realizada por órgãos reguladores dotados de autonomia: as agências reguladoras. Em princípio, ante a baixa qualidade dos serviços oferecidos aos cidadãos, esperava-se que essa melhor regulação dos setores econômicos fosse gerar maior benefício a toda sociedade. Ao menos, essa era a perspectiva ao final da década de 1990, algo que já não se confirmou logo nos primeiros anos de atividade dos órgãos reguladores.
Para melhor desempenho da função reguladora, a escolha dos dirigentes das agências deve ser pautada por critérios eminentemente técnicos, sem prevalência de influências político-partidárias. Ao se permitir que esses órgãos expeçam regulamento específico para um setor econômico relevante, fundamental a qualificação técnica de seus dirigentes para correta tomada de decisões.
Ao longo dos anos, o que se verificou foi o poderio econômico de grandes empresas e o jogo político pouco republicano desvirtuarem as agências reguladoras dos objetivos iniciais para os quais elas foram criadas. A atuação das agências passou a beneficiar interesses de grandes grupos econômicos em detrimento da parte mais frágil na relação: o consumidor. Ressalte-se que a participação efetiva dos usuários de serviços públicos na tomada de decisões dos órgãos reguladores inexiste.
Sem um equilíbrio necessário de forças, o que temos presenciado é a redução, cada vez mais frequente, da eficiência e da qualidade dos serviços prestados.
Poucos são os instrumentos utilizados para coibir afrontas aos direitos dos consumidores. Revisão de valores tarifários abusivos, encampação, aplicação de sanções são raramente vistas.
A atividade regulatória do Estado não tem espelhado de forma preponderante o interesse coletivo. Ao contrário, privilegia-se setores econômicos e políticos. Quando o interesse do consumidor é suplantado pelos interesses privados, frustram-se os objetivos iniciais pelos quais foram idealizadas as agências reguladoras e descumpre-se um mandamento constitucional de promoção estatal da defesa do consumidor.
Ao se afastar do atendimento ao interesse público, cedendo às pressões da iniciativa privada, as ações das agências reguladoras são questionadas perante o Poder Judiciário. Entretanto, valendo-se do princípio da deferência, o Poder Judiciário exime-se da apreciação das questões que lhe são submetidas, deixando os consumidores dos serviços sem respaldo. Também é entendimento do Superior Tribunal de Justiça que não há falar-se em legitimidade da agência reguladora para atuar no feito como litisconsorte passivo em demanda que se pretende discutir relação contratual entre consumidor e concessionária de serviço público.
Apenas com a harmonização dos interesses e a observância dos ditames constitucionais acerca dos direitos dos consumidores é que será possível afastar o descrédito do atual modelo regulatório vigente em nosso país.
Justificando o interesse pelo tema e sua relevância, buscamos demonstrar que o sistema regulatório idealizado para nosso país é, sim, capaz de atender as expectativas havidas em sua concepção, porém, há que se preservar o caráter técnico do corpo diretivo das agências, há que se elevar o controle de setores econômicos essenciais à sociedade, que se atentar para a vulnerabilidade dos consumidores e a necessidade de preservação de seus direitos, mediante firme e eficiente fiscalização dos setores regulados, além de termos a possibilidade de rever decisões, de forma adequada e efetiva, pelo Poder Judiciário.
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[1] BENJAMIN, Antônio Herman de V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 3ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 33-34.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012, p. 90.
[3] KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003, p. 233.
[4] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 38ª ed. São Paulo: Malheiros, 2015, p.180.
[5] PFEIFFER, Roberto A. C.; PASQUALOTTO, Adalberto (Org.). Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002: convergências e assimetrias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 15-17.
[6] MORIN, Edgar. Da necessidade de um pensamento complexo. In: MARTINS, Francisco Menezes; SILVA, Juremir Machado da (Org.). Para navegar no século XXI – tecnologias do imaginário e cibercultura 3ª ed. Porto Alegre: Sulina/Edipucrs, 2003, p. 14.
[7] MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: arts. 1º ao 74 – aspectos materiais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 26-29.
[8] WILSON, Edward O. Diversidade da vida. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 377.
[9] ALEXANDRINO, Marcelo; PAULO, Vicente. Direito Administrativo. 25ª ed., São Paulo: Método, 2017, p. 204
[10] ADI 4874/DF, rel. Min. Rosa Weber, julgamento em 1.2.2018 (ADI-4874)
Mestrando em Direitos Difusos e Coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público/SP, em Direito das Relações de Consumo pela PUC/SP e em Direito Público e Processo Civil pela Escola Paulista de Direito. Advogado e consultor em São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOãO CARLOS MARADEI JúNIOR, . Diálogo entre os direitos do consumidor, a função social das agências reguladoras e a efetividade dos direitos humanos e fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 out 2022, 04:09. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/59610/dilogo-entre-os-direitos-do-consumidor-a-funo-social-das-agncias-reguladoras-e-a-efetividade-dos-direitos-humanos-e-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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