RESUMO: A impenhorabilidade do bem de família é uma conquista e garantia de proteção o qual assegura o mínimo existencial de direito básico do ser humano que deve ser protegido sem ressalvas. No presente artigo pesquisa-se sobre a validade da penhora efetivada sobre o bem de família do fiador nos contratos de locação, a fim de analisar os entendimentos acerca da temática decorrente de relevante amparo às famílias, base da sociedade, onde se deve resguardar sua moradia em possível insucesso financeiro. Para tanto, é necessário avaliar as divergências doutrinárias no atual cenário brasileiro, além de demonstrar a violação de direitos sociais fundamentais ao validar a penhora efetivada sobre o único bem de família do fiador nos contratos de locação e apontar a relevância da garantia da impenhorabilidade do bem de família. Realiza-se então, uma pesquisa com método dedutivo, o qual extrai o conhecimento a partir de premissas gerais aplicáveis às hipóteses concretas além da documentação indireta com observação sistemática, abrangendo a pesquisa bibliográfica de fontes primárias e secundárias. Diante disso, verifica-se que o que impõe a constatação de que único caminho para que os direitos sociais prevaleçam sobre a autonomia da vontade e que o princípio da dignidade da pessoa humana e o da isonomia sejam resguardados é declarar a inconstitucionalidade do referido julgado e a exceção que instituiu a penhorabilidade do bem de família do fiador locatício, de modo que se possa manter íntegro o princípio isonômico constitucional, bem como outros direitos e premissas legais.
PALAVRAS-CHAVE: Bem de Família; Moradia; Fiador; Contrato; Penhora.
ABSTRACT: The unseizability of family property is an achievement and guarantee of protection which ensures the existential minimum of basic human rights that must be protected without reservations. In the present article, research is carried out on the validity of the pen on the good of the guarantor's family in the lease contracts, in order to study the time to study the issue of the relevant issue of support to families, the basis of society, where one must protect their home. in possible financial success. For this, it is necessary as doctrinal divergences, in addition to the demonstration of the royal family of relevant rights when validating the effective pen in the contracts of hiring and designation to guarantee the unseizability of the family. Then, a research with a deductive method is carried out, which extracts the deductive method from general assumptions for the concrete concretes in addition to indirect documentation with systematic observation, making a bibliographic research of primary and secondary sources. From this, from this, what requires a verification that social rights are verified that prevail over the will and the single principle of the autonomy of the human person and that of isonomy are protected and declared the constitutionality of the aforementioned judgment and the exception that institutes the pledge of the guarantor's family property, so that the isonomic principle, as well as other legal rights and premises, can be kept intact.
KEYWORDS: Family Benefits; Home; Guarantor; Contract; Garnishment.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo traz reflexões referentes à validade da penhora de bem de família do fiador em contratos de locação, tendo em vista que a dignidade da pessoa humana deve ultrapassar valores meramente patrimoniais na família, base da sociedade.
O tema é de suma importância tendo em vista tratar de direitos constitucionais e civis, relevantes na esfera da garantia do mínimo de existência para que a pessoa humana viva de forma plena e digna sua vida.
A lei de n° 8.009 de 29 de março de 1990, na qual dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, trouxe em seu artigo 3° exceções à impenhorabilidade, dentre elas está disposto no inciso VII à obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação que vai de encontro com o direito social fundamental, o da moradia, disposto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Com a inserção do referido dispositivo, ocorreram diversas divergências doutrinárias e jurisprudenciais, no qual o mais recente julgado findado da Suprema Corte do Tribunal Federal decidiu em Recurso extraordinário 1.307.334 com repercussão geral (Tema 1127) pela constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador nos contratos de locação. Entretanto, como será contextualizado no artigo, tal entendimento fere direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988, como o direito social a moradia, mínimo existencial, bem como os princípios da dignidade humana e o da isonomia.
No referido artigo será abordado nas seções um panorama constitucional no qual constituirá conceitos sobre o princípio da pessoa humana, direitos sociais, direito à moradia como garantia de patrimônio mínimo, bem de família, e no âmbito civil será abordado à teoria geral dos contratos, bem como os contratos de locação imobiliária e fiança com seu caráter acessório. Por último, será tratado o julgado do RE 1.307.334 e da inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador nos contratos de locação.
Em síntese, será feito ponderações com a finalidade de concluir que é indispensável que os referidos direitos sejam resguardados e que se intensifique a proteção ao direito à moradia o qual possui íntima ligação com o instituto do bem de família.
2 PANORAMA CONSTITUCIONAL
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é o texto fundamental do ordenamento jurídico brasileiro, que tem por desenvolvimento histórico em sua formação o período de redemocratização da nação, que em seu escopo buscou definir direitos e deveres dos cidadãos brasileiros assegurados com a proteção do poder judiciário após o regime militar.
2.1 Dignidade da pessoa humana
Dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental e alicerce no ordenamento jurídico, uma vez que surge antes mesmo de qualquer criação jurídica, tem sua origem no cristianismo. Sendo um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, disposto no art. 1° do referido diploma:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; [...].
Segundo Santos (2022, pag. 79) “Tem-se que este se apresenta como “carro-chefe” dos direitos e garantias fundamentais. É o princípio meta, fim de todo o ordenamento”. Este não é um direito absoluto, todavia deve prevalecer sua efetividade em um possível conflito de princípios, tendo em vista cada caso em concreto.
O princípio da dignidade da pessoa humana decorre de um valor absoluto, o qual inspira a regra ética máxima, qual seja o respeito ao próximo, além de sua finalidade na ordem econômica e financeira.
O Estado por não ser um fim em si mesmo, como de sua essência, busca ajudar o homem a encontrar seu fim, justo e digno. Dessa feita, fica nítido a imposição do referido princípio ao Estado, tendo em vista que o mesmo deve promover e possibilitar com que todos vivam com dignidade, além de oferecer condições mínimas emanadas da dignidade da pessoa, necessárias para existência digna de cada indivíduo na sociedade, a fim de garantir o mínimo existencial protegido pela República Federativa do Brasil.
2.2 Direitos sociais
A origem dos direitos sociais remonta da segunda dimensão dos direitos fundamentais, ditos direitos prestacionais, uma vez que os de primeira dimensão, ditos, direitos negativos, não foram suficientes para que o indivíduo viva a sua liberdade de forma plena, dessa feita, conforme aduz Sarlet (2018, p. 47), surgem os de cunho positivo, na qual o Estado deve assegurar aos indivíduos os seus direitos no que tange a prestações sociais, ou seja, “liberdade por intermédio do Estado” dessa feita impõe-se ao Estado que tenha um comportamento ativo na realização da justiça social.
Por se tratar de prestações positivas do Estado, os direitos sociais estão estritamente ligados ao princípio da dignidade humana e ao mínimo existencial, essenciais para o livre exercício da liberdade do indivíduo.
Segundo Ricardo Lobo Torres (2009, p. 69), o mínimo existencial é sinônimo de direito constitucional mínimo, fundamentando-se nas iniciais condições para o exercício da liberdade, existente na noção de felicidade, nos direitos humanos e pautado nos princípios de igualdade e dignidade humana.
Estão dispostos no art. 6° da Constituição Federal de 1988. In verbis:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifo do autor)
Nos casos de omissão legislativa na qual inviabilize o exercício de um determinado direito social, ensina Paulo Roberto de Figueiredo Dantas, (2021, p. 734):
Será possível à impetração de mandado de injunção, tanto individual como coletivo [...] também será possível falar-se na propositura de ação civil pública, pelos seus diversos legitimados, para compelir o Poder Público a colocar em prática políticas públicas que garantam o gozo daqueles direitos [...].
Por fim, a omissão eventualmente se faz presente devido à extensa quantidade de direitos sociais assegurados pela Carta Magna, por esse fator, apenas uma parcela deles é suprida de forma efetiva pelo Estado, portanto se faz necessário garantir ao menos o mínimo existencial no que tange os direitos sociais para que se garantam as condições materiais mínimas que o indivíduo precisa para sobreviver.
2.2.1 Direito à moradia como garantia de patrimônio mínimo
O direito social à moradia é pressuposto para dignidade humana, é um direito humano no plano internacional e foi incluído em diversos diplomas legais internacionais, também foi acrescentado à Constituição pelo poder constituinte reformador através da Emenda Constitucional 26/2000 na qual alterou a redação do art. 6° da Constituição Federal da República Federativa do Brasil.
Irrefutável é que a garantia de existência digna e sadia efetiva abrange além da mera sobrevivência de uma pessoa, está demasiado além do limite da pobreza. Nesse viés se faz oportuno que todas as pessoas sem distinção devem ter vias alternativas para garantir a exigência de uma vida digna e sadia, podendo usufruir de um lar e uma vida em comunidade, o que não deve prevalecer somente à mera sobrevivência, mas sim o mínimo existencial no qual compreende o pleno exercício da moradia. Sérgio Iglesias Nunes de Souza (2004, p. 45) complementa acerca do assunto:
A moradia consiste em bem irrenunciável da pessoa natural, indissociável de sua vontade e indisponível, que permite a fixação em lugar determinado, Não só físico, como também as fixação dos seus interesses naturais da vida cotidiana, exercendo-se de forma definitiva pelo individuo, e, secundariamente, recai o seu exercício em qualquer pouso ou local, mas sendo objeto de direito e protegido juridicamente. O bem da ‘’moradia’’ é inerente á pessoa e independente de objeto físico para a sua existência e proteção jurídica. Para nós, ‘’moradia’’ é elemento essencial do ser humano e um bem extrapatrimonial. ‘’Residência’’ é o simples local onde se encontraria o individuo. E a habitação é o exercício efetivo da ‘’moradia’’ sobre determinado bem imóvel. Assim, a ‘’moradia’’ é uma situação de direito reconhecida pelo ordenamento jurídico […].
Diante disso, o direito constitucional à moradia veio para preencher esta lacuna na Constituição Federal de 1988, onde sua efetividade é a essência para a garantia do patrimônio mínimo e a igualdade substancial entre as pessoas, além de adotar responsabilidades frente à comunidade internacional para proteger e tornar viável sua efetivação.
Na atualidade diversas famílias estão diariamente em uma luta desenfreada pela conquista do seu bem próprio destinado à moradia, e é neste ponto que o Estado deve intervir de forma positiva para garantir moradia aos que não possuem e para os que possuem deve agir de forma efetiva no que tange a proteção do bem que para muitas famílias é o único imóvel destinado ao exercício do direito à moradia: a habitação.
2.3 Do bem de família
O Bem de Família originou-se da lei do homestead, criada em 1869 pelo presidente Abraham Lincoln, na primitiva República do Texas, o que atualmente representa a base do bem de família.
O instituto do bem de família nada mais é que a proteção do direito social à moradia (Art. 6° CF/1988) e da dignidade da pessoa humana (Art. 1°, inciso III CF/1988), fundamento da República Federativa do Brasil. Portanto, genericamente o bem de família é considerado um imóvel que tem como destinação à moradia da entidade familiar em todas as formas aceitas pelo Código Civil.
O bem de família também é uma fração do patrimônio da entidade que através de escritura pública ou testamento, fica caracterizado o bem de família convencional ou voluntário, no qual se tem por fim sua proteção. Todavia, ainda há outra modalidade prevista, o bem de família legal, regido pela Lei 8.009/1990 que em uma visão dualista, passa-se a analisar as duas modalidades de bens protegidas pela lei privada.
O bem de família convencional ou voluntário está previsto nos arts. 1.711 a 1.722 do Código Civil e de modo a conceitua-lo Tartuce (2017, p. 270) traz seus ensinamentos:
O bem de família convencional ou voluntário pode ser instituído pelos cônjuges, pela entidade familiar ou por terceiro, mediante escritura pública ou testamento, não podendo ultrapassar essa reserva um terço do patrimônio líquido das pessoas que fazem a instituição (Art. 1.711 do CC). O limite estabelecido pela legislação visa proteger eventuais credores. [...] Para que haja proteção prevista em lei é necessário que o bem seja imóvel residencial, rural ou urbano, incluindo a proteção a todos os bens acessórios que o compõem. [...] a proteção poderá ainda abranger valores imobiliários, cuja renda seja aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.
No que tange ao bem de família legal, o qual é de ordem pública e pode ser conhecida de ofício pelo juiz, tem sua previsão na Lei n. 8.009/1990, na qual traz breve regramento em seu artigo 1°, conforme exposto a seguir.
Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.
Portanto, com todas as premissas cumpridas, não há o que se negar a instituição do bem de família, o qual garante o direito à moradia e o patrimônio mínimo.
3 PANORAMA CIVIL
No âmbito do Código Civil, inicialmente faz-se uma ressalva à pessoa humana, sujeito provido de direitos e obrigações. Conforme dispõe o art. 1° do Código Civil, a pessoa humana difere-se de coisa porque possui dignidade em sua essência, o que em contrapartida temos o que se pode aferir preço, a coisa.
O ser humano é um ser racional, o que o torna pessoa, segundo Kant (1992, p.105-111) disciplina em suas palavras:
Age de tal sorte que consideres a Humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio […] os seres racionais estão submetidos à lei segundo a qual cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meio, mas sempre e simultaneamente como fim em si […] o homem não é uma coisa, não é, por consequência, um objeto que possa ser tratado simplesmente como meio, mas deve em todas as suas ações ser sempre considerado como um fim em si.
Portanto, conclui-se com os ensinamentos do filósofo, que o ser humano, pessoa, não deve ser tratado como coisa, pois, esta é detentora da maior qualidade destinada a um indivíduo, a dignidade. Para Kant, este é um valor inegociável tendo em vista que a dignidade é elemento fundamental inerente à pessoa humana.
3.1 Teoria geral dos contratos
Tão longevo como o próprio ser humano é o contrato que nasce a partir das inter-relações sociais desde o início da sociedade. É um ato jurídico bilateral, cujo objetivo contém direitos e deveres com acordo de vontades.
Para Tartuce (2021, p. 970) contrato tem por existência e definição, in verbis:
Para existir o contrato, seu objeto ou conteúdo deve ser lícito, não podendo contrariar o ordenamento jurídico, a boa-fé, a sua função social e econômica e os bons costumes. [...] em uma visão clássica ou moderna, o contrato pode ser conceituado como um negócio jurídico bilateral ou plurilateral que visa à criação, modificação ou extinção de direitos e deveres com conteúdo patrimonial.
Importante é sua definição, mas vale mencionar a validade do contrato que ora está devidamente positivada no Código Civil, qual seja, disposto no Art.104, in verbis: “A validade do negócio jurídico requer: I - agente capaz; II - objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III - forma prescrita ou não defesa em lei.”. Portanto, este deve cumprir todos os requisitos referentes a todos os atos e negócios jurídicos.
Além do regramento geral, sábio e válido é respeitar o consentimento bilateral entre as partes, sendo essencial na visão clássica para a validade do contrato firmado. Todavia, os requisitos acima estabelecidos não são inteiramente suficientes para que o contrato seja válido, pois, essencial se faz respeitar os princípios contratuais que respaldam o acordo de vontades.
3.1.2 Princípios da teoria geral dos contratos
No campo dos princípios contratuais, estes de extrema importância para o negócio jurídico perfeito, aperfeiçoam-se conforme as mudanças culturais ocorrem na sociedade. Diante desta perspectiva, é essencial mencionar os princípios basilares, quais sejam, o princípio da autonomia privada, princípio da função social dos contratos, princípio da boa-fé objetiva e o princípio da relatividade dos efeitos contratuais.
O princípio da autonomia privada, nos ensinamentos de Tartuce (2021, p. 1000 a 1001) é conceituado:
Um regramento básico, de ordem particular – mas influenciado por normas de ordem pública – pelo qual na formação do contrato, além da vontade das partes, entram em cena outros fatores: psicológicos, políticos, econômicos e sociais. Trata-se do direito indeclinável da parte de autorregulamentar os seus interesses, decorrente da dignidade humana, mas que encontra limitações em normas de ordem pública, particularmente nos princípios sociais contratuais. [...]
O princípio da função social dos contratos é um princípio de ordem pública, com finalidade coletiva, ou seja, um limite ao conteúdo do contrato em prol da sociedade e válido nos contratos que eventualmente apresentem abuso ou excessos de uma parte em face da outra, neste caso o Estado deve intervir. Neste sentido, necessário se faz abordar o art. 2.035, parágrafo único, do Código Civil, dispositivo que é de suma importância para o entendimento do sentido do princípio. É a sua redação:
Art. 2.035. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.
O princípio da boa-fé objetiva, sendo a exigência de conduta honesta dos contratantes é fundamental no acordo de vontades em qualquer negócio ou ato jurídico. Preceitua os artigos do Código Civil em vigor:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. [...] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
3.2 Contrato de locação imobiliária
De forma genérica, o contrato de locação é o contrato pelo qual é designado a uma das partes o dever de ceder à outra (locatário ou inquilino), por tempo determinado ou não, mediante remuneração, o uso e gozo da coisa não fungível.
No tocante à sua natureza jurídica, o contrato de locação de coisas, de forma específica, é conceituado por Tartuce (2022, p. 553):
Trata-se de contrato bilateral ou sinalagmático (pois traz obrigações recíprocas), oneroso (pela presença de remuneração), comutativo (as partes já sabem quais são as prestações), consensual (aperfeiçoa-se com a manifestação de vontades) informal e não solene (não é necessária escritura pública ou forma escrita, como regra geral). Trata-se também de típico contrato de execução continuada (ou de trato sucessivo), uma vez que o cumprimento se potrai no tempo na maioria das hipóteses fáticas.
As obrigações inerentes às partes do contrato de locação estão dispostas nos. 22 e 23 da Lei de Locação, dessa forma ambas as partes assumem obrigações conjuntas e cumulativas, o que confirma o sinalagma obrigacional. O locador deve entregar o bem alugado ao locatário com os devidos cuidados que garantam que o bem seja mantido em condições de uso e gozo do mesmo. Não obstante, o locatário deve usar o bem para o fim pactuado no contrato e findo contrato deve entregar o bem alugado no mesmo estado em que recebeu, com todos os pagamentos liquidados.
No que tange à liquidação de todos os pagamentos pactuados no contrato, surge questão central que nos leva a problemática do presente artigo. Pois, de forma a assegurar o pagamento do aluguel, a Lei n. 8.245/1991 estabelece quatro modalidades de garantia em seu artigo 37, dentre elas está à modalidade da fiança, sendo a mais utilizada nos contratos de aluguel.
3.3 Contrato de fiança
O contrato de fiança, também conhecido como caução fidejussória, está disposto no art. 818 do Código Civil, o qual tem por objetivo prestar uma garantia na qual o credor de uma dívida tem o respaldo legal para ser devidamente pago pelo fiador, pessoa capaz civilmente nos moldes dos artigos 1° ao 4° do Código Civil, em hipótese de inadimplência do devedor principal.
Ensina Maria Helena Diniz (2007, p. 575) “a fiança vem a ser a promessa, feita por uma ou mais pessoas, de garantir ou satisfazer a obrigação de um devedor, se este não a cumprir, assegurando ao credor o seu efetivo cumprimento”.
Nesta modalidade contratual, certo é que se cria um vínculo jurídico com o fiador por ser um contrato acessório, ou seja, há um benefício de ordem na relação contratual. Em caso de insolvência do pagador original, o fiador fica obrigado a satisfazer a dívida, a qual é característica indispensável, uma vez que só existe contrato acessório se deriva do principal, aquele a qual se pretende adimplir.
O contrato de fiança é um contrato personalíssimo, característica essa que significa que este gera obrigações apenas para uma das partes envolvidas, neste caso o fiador. É gratuito, tendo em vista que o fiador não recebe nenhuma remuneração, salvo exceções como a remuneração da prestação da garantia da dívida. A doutrina majoritária também o classifica por ser consensual, pois, o fiador pretende ajudar o devedor principal, o que o faz garantindo ao credor o pagamento da dívida, o que só se admite interpretação restritiva. É um contrato formal, pois exige forma escrita, porém é um contrato não solene, pois não exige escritura pública.
Outra característica imprescindível é sua subsidiariedade, que advém da característica acessória do contrato, pois, o fiador só poderá ser acionado caso o devedor principal não pague a dívida e seja caracterizada a insolvência, como regra geral.
3.3.1 Do caráter acessório do contrato de fiança
Acessoriedade, característica imprescindível e intrínseca no contrato de fiança, atendendo a essência deste que só existe em decorrência da existência do principal, ou seja, aquele cujo adimplemento se pretende garantir.
Em conformidade com a característica acessória do contrato de fiança, não há dúvidas de que o fiador é um sujeito passivo de segundo grau. Portanto sua obrigação é subsidiária, ou seja, apenas referente à responsabilidade do débito, nesse viés existe o benefício da ordem, em que Pablo Stolze (2019, p. 907) ensina.
Por isso, existe uma preferência (dada pela lei) na “fila” (ordem) de excussão (execução): no mesmo processo, primeiro são demandados os bens do devedor, ou não sendo eles suficientes, inicia-se a excussão de bens do responsável, em caráter subsidiário, por toda a dívida.
O instituto do benefício de ordem trata-se de uma prerrogativa, válida em um meio de defesa patrimonial, na qual o fiador em uma demanda pelo credor pode apontar bens livres do devedor principal, tendo em vista sua responsabilidade subsidiária, conforme dispõe o Código Civil “Art. 827. O fiador demandado pelo pagamento da dívida tem direito a exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro executados os bens do devedor.”.
Vale ressaltar que o contrato acessório não pode ser mais oneroso que o principal, nesta ideia elucida Tartuce (2022 p. 1935):
A fiança pode ser total ou parcial, inclusive de valor inferior ao da obrigação principal e contraída em condições menos onerosas do que as do contrato principal. No entanto, a fiança nunca poderá ser superior ao valor do débito principal, pois o acessório não pode ser maior do que o principal. Sendo mais onerosa do que a obrigação principal.
No que tange a regra acerca da onerosidade do contrato acessório, certo é que a fiança deverá ser reduzida ao limite da dívida que foi afiançada (art. 823 do CC). Neste viés surgem diversas divergências nos tribunais superiores do Brasil, o que não traz segurança jurídica para a sociedade.
4 JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.307.334
O plenário do Supremo Tribunal Federal em julgamento do Recurso extraordinário 1.307.334 de repercussão geral com tema de n. 1127, analisou a constitucionalidade do inciso VII do artigo 3° da Lei 8.009/1990, na qual dispõe a obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação como uma das exceções à impenhorabilidade do bem de família, esta análise de constitucionalidade vislumbrou os artigos 1° III, 6° e 226 da Constituição Federal.
Ao consolidar o entendimento da Corte Constitucional, prevaleceu a seguinte tese: “é constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, seja residencial, seja comercial”.
Entendeu o Ministro Alexandre de Moraes que a penhora não viola o direito à moradia do fiador, que exerce seu direito à propriedade, assim destacou o voto condutor de Moraes (2022, p. 18):
[...] ao assinar, por livre e espontânea vontade, o contrato de fiança em locação de bem imóvel (contrato este que só foi firmado em razão da garantia dada pelo fiador), o fiador abre mão da impenhorabilidade de seu bem de família, conferindo a possibilidade de construção do imóvel em razão da dívida do locatário.
Dessa forma, segundo o Ministro relator o fiador tem consciência dos riscos recorrentes de eventual inadimplência e impor restrição importaria ofensa aos princípios da boa-fé objetiva e ao da livre iniciativa, ao passo que este último não deve encontrar limite no direito à moradia quando o próprio detentor desse direito, por sua própria vontade, assume obrigação capaz de limitar seu direito à moradia. Também alegou que a norma protege o mercado imobiliário.
No caso em comento, prevaleceu o voto do relator Ministro Alexandre de Moraes, que destacou que a constitucionalidade do referido tema já fora examinada pelo Supremo Tribunal Federal, desta feita a validade se manteve até mesmo após a promulgação da Emenda Constitucional 26/2000 que incluiu o direito à moradia entre os direitos sociais protegidos pela Constituição da República Federativa do Brasil. Para o referido relator, reconhecer a impenhorabilidade causaria grave impacto na liberdade de empreender. Acompanharam o voto do Min. relator Alexandre de Moraes, os ministros Luís Roberto Barroso, Nunes Marques, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e André Mendonça.
O referido entendimento concluiu que não é possível fazer distinções onde a lei não o fez, fato que restou por afastar, portanto, a distinção entre contratos para fins residenciais ou comerciais no tocante à garantia real e a possibilidade de penhora do imóvel do fiador.
Todavia, a votação não foi unânime, com a oposição dos ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber a divergência iniciou-se. O Ministro Edson Fachin defendeu o direito à moradia e alegou que o Estado é obrigado a assegurar medidas adequadas à proteção de um patrimônio mínimo.
[...] não se pode potencializar a livre iniciativa em detrimento de um direito fundamental, que é o direito à moradia, tendo em vista que o afastamento da penhora visa a beneficiar a família.
Por fim, prevaleceu a formação da maioria de 7 (sete) frente a 4 (quatro) votos, na qual o STF sedimentou a tese com o entendimento da constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador de contrato de locação seja residencial, seja comercial em repercussão geral (tema 1127) na qual se torna válida e exigível a garantia pessoal ofertada por fiador em detrimento da segurança do negócio jurídico.
5 DA INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA EFETIVADA SOBRE O BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO
A lei n° 8.009/1990 traz expressa a exceção cabível à impenhorabilidade do bem de família do fiador no artigo 3° inciso VII, neste caso, a lei confere poder de penhora ao bem de família. A obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação de imóvel urbano é uma exceção à regra da impenhorabilidade do bem de família, certo é que se origina de vontade própria, ou seja, em uma possível inadimplência em um contrato de locação de imóvel urbano, caso o devedor principal não honre com o pagamento a dívida, o credor tem respaldo legal para acionar o fiador a vir adimplir essa dívida até mesmo com seu único bem imóvel, bem de família, o qual deu por garantia.
Não obstante, sempre se fizeram presentes divergências doutrinárias e jurisprudenciais no que tange à sua constitucionalidade. No Superior Tribunal de Justiça, na maioria de seus julgados prevalece à tese da constitucionalidade do referido dispositivo conforme repercussão geral do tema 1127 que valida à penhora do bem de família do fiador em contratos de locação. O que vale transcrever um exemplo:
PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 1.036 DO CPC. EXECUÇÃO. LEI N. 8.009/1990. ALEGAÇÃO DE BEM DE FAMÍLIA. FIADOR EM CONTRATO DE LOCAÇÃO COMERCIAL E RESIDENCIAL. PENHORABILIDADE DO IMÓVEL. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. 1. Para fins do art. 1.036 do CPC: "É válida a penhora do bem de família de fiador apontado em contrato de locação de imóvel, seja residencial, seja comercial, nos termos do inciso VII do art. 3º da Lei n. 8.009/1990.”.
Todavia, alguns doutrinadores com tese minoritária consideram essa previsão inconstitucional, por violar a isonomia, conforme ensina Tartuce (2017, p. 280):
Parte da doutrina, principalmente formada por civilistas da nova geração, considera ser essa previsão inconstitucional, por violar a isonomia. Isso porque o devedor principal (locatário) não pode ter seu bem de família penhorado, enquanto o fiador (em regra, devedor subsidiário) pode suportar a constrição.
Posto isso, a ressalva incluída pela lei n° 8.245, de 1991, no inciso VII do art. 3° da lei n° 8.009/90, atinge diretamente a isonomia e a proporcionalidade, pois, em caso de o fiador perder seu bem de família à penhora em uma dívida do devedor principal, este em direito de regresso certamente não conseguirá penhorar o imóvel de residência do locatário, devedor principal, o que caracteriza a desproporção de direitos.
A Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, incluiu a moradia entre os direitos sociais previstos no art. 6° da Constituição Federal de 1988, o qual constitui norma de ordem pública, um direito fundamental da pessoa humana para uma vida digna em sociedade.
Portanto, não se olvida que a penhorabilidade do bem de família do fiador, além de afrontar o direito à moradia fere princípios constitucionais, como o da razoabilidade e o da dignidade humana. Pois, há tratamento desigual uma vez que é permitida a penhora do bem do fiador e não a do locatário.
Por se tratar de obrigações principal e acessória, não se vislumbraria justificativa para que o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador, pois, atacaria o princípio da proporcionalidade. Nos ensinamentos de Tartuce (2017, p. 286):
Não restam dúvidas de que a renúncia ao bem de família legal é inválida e ineficaz, pois constitui um exercício inadmissível da autonomia privada por parte do devedor. Eis aqui mais um exemplo possível de dirigismo negocial nas relações subjetivas. Desse modo, a suposta renúncia não afasta a possibilidade de ser arguir posteriormente a impenhorabilidade do imóvel de residência.
Nesse sentido destaca-se o que consta na premissa 17 da Edição 44 do STJ “a impenhorabilidade do bem de família é questão de ordem pública, razão pela qual não se admite renúncia pelo titular”.
Portanto não há razoabilidade em efetuar a penhora do único imóvel de uma família, por dívida contraída de terceiros. O referido dispositivo vai de encontro com um direito fundamental que deve ser assegurado, o direito à moradia. Porém tendo em vista o mercado imobiliário de locação entende-se que tal decisão afetaria de forma negativa a sociedade, o que dificultaria o acesso à moradia, exposto na CFRB/1988.
Todavia, apesar de mais onerosas, há outras modalidades existentes que supririam tal modalidade da fiança. O Art. 37 da Lei n° 8.245 de 1991 dispõe:
Art. 37. No contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia:
I - caução; II - fiança; III - seguro de fiança locatícia; IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento.
Desse modo, verifica-se que a Lei de Locação (n° 8.245 de 1991) indica alternativas de garantias que podem ser utilizadas pelo locador. Apesar de o fiador ser indispensável para o mercado de locações certo é que tal garantia fere o direito disposto na Carta Magna.
Em uma possível e comprovada violação do direito fundamental à moradia, poderá ocorrer o afastamento isolado e excepcional da regra da penhorabilidade através da ponderação normativa e da aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A busca por segurança jurídica, estabilidade, previsibilidade e confiança não se constrói com normas absolutas, imunes a superações excepcionais por distinções tecnicamente bem aplicadas no caso concreto, no qual reside à essência do trabalho do jurista.
Todavia espera-se um entendimento favorável à proteção do bem de família que compete ao Estado garantir aos cidadãos uma vida digna, viabilizando o acesso à residência que, minimamente, atendam às necessidades do ser humano.
6 CONCLUSÃO
Exposta a pesquisa e constituída considerações sobre aspectos civis e constitucionais da penhorabilidade do bem de família do fiador locatício, é possível chegar a algumas conclusões.
O tema, não obstante já ter sido decidido pelo Supremo Tribunal Federal de forma a pacificar o entendimento, obtém controvérsias, uma vez que é um tema que oferta muitas divergências doutrinárias e jurisprudências conforme os votos divergentes no julgamento do recurso extraordinário 1.307.334 de repercussão geral com tema de n. 1127 mencionado na pesquisa.
A oposição existiu e persiste em diversos debates travados entre juristas porque o tema envolve direitos constitucionais e civis, simultaneamente, de modo que é necessária a ponderação entre os mesmos.
Não há dúvida de que quando o fiador opta por figurar em um contrato de fiança, este assume responsabilidades e manifesta seu livre-arbítrio, a autonomia de sua vontade. Porém, a autonomia da vontade não deve prevalecer sobre os direitos sociais. Além disso, o contrato de fiança não pode ser mais oneroso que o contrato principal, de modo que, se a regra é a impenhorabilidade do bem de família, não pode o fiador ser mais onerado que o locatário apenas pela posição contratual assumida ao prestar a fiança. Essa onerosidade que se torna presente no contrato reflete, também, na esfera constitucional, a violação do princípio da isonomia, uma vez que distingue o tratamento dado ao fiador e locatário, que tem obrigação oriunda do mesmo contrato de locação e acabam tendo tratamentos díspares, uma vez que o locatário tem, através da impenhorabilidade conferida ao seu bem de família, a dignidade humana protegida e seu direito constitucional à moradia resguardado, mesmo sendo o devedor principal, enquanto o fiador, acaba por perder tais garantias.
A finalidade da Lei 8009/90 é a proteção do bem de família, o que evidencia uma vitória social e harmoniza-se com o princípio da dignidade humana, além do direito social à moradia. Portanto, essa proteção revela-se um instrumento que pretende privar a prevalência dos interesses particulares dos credores, em favor da preservação da dignidade do indivíduo e da sua família.
Diante dessas ponderações, conclui-se que, não se pode conciliar a penhorabilidade do bem de família do fiador locatício com a Constituição Federal e a lei civil brasileira, de modo que o único caminho é declarar a inconstitucionalidade do referido julgado (RE 1.307.334) e a exceção (Art. 3° inciso VII da lei n° 8.009/1990) que instituiu a penhorabilidade do bem de família do fiador locatício e assim manter íntegro o princípio isonômico constitucional, bem como outros direitos e premissas legais de forma a garantir o bem estar digno das famílias na sociedade.
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JULIANNA KAREN PINTO FALCãO, . Validade da penhora efetivada sobre o bem de família do fiador nos contratos de locação Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 nov 2022, 04:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60204/validade-da-penhora-efetivada-sobre-o-bem-de-famlia-do-fiador-nos-contratos-de-locao. Acesso em: 27 dez 2024.
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