RESUMO: O princípio da vedação à tributação com efeito de confisco visa a evitar que a tributação atinja o patrimônio do particular de forma irrazoável. Não há dúvida de que ele se aplica aos tributos, sobretudo porque há previsão expressa a esse respeito na Constituição. Contudo, há controvérsia sobre o seu emprego às multas tributárias, sendo esse o objetivo central do artigo em apreço, elaborado por meio do método hipotético-dedutivo. O Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral sobre o tema, mas ainda não houve fixação da tese. De toda forma, a partir de estudo doutrinário feito sobre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e de julgados esparsos não vinculantes do próprio Supremo Tribunal Federal, é possível chegar à conclusão de que o princípio do não confisco deve ser utilizado na interpretação de normas que preveem multas tributárias.
Palavras-Chave: Direito tributário. Princípio do não confisco. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Multas tributárias. Aplicabilidade.
SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 3. Princípio do não confisco ou da razoabilidade na tributação. 4. Aplicação do princípio da razoabilidade na tributação às multas tributárias. 5. Considerações. 6. Referências.
1. Introdução
O princípio da vedação à tributação com efeito de confisco, também conhecido como princípio do não confisco ou da razoabilidade na tributação, possui acentuada importância no direito tributário, estando previsto expressamente na Constituição Federal.
Em linhas gerais, tal princípio veda que a tributação seja demasiadamente excessiva, atingindo o patrimônio do particular para além do razoável.
Esse princípio possui íntima relação com os princípios (ou postulados, como prefere parcela da doutrina) da razoabilidade e da proporcionalidade, cujas nuances devem ser perscrutadas, ainda que rapidamente.
A partir da doutrina e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, é possível extrair os parâmetros principais de aplicabilidade do princípio do não confisco.
A questão controvertida a ser examinada neste trabalho diz respeito à possível de se aplicar o princípio em comento às multas tributárias, sendo essa a principal finalidade deste artigo.
O tema em debate possui acentuada relevância, na medida em que diversos entes federados, na intenção de coibir atos ilícitos praticados por contribuintes e terceiros, vêm estipulando multas em montantes bastante expressivos.
Ainda que não haja posição definitiva do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, sobre o qual foi reconhecida a existência de repercussão geral (a reforçar a importância do tema em análise), é possível, a partir de balizas doutrinárias e jurisprudenciais, chegar a uma conclusão segura sobre o tema.
Para análise do tema proposto, este artigo será dividido em três partes.
Em primeiro lugar, serão analisadas as principais nuances dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Em seguida, será detalhado o princípio do não confisco, notadamente a sua definição e os critérios de aplicabilidade, sobretudo com fundamento na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
Por fim, será enfrentada a possibilidade de observância do princípio da razoabilidade na tributação em relação às multas tributárias, seguindo-se a conclusão deste trabalho.
2. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
Para examinar a discussão relativa à aplicabilidade do princípio do não confisco às multas tributárias, exige-se, em primeiro lugar, analisar aspectos relativos aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, pois estão intimamente relacionados.
Na concepção de Humberto Ávila, a razoabilidade é um postulado, que significa um dever estrutural que estabelece a vinculação entre elementos e impõe determinada relação entre eles, servindo como estrutura para a aplicação de outras normas, princípios e regras (2011, p. 163).
Ainda segundo Ávila, podem-se aferir três acepções do postulado da razoabilidade: equidade, congruência e equivalência.
Na primeira acepção, a razoabilidade exige que no emprego da norma geral haja consideração daquilo que normalmente acontece, isto é, que haja harmonização da norma geral com o caso concreto (ÁVILA, 2011, p. 164).
Ao considerar a realidade do que ordinariamente acontece, pode ser que a norma geral, caracterizada pela abstração e pela generalização, não possa ser aplicada ao caso individual. A situação é excepcional, porém não rara.
Em virtude dessa possibilidade, Ávila conclui que “nem toda norma incidente é aplicável", porquanto "é preciso diferenciar a aplicabilidade de uma regra da satisfação das condições previstas em sua hipótese'' (2011. p. 166).
Em outras palavras, uma regra não é aplicável somente porque as condições previstas em sua hipótese são satisfeitas.
Pelo contrário, “uma regra é aplicável a um caso se, e somente se, suas condições são satisfeitas e sua aplicação não é excluída pela razão motivadora da própria regra ou pela existência de um princípio que institua uma razão contrária" (2011. p. 166).
De acordo com a segunda acepção, a razoabilidade impõe a adequação das normas com suas condições externas de aplicação (ÁVILA, 2011, p. 167).
Uma das principais facetas dessa acepção é a de que qualquer medida deve possuir um suporte empírico existente. Uma lei não pode ser publicada, tampouco um ato administrativo praticado, sem que haja recursos que possam embasar a aplicação da lei ou do ato.
A terceira acepção define a razoabilidade como equivalência entre a medida aplicada e o critério que a dimensiona (ÁVILA, 2011, p. 170).
Exemplificativamente, é desarrazoável a criação de taxa judiciária em percentual fixo, por considerar que em alguns casos ela seria tão elevada que o exercício de um direito fundamental (o de acesso à jurisdição) restaria estiolado.
A compreensão dos três sentidos do postulado da razoabilidade é teoricamente fundamental para a sua aplicação no caso concreto e aplica-se a todos os poderes.
No que tange ao Poder Judiciário, a razoabilidade deve ser como vetor essencial para a aplicação das normas jurídicas e para a materialização da justiça, sob pena de o Estado Social e Democrático de Direito, extraído de vários dispositivos da Constituição da República (artigos 1º, inciso III, 3º, incisos I, III e IV, 5º, incisos LV, LXIX , LXXIII, LXXIV e LXXVI, 6º ,7º, incisos I, II, III, IV, VI, X, XI e XII, 23 e 170, incisos II, III, VII e VIII, dentre outros), não ser contemplado adequadamente.
Diante desse panorama, pode-se concluir
(...) que o princípio da razoabilidade determina a coerência do sistema e que a falta de coerência, de racionalidade, de qualquer lei, ato administrativo ou decisão jurisdicional gera vício de legalidade, pois o Direito é feito por seres e para se res racionais, para ser aplicado em um determina do espaço e em uma determinada época. (ZANCANER, 2001, p. 5)
O outro princípio (ou postulado, na concepção de Ávila) é o da proporcionalidade.
Segundo esse autor, o postulado da proporcionalidade impõe que o Poder Legislativo e o Poder Executivo escolham meios adequados, necessários e proporcionais para a realização de seus fins (2011, p. 171).
Apesar de a proporcionalidade advir do termo “proporção", que é recorrente no direito – vide, por exemplo, a proporção entre culpa e pena na fixação dos limites da pena (direito penal), entre o número de candidatos e o número de vagas para fins de representatividade (direito eleitoral), entre o valor da taxa e o serviço público prestado e a necessidade de proporção entre os tributos e os serviços públicos que o Estado coloca à disposição da sociedade (direito tributário) –, com este não se confunde.
Isso porque o postulado somente será aplicado quando houver relação de causalidade entre dois elementos, um meio e um fim (ÁVILA, 2011, p. 171).
Sobre o exercício dessa relação de causalidade e os efeitos que podem advir dela, Mello escreve que:
(...) as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja rea1mente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas. Segue-se que os atos cujos conteúdos ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência ficam maculados de ilegitimidade, porquanto desbordam do âmbito da competência; ou seja, superam os limites que naquele caso lhes corresponderiam.
Sobremodo quando a Administração restringe situação jurídica dos administrados além do que caberia, por imprimir às medidas tomadas uma intensidade ou extensão supérfluas, prescindendas, ressalta a ilegalidade de sua conduta. É que ninguém deve estar obrigado a suportar constrições em sua liberdade ou propriedade que não sejam indispensáveis à satisfação do interesse público (2007, p. 107).
É importante destacar que, conforme a doutrina tradicional, o princípio da proporcionalidade se divide em três subprincípios:
a) adequação ou idoneidade – o ato estatal praticado deve ser adequado, pertinente, idôneo ao fim pretendido;
b) necessidade ou exigibilidade – tendo em vista a proibição do excesso, o poder público deve sempre escolher a medida menos gravosa aos direitos fundamentais, caso exista mais de uma disponível; e
c) proporcionalidade em sentido estrito – encerra típica relação de custo-benefício entre os benefícios advindos da medida adotada (a exemplo do aumento dos recursos púbicos) e das restrições impostas ao particular (tal como pagamento de determinado tributo ou multa) (OLIVEIRA, 2021, p. 40).
Nada obstante as distinções acima mencionadas, prevalece na doutrina e na jurisprudência a tese da fungibilidade entre os princípios (da razoabilidade e da proporcionalidade:
Apesar da polêmica quanto à existência ou não de diferenças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, tem prevalecido a tese da fungibilidade entre os citados princípios que se relacionam com os ideais igualdade, justiça material e racionalidade, consubstanciando importantes instrumentos de contenção dos possíveis excessos cometidos pelo Poder Público. (OLIVEIRA, 2021, p. 39).
3. Princípio do não confisco ou da razoabilidade na tributação
O princípio ou postulado da razoabilidade possui especial aplicabilidade no direito tributário.
Nos termos do art. 150, inciso IV, da Constituição Federal, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, “utilizar tributo com efeito de confisco”.
Esse dispositivo contempla o princípio do não confisco, também chamado de princípio da vedação à tributação com efeito de confisco ou princípio da razoabilidade ou proporcionalidade na tributação.
Em linhas gerais, esse princípio impede que o Estado promova tributação excessiva, invadindo o patrimônio ou os rendimentos dos particulares de forma desarrazoada.
Segundo Ricardo Alexandre:
[...] a ideia subjacente é a de que o legislador, ao se utilizar do poder de tributar que a Constituição lhe confere, deve fazê-lo de forma razoável e moderada, sem que a tributação tenha por efeitos impedir o exercício de atividades lícitas pelo contribuinte, dificultar o suprimento de suas necessidades vitais básicas ou comprometer seu direito a uma existência digna. (2021, p. 186).
Em outras palavras, “trata-se de uma garantia ao contribuinte de que o Estado não vai lhe cobrar tributos de maneira desarrazoada” (ORTEGA; VIEIRA, 2021, p. 252).
Assim como nem sempre é fácil concluir se determinado ato da Administração Pública viola ou não os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, também não é tarefa singela saber se uma tributação específica ofende ou não o princípio do não confisco.
Isso porque o conceito de “efeito confiscatório” é indeterminado, estando impregnado de alto grau de subjetividade, variando “muito de acordo com as concepções político-filosóficas do intérprete”, conforme ressalta a doutrina (ALEXANDRE, 2021, p. 186-187).
No entanto, essa dificuldade não tem o condão de impedir o controle jurisdicional sobre os tributos instituídos pelo Estado, por força do princípio da inafastabilidade da jurisdição ou do acesso à justiça, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, notadamente em sua vertente substancial.
Conforme a lição de Ricardo Alexandre, nada impede que “em casos de notória ausência de razoabilidade de uma exação ou de um conjunto de exações, o Poder Judiciário reconheça a existência de um verdadeiro abuso do direito de tributar, tendo em vista a absorção de parcela substancial do patrimônio ou renda dos particulares” (2021, p. 187).
É preciso, porém, que a interpretação a ser feita pelo julgador seja pautada por algumas balizas.
Nesse sentido, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, para saber se um tributo possui ou não efeito confiscatório, deve-se examinar a integralidade da carga tributária que recai sobre determinado contribuinte em relação à mesma pessoa política instituidora.
Em outras palavras, o exame do princípio do não confisco em relação a determinado tributo não pode ser feito de forma isolada dos demais tributos do mesmo ente tributante.
Nesse sentido, vale conferir a seguinte passagem extraída do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 8-MC/DF, de relatoria do Ministro Celso de Mello:
A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte – considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) – para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo – resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal – afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. – O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade. (STF, Tribunal Pleno, ADC 8 MC, Relator Ministro Celso de Mello, julgado em 13.10.1999, DJ 04.04.2003). [grifou-se]
Diante desse panorama, pode-se concluir que o efeito confiscatório da tributação somente pode ser verificado no caso concreto e, ainda, por meio da análise da totalidade da carga tributária suportada pelo contribuinte em relação a um mesmo ente tributante.
4. Aplicação do princípio da razoabilidade na tributação às multas tributárias
Definidos os parâmetros que orientam a análise do princípio do não confisco, cumpre verificar sua aplicabilidade às multas tributárias.
Primeiramente, é importante anotar que tributo não se confunde com multa.
Com efeito, nos termos do art. 3º do Código Tributário Nacional, tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.
Multa, por sua vez, é a penalidade decorrente da prática de um ato ilícito. É aquilo que o tributo não pode ser: sanção de ato ilícito.
Outra relevante distinção é que o tributo tem por finalidade arrecadar (quando assume o caráter de fiscalidade) e/ou intervir em situações econômicas e sociais (hipótese em que predomina o caráter de extrafiscalidade), enquanto a multa, que não possui a intenção primeira de carrear recursos aos cofres públicos (ainda que o faça indiretamente), visa a coibir ato ilícito.
Malgrado tributo seja diferente de multa, o Código Tributário Nacional prevê que a obrigação tributária principal tem por objeto o pagamento de tributo ou penalidade pecuniária, a teor do art. 113, § 1º, desse diploma normativo.
Desse modo, multa tributária não é tributo, mas a obrigação de pagá-la possui natureza tributária, conforme sintetiza Ricardo Alexandre (2021, p. 355).
Voltando à temática principal deste trabalho, tem-se que o art. 150, inciso IV, da Constituição menciona tão somente “tributo”.
Fazendo interpretação literal desse dispositivo, parcela da doutrina defende que o princípio do não confisco aplica-se unicamente aos tributos.
Por outro lado, há quem defenda a aplicabilidade do princípio do não confisco também às multas tributárias, corrente que merece prevalecer.
Conforme posto anteriormente, os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são postulados aplicáveis a todo o ordenamento jurídico, não havendo qualquer razão ontológica para excluir-se a sua aplicabilidade às multas tributárias.
As relações travadas entre o Estado e os particulares devem ser pautadas pela razoabilidade e pela proporcionalidade, quer se trate de tributo, quer se trate de multas, especialmente porque o Código Tributário Nacional considera obrigação tributária principal tanto os tributos quanto as multas tributárias, na linha do que se afirmou anteriormente.
Por isso, com razão a doutrina ao afirmar que “não pode o ente prever punições para as infrações tributárias com penas desproporcionais e abusivas” (ORTEGA; VIEIRA, 2021, p. 254), sob pena de violação aos vetores igualdade, justiça material e racionalidade.
Não há jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal sobre a aplicabilidade do princípio do não confisco às multas tributárias. Embora tenha sido reconhecida a existência repercussão geral sobre o tema (“Recurso extraordinário em que se discute, à luz do art. 150, IV, da Constituição Federal, a razoabilidade da aplicação da multa fiscal qualificada em razão de sonegação, fraude ou conluio, no percentual de 150% sobre a totalidade ou diferença do imposto ou contribuição não paga, não recolhida, não declarada ou declarada de forma inexata (atual § 1º c/c o inciso I do caput do art. 44 da Lei 9.430/1996), tendo em vista a vedação constitucional ao efeito confiscatório.”), o recurso não foi julgado.
Entretanto, há diversos julgados não vinculantes do próprio Supremo Tribunal Federal valendo-se do princípio da razoabilidade ou proporcionalidade na tributação para declarar a inconstitucionalidade de multas excessivas e desproporcionais.
Nesse sentido, a Corte Suprema já decidiu ser inconstitucional a cobrança de multa estipulada em duas vezes o montante do tributo não pago. Confira-se a ementa de tal julgado:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. §§ 2.º E 3.º DO ART. 57 DO ATO DAS DOSPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. FIXAÇÃO DE VALORES MÍNIMOS PARA MULTAS PELO NÃO-RECOLHIMENTO E SONEGAÇÃO DE TRIBUTOS ESTADUAIS. VIOLAÇÃO AO INCISO IV DO ART. 150 DA CARTA DA REPÚBLICA. A desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em contrariedade ao mencionado dispositivo do texto constitucional federal. Ação julgada procedente. (STF, Tribunal Pleno, ADI 551, Relator Ministro Ilmar Galvão, julgado em 24.10.2002, DJ 14.02.2003).
Vale consultar o seguinte trecho extraído do voto proferido pelo Ministro Relator em tal julgado, em que há menção expressa ao princípio da proporcionalidade:
O art. 150, IV, da Carta da República veda a utilização de tributo com efeito confiscatório. Ou seja, a atividade fiscal do Estado não pode ser onerosa a ponto de afetar a propriedade do contribuinte, confiscando-a a título de tributação.
Tal limitação ao poder de tributar estende-se, também, às multas decorrentes de obrigações tributárias, ainda que não tenham elas natureza de tributo. [...]
O eventual caráter de confisco de tais multas não pode ser dissociado da proporcionalidade que deve existir entre violação da norma jurídica tributária e sua consequência jurídica, a própria multa.
Desse modo, o valor mínimo de duas vezes o valor do tributo como consequência do não-recolhimento apresenta-se desproporcional, atentando contra o patrimônio do contribuinte, em evidente efeito de confisco.
Igual desproporção constata-se na hipótese de sonegação, na qual a multa não pode ser inferior a cinco vezes o valor da taxa ou imposto, afetando ainda mais o patrimônio do contribuinte. [grifou-se]
Nesse ponto, convém registrar que o Supremo Tribunal Federal, em julgados mais recentes, vem entendendo que a multa assume caráter confiscatório quando ultrapassa o valor da própria obrigação, ou seja, 100% (cem por cento) do tributo devido. É o que se infere dos seguintes julgados:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO. NECESSIDADE DE NOTIFICAÇÃO. CARÁTER CONFISCATÓRIO DA MULTA FISCAL. Em se tratando de débito declarado pelo próprio contribuinte, não se faz necessária sua homologação formal, motivo por que o crédito tributário se torna imediatamente exigível, independentemente de qualquer procedimento administrativo ou de notificação do sujeito. O valor da obrigação principal deve funcionar como limitador da norma sancionatória, de modo que a abusividade se revela nas multas arbitradas acima do montante de 100%. Agravo regimental a que se nega provimento. (STF, Primeira Turma, AI 838302 AgR, Relator Ministro Roberto Barroso, julgado em 25.02.2014, DJ 31.03.2014).
TRIBUTÁRIO – MULTA – VALOR SUPERIOR AO DO TRIBUTO – CONFISCO – ARTIGO 150, INCISO IV, DA CARTA DA REPÚBLICA. Surge inconstitucional multa cujo valor é superior ao do tributo devido. Precedentes: Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 551/RJ – Pleno, relator ministro Ilmar Galvão – e Recurso Extraordinário nº 582.461/SP – Pleno, relator ministro Gilmar Mendes, Repercussão Geral. (STF, Primeira Turma, RE 833106 AgR, Relator Ministro Marco Aurélio, julgado em 25.11.2014, DJ 12.12.2014).
Portanto, tanto ponto de vista doutrinário, quanto do ponto de vista jurisprudencial (ainda que não definitivo), chega-se à conclusão de que o princípio do não confisco ou da razoabilidade na tributação aplica-se perfeitamente às multas tributárias, que não podem superar o montante do correspondente tributo.
5. Considerações finais
O princípio do não confisco impede que o tributo invada excessivamente o patrimônio do particular. Ao cabo, ele representa importante faceta dos princípios (ou postulados) da razoabilidade e da proporcionalidade no direito tributário.
Não há dúvida de que o princípio do não confisco se aplica aos tributos, visto que o art. 150, inciso IV, da Constituição Federal assim dispõe expressamente.
Há controvérsia, porém, quanto ao emprego de tal princípio às multas tributárias. É que multa não se confunde com tributo, já que aquela objetiva punir um ato ilícito, finalidade que este jamais pode ter, por força do conceito previsto no art. 3º do Código Tributário Nacional.
Embora o art. 150, inciso IV, da Constituição Federal mencione apenas os tributos, o princípio do não confisco também se aplica às multas tributárias, por não haver argumento ontológico que afaste a aplicabilidade dos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade a estas.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral sobre o tema, mas ainda não houve fixação da tese.
De toda sorte, a partir dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e, ainda, de julgados esparsos não vinculantes do próprio Supremo Tribunal Federal, chega-se à conclusão de que o princípio do não confisco deve ser utilizado na interpretação de normas que preveem multas tributárias.
6. Referências
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário. 15. ed. revista, atualizada e ampliada. Salvador: JusPodivm, 2021.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12. ed. ampliada. São Paulo: Malheiros, 2011.
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BRASIL. Código de Processo Civil de 2015. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 17 nov. 2022.
BRASIL. Código Tributário Nacional. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172compilado.htm>. Acesso em 17 nov. 2022.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 08. Tribunal Pleno. Relator Ministro Celso de Mello. Julgado em 13 out. 1999. Disponível em: <https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&pesquisa_inteiro_teor=false&sinonimo=true&plural=true&radicais=false&buscaExata=true&page=1&pageSize=10&queryString=adc%208&sort=_score&sortBy=desc>. Acesso em 18 nov. 2022.
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Formado na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Pós graduado em Direito, Estado e Constituição pela Universidade Cândido Mendes. Analista judiciário do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BANDEIRA, RODRIGO DE PAULA. O princípio da razoabilidade na tributação e as multas tributárias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 dez 2022, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60564/o-princpio-da-razoabilidade-na-tributao-e-as-multas-tributrias. Acesso em: 29 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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