SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. “LA LITERATURA NO JURÍDICA ES LA QUE MAS NO ENSENA SOBRE LOS PROBLEMAS JURÍDICOS”: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA NECESSIDADE DA INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICAS NAS PESQUISAS JURÍDICAS. 2. DIREITO E DISCURSO. 2.1 A Teoria Reflexiva do Direito e aplicabilidade na pesquisa em questão. 2.2 Informes epistemológicos e metodológicos. 2.3 As formações discursivas no corpus em questão. 3. A REALIDADE DO CONFLITO POSSESSÓRIO E O NOVO REGRAMENTO PROCESSUAL. 3.1 Comentários ao relatório do “Observatório da atuação do Poder Judiciário nos conflitos agrários decorrentes de ocupações de terra por movimentos sociais nos estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2003-2011)”. 3.2 Exame do novo regramento processual das ações possessórias. 4. A ATIVIDADE JUDICATIVA NOS CONFLITOS AGRÁRIOS: UMA ABORDAGEM ANALÍTICA DA JURISPRUDÊNCIA ATUAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO
Em dezesseis de março de dois mil e quinze, foi sancionado, sob a forma da Lei de número 13.105, o Novo Código de Processo Civil. Este passou por um processo de tramitação que se estendeu durante cinco anos, quando da instituição da Comissão de Juristas, esta encarregada de elaborar o anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, nos termos do ato nº 379, de 2009.
No ato supracitado, faz-se referência a situações as quais ensejariam a criação de tal Comissão, baseando-se na necessidade de uma nova codificação. As considerações se sustentam em duas problemáticas, quais seja o hiato teórico existente entre um código datado de 1973 e a proteção dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente, bem como o comprometimento da sistematicidade em decorrência de diversas alterações surgidas ao longo de sua vigência e, por conseguinte, o prejuízo à coerência interna do código (BRASIL, Senado Federal, 2009).
Acerca da primeira problemática levantada, o Novo Código de Processo Civil se configura em uma conquista histórica, visto ser o primeiro Código de Processo Civil brasileiro cuja elaboração se iniciou e terminou em período democrático. Nas palavras do Professor Fredie Didier Jr., em seu discurso na Câmara dos Deputados “Este Código foi gestado em regime democrático, ouvidos todos os sujeitos, todos os atores do processo, todos eles, todos os agrupamentos, todos os setores que atuam no processo. Todos estão contemplados no projeto” (DIDIER, 2013).
Tal comentário reflete o processo de tramitação do Projeto de Lei do Senado 8.046 de 2010, apensado ao Projeto de Lei 6.025 de 2005, no qual foi possível a participação de diversos autores no processo, isto é, a participação de toda a comunidade (CARNEIRO, 2011), quer seja a partir dos debates das Câmaras dos Deputados, seja a partir dos Seminários e das Audiências Públicas as quais discutiram e examinaram o projeto, bem como sugestões enviadas a partir do portal e-Democracia, além das Consultas Públicas também realizadas.
Diante desta possibilidade de constituição democrática, foi possível que diversos discursos ecoassem para a construção de sentidos no Novo Código de Processo Civil, sendo eles homogêneos ou não. A possibilidade de ampla discussão se reflete na diversidade de ópticas no trato do tema, o que se entende como um terreno fértil para a análise dos institutos trazidos no novo código.
Assim, visando a contribuir no debate, a pesquisa tem por escopo a identificação de discursos que construíram o sentido trazido no Novo Código de Processo Civil acerca do regime das ações possessórias e como tal sentido se reflete no contexto do fenômeno dos conflitos fundiários.
Para pesquisar, recorreu-se às categorias da análise de discurso de Dominique Maingueneau, especificamente a cena da enunciação (o contexto, as sequências das enunciações), a formação discursiva (a situação da enunciação e os saberes anteriores constitutivos da enunciação) e o interdiscurso. (MAINGUENEAU, 2007, p. 21-24; MAINGUENEAU, 2008, p. 27-34; MAINGUENEAU, 2010, p. 30-32; 80-85; 140-155; 200-206).
Como, para analisar discursos, é indispensável uma teoria social, como afirma Maingueneau, recorremos à teoria da sociedade de Niklas Luhmann, a qual nos possibilita observar como discursos constituintes (sistemas sociais) da política, do direito, e da economia dão forma a tal discurso.
A partir disso, a pesquisa se sustentou na observação da articulação entre os enunciados discursivos coletados para verificar como o discurso acerca dos conflitos latifundiários ocupa espaço no debate legislativo e, assim, reflete-se na elaboração da lei em questão, a qual elaborou o Novo Código de Processo Civil.
Dito em outras palavras, os discursos constituintes - sejam eles econômicos, jurídicos, ou políticos – articulam-se e concebem um sentido maior na concepção e construção legislativa das ações possessórias. A pesquisa, assim, ocupou-se em entender quais são tais discursos e qual o sentido concebido por eles, bem como a maneira que este sentido se constituiu no texto legal.
Pois bem, no primeiro capítulo, faremos as considerações acerca da necessidade de que a análise acima delineada seja pautada, para além do ambiente hermético jurídico, por considerações fundamentadas em outros saberes, porquanto intersecciona-se com outras construções, a saber: sociológicas, antropológicas e políticas.
Lado outro, em um segundo momento, abordaremos, precisamente, as categorias de análise utilizadas como metodologia do presente estudo, a fim de que sejam evidenciados os seus informes epistemológicos e pontos de partida.
Realizadas tais considerações, passa-se à análise dos enunciados discursivos que alimentaram o Projeto de Lei 6.025 de 2005, contrapondo-os à realidade dos conflitos latifundiários no Brasil, por intermédio dos dados obtidos pelo relatório do “Observatório da atuação do Poder Judiciário nos conflitos agrários decorrentes de ocupações de terra por movimentos sociais nos estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2003-2011)”.
Em sendo assim, restou possibilitada a apreciação do substrato fático que deu ensejo às alterações promovidas pelo novo diploma processual, ao passo que, por outro lado, foi-nos permitido analisar se as inovações dos instrumentos processuais estão aptos a, de fato, atender essa realidade.
1.“LA LITERATURA NO JURÍDICA ES LA QUE MAS NO ENSENA SOBRE LOS PROBLEMAS JURÍDICOS”: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA NECESSIDADE DA INVESTIGAÇÃO SOCIOLÓGICAS NAS PESQUISAS JURÍDICAS
A análise dos institutos jurídicos do Direito, quase sempre, é pautada pela releitura de doutrinas, jurisprudências e teorias, fontes as quais são direcionadas a um ambiente hermético, no qual a produção acadêmica é realizada para uma retroalimentação. Assim, as ditas doutrinas, jurisprudências e teorias são reproduzidas para os mesmos, com as finalidades mesmas, entendendo o Direito enquanto um saber autossuficiente. Esquece-se, dessa forma, que há um Direito prévio cuja existência antecede ao próprio texto da lei, aquele reflete uma realidade na qual se intersecciona diversas concepções, a saber sociológicas, antropológicas, políticas, dentre outras.
Ignorando-se este fato, a produção tende a se pautar a partir de “diversas estratégias retóricas, criam uma série de justificações com algum encadeamento lógico questionável que tentam firmar uma escolha política com ares quase científicos, para tornar sua retórica mais eficaz” (OLIVEIRA, 2014). Negando-se, de tal maneira, as particularidades do trato da matéria a qual o Direito se pretende refletir. Ao se eximir desse espaço – de produção de hipóteses, inferências e pesquisas –, a interpretação da ordem jurídica ignora, todavia, a interpretação trazida pela ordem sociológica, bem como outras possíveis interpretações de naturezas diversas àquela do direito estrito.
No trato do tema em questão, por exemplo, a análise dos conflitos fundiários, sejam eles agrários ou urbanos, carece de se dedicar ao que se chama de “investigação urbana”, que “constituye uma corriente de análisis de la ciudad en la cuals e han transpuesto las fronteras disciplinarias tradicionales com el fin del legar a una comprensión más cabal de los problemas urbanos de nuestros países” (CUEVA, 1990).
Complementa, o autor, que “Dentro de esemovimiento interdisciplinario, el derecho ha estado en buena medida ausente. Y eso explica lo que a primera vista parece una paradoja: la literatura no jurídica es la que más nos enseña sobre los problemas jurídicos”.
A atuação do judiciário nas questões agrárias tem uma relação com a estratégia do ativismo público utilizada pelos movimentos sociais, que assume as formas mais variadas de protesto popular como, marchas, petições, encontros, greves de fome, acampamentos de protesto, acampamentos a beira de rodovias e também atos de desobediência civil como bloqueios de estadas, piquetes e ocupações de terra e de prédios públicos.
O desenvolvimento das atividades, o alcance social e o caráter que assumem, dependem de uma equação que envolve tanto os recursos mobilizadores disponíveis ao movimento (humanos, materiais e de ideias) como das oportunidades políticas de ação (tolerância do regime, a capacidade do Estado, a instabilidade das elites, a disposição do governo, os aliados políticos e a atenção pública).
Das formas de ativismo público a que mais ganha atenção social e ao mesmo tempo se constitui num espaço de observação da atuação dos movimentos sociais e do Estado é a ocupação organizada de terra, por geralmente cobrar um posicionamento, tanto do judiciário como dos órgãos de controle do Estado, no processo de desocupação da área ou mesmo da discussão de algum litígio envolvendo o bem sobre ocupação (CARTER, 2010, p. 202-206).
O Estado também assume uma presença peculiar nos processo de ocupação da terra. A escolha seletiva dos bens a serem ocupados, apesar de passíveis da produção de respostas simples, como uma ação de reintegração de posse, quase sempre vem acompanhada da discussão do caráter social da decisão proferida pela justiça e neste aspecto o debate alcança a sociedade, levantando considerações sobre a proteção de determinados bens que não cumprem aspectos legais e que demonstram a pouca ação do Estado frente à realização de uma Reforma Agrária, mesmo que dentro dos parâmetros jurídicos já definidos.
Em síntese, a observação da intervenção do judiciário no problema agrário brasileiro, através das Ações Possessórias seria incompleta se não levasse em consideração a realidade agrária diferenciada que se estruturou no Brasil, marcada principalmente por uma fronteira em movimento. A existência de uma fronteira em movimento no Brasil produziu diferentes
Dessas considerações, decorre a necessidade de que a análise dos institutos jurídicos – inclusos os instrumentos processuais, como as ações possessórias em questão – necessita ser pautada, também, a partir da investigação de outros saberes, tal como a sociologia.
2.DIREITO E DISCURSO
2.1 A Teoria Reflexiva do Direito e aplicabilidade na pesquisa em questão
Ao conceber o Direito como um construto social não previamente estabelecido, aquele não possui uma essência, mas, sim, comunica-se a partir de seus discursos. Tal comunicação, sendo uma linguagem, reflete a sociedade, isto é, reflete como o Direito vem sendo pautado. Esta ideia de sociedade se comunica com a ideia de discurso, haja vista que este é uma soma de infinitas coisas presentes na sociedade, como traz Maingueneau.
As instituições discursivas compõem o interdiscurso, tais como a cenografia, o campo discursivo, a dêixis discursiva, as condições do universo de sentido, o espaço temporizado, os contratos discursivos, a enunciação, o enunciado, o ethos discursivo, entre outros (MAINGUENEAU, 2007, p. 21-24; MAINGUENEAU, 2008, p. 27-34; MAINGUENEAU, 2010, p. 30-32; 80-85; 140- 155; 200-206). O interdiscurso, por sua vez, é entendido como o discurso que se comunica com sua história, com seus elementos, a sua identidade. Disso, tira-se que não existe um discurso primeiro, um discurso originário, adâmico. Há sempre o pressuposto de que há um elemento anterior à construção desse discurso, uma historicidade. E sendo o Direito uma construção, este, também, é uma desconstrução social constante.
A “Teoria do Discurso Constituinte”, de Dominique Maingueneau, ampara este trabalho a partir de duas vertentes: ao possibilitar entender o discurso dos movimentos sociais inseridos no âmbito dos conflitos coletivos latifundiários, e ao possibilitar entender a construção de sentido do legislativo ao discutir as ações possessórias na Audiência Pública na Câmara dos Deputados acerca dos procedimentos especiais. Analisa-se, assim, o seu local de fala, com seus atores – locutor e destinatário -, e todos os pressupostos necessários para que tal discurso se propague e ganhe espaço. Além disso, ao entender o discurso como não adâmico, é possível analisar a existência de sua historicidade enquanto construção, e não como um produto acabado; ao passo que nos possibilita, também, visualizar a cena que enseja a identidade discursiva do movimento, isto é, a delimitação do espaço discursivo a partir de suas regras e “acordos” para que haja a comunicação.
Sendo assim, o Direito, isto é, o enunciado jurídico, enquanto linguagem que comunica, constitui e é constituído de sentido. E esse sentido, para a teoria de análise do discurso trazida por Maingueneau, pode ser visto a partir de um ponto de vista histórico linguístico (o que envolve uma teoria da linguagem) e um sociológico (o que envolve uma teoria social) sobre o discurso (MAINGUENEAU, 2008, p. 15).
Foi preciso aportar à concepção de discurso constituinte a de sociedade, afinal acrescer às categorias analíticas propostas por Maingueneau à teoria da sociedade de Niklas Luhmann ampliou o foco da pesquisa à visão de sociedade como sistema social que abarca todas as comunicações possíveis. É que em Luhmann, sistemas sociais são comunicações hipercomplexas que, ao longo da história, constituíram os sistemas sociais, pois para Luhmann “o mundo mesmo é tão só o horizonte total de toda vivência provida de sentido”, “o mundo é a totalidade do que em cada sistema significa sistema/entorno”. (LUHMANN, 2007, p. 115).
Sendo a “Teoria dos Sistemas” um dos marcos teóricos adotados, entende-se que, segundo ele, os sistemas operam autopoieticamente. Em outras palavras, as operações do sistema se constroem internamente (LUHMANN, 2010, p. 102-103), de modo que se retroalimentam, em um “fechamento operacional”. Uma operação, então, se dá por outra, a partir da comunicação, dando forma ao sistema.
Em um determinado discurso, podemos encontrar a interferência de diversos sistemas. Isso ocorre, pois, apesar de serem autônomos, os sistemas podem se acoplar uns aos outros, ora de maneira firme, ora de maneira frouxa (LUHMANN, 2007, p. 151-152). Cada sistema social, de acordo com o autor, faz parte de um sistema maior - o sistema da sociedade - e são formados a partir de comunicações.
Quando esse acoplamento se dá de maneira frouxa, há o que se chama de irritação do sistema, em que os sistemas conseguem se influenciar. Cada sistema, por sua vez, possui a sua unidade de operações e distinções. O do Direito, por exemplo, é constituído pelo código binário de lícito/ilícito; enquanto o da política, de governo/oposição; o da econômica, crédito/não crédito; o da arte, belo/feio. Um sistema se diferencia do outro, como dito, pelo processo de diferenciação de meio/entorno. Diante disso, cada sistema se comunica de uma maneira, possuindo uma unidade, sendo esta os códigos binários. Os códigos binários são distinções as quais possuem valores negativos e positivos. (LUHMANN, 2007, p. 593).
O sistema do Direito, como dito, comunica-se a partir da distinção entre lícito e ilícito, a qual possibilita que o sistema se comunique e reproduza a partir dela. Assim, a partir dos códigos, podemos perceber o que está dentro do sistema – quando se comunica a partir do código binário do sistema – e quando está no entorno, fora dos limites do sistema.
Ainda que as comunicações de um sistema não sejam capazes de interferir diretamente nas comunicações de outro sistema, por possuírem códigos binários diferentes e, por conseguinte, serem sistemas diferentes e autorreferentes; um movimento pode ser identificado como resultante das operações simultâneas de vários sistemas: ainda que não se interfiram diretamente, cada qual com suas operações comunicacionais podem caminhar para e operacionalizar um mesmo acontecimento.
2.2 Informes epistemológicos e metodológicos
Carece, para tal análise, delinear o espaço da amostra coletada em questão e, por conseguinte, o ambiente em que tais discursos foram construídos e alimentados. Utilizando-se da “Teoria do Discurso Constituinte”, de Maingueneau, tem-se que a análise do discurso é pautada, também, a partir do quadro de enunciação em que o discurso está sendo construído, isto é, sua condição de construção. Assim, podem ser percebidas as condições que possibilitaram que tais falas ocorressem a partir do que Maingueneau traz com sua ideia de contrato.
Desde setembro de 2011, a Câmara dos Deputados debateu o Projeto de lei nº 8.046, de 2010, além das proposições correspondentes (projetos de lei apensados, emendas à Comissão e emendas e subemendas dos Relatores-Parciais). Para tal debate, diversos mecanismos foram utilizados, como visto. As audiências públicas foram um destes, sendo realizadas 15 destas na Câmara dos Deputados. Algumas delas foram disponibilizadas no portal “e-Democracia” da Câmara dos Deputados, em sua biblioteca virtual. Nesta, há um espaço intitulado “e-Democracia Código de Processo Civil”, o qual tem por fito ser uma “Comunidade criada para debater com segmentos interessados da sociedade o Projeto do novo Código de Processo Civil no âmbito da Câmara dos Deputados” (BRASIL, Câmara dos Deputados). Nesse espaço, além de disponibilizados a legislação, as proposições normativas, artigos e publicações, e notas das audiências públicas, há, também, os vídeos destas[1].
Foi a partir deles que a análise da construção de sentido acerca das possessórias se estruturou. É sabido que, de um texto legal, não é possível se desprender a vontade do legislador. Assim o é, pois um texto jurídico não é produzido por um indivíduo, mas, sim, por um colegiado, o qual não é dotado de “vontade”, visto que não se pode conhecer a intenção de cada legislador. Não podemos, de tal modo, adentrar em seu “cognoscente”, o que é diferente de analisar como a sua vontade se expressou no texto legal. Nesse sentido, no momento em que deixa de ser intenção e passa a ser o texto jurídico, cabe a lição de Umberto Eco:
A escrita é esse neutro, esse compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve. (...) O autor entra na sua própria morte, a escrita começa(1968).
Por outro lado, podemos entender como determinado texto legal caminhou, em sua construção, para a produção de um sentido. Não se trata de estabelecer uma verdade ou de procurar arguir fundamentos incontestáveis. Trata-se, sim, de, com base nas limitações trazidas pelo corpus de pesquisa em questão, tecer conclusões a partir deste.
Dito isso, o corpus da pesquisa se constitui pela Audiência Pública realizada em 26 de outubro de 2011, sendo a décima reunião ordinária convocada por uma “comissão especial” do PL 8.046/2010, destinada a proferir pareceres aos projetos de lei que tratam do Código de Processo Civil. Tal audiência tratou, em específico, dos ditos “Procedimentos Especiais”, nos quais as Ações Possessórias estão inclusas, sob a relatoria parcial do deputado Bonifácio de Andrada. O vídeo está disponível no endereço do portal supracitado[2] e contou como convidados Marcos Destefenni, Sérgio Cruz Arenhart, Leonardo Carneiro Da Cunha, Fredie Didier Junior, Luiz Henrique Volpe Camargo e Sérgio Muritiba.
A audiência foi assistida e, junto com as suas notas taquigráficas[3], foi possível a identificação das formações discursivas que se pautaram na discussão acerca das ações possessórias. Ainda que a amostra não abarque todo o universo possível de obtenção de dados acerca das discussões do PL 8.046/2010, entendemos que, tratando-se de uma pesquisa qualitativa, tal fato não se constitui enquanto um óbice; mas, sim, enquanto um recorte necessário. O critério deste, por sua vez, se fundou unicamente em ser a Audiência Pública em questão a única disponível no portal supracitado acerca dos procedimentos especiais. Realizadas tais considerações, seguimos com a identificação das formações discursivas na amostra encontrada.
2.3 As formações discursivas no corpus em questão
A Audiência Pública referente à décima reunião ordinária da Comissão Especial do PL 8.046/2010 se deu, como dito, na Câmara dos Deputados. Identificar o local em que os enunciados de fala e suas formações discursivas se constituíram é fundamental, bem como saber quais são os atores que compunham tal cenário. Assim, é possível se perceber os já citados elementos trazidos pela “Teoria do Discurso Constituinte”, de Maingueneau, como o quadro de enunciação e a ideia de contrato.
Como recomenda Maingueneau, interpretar mobiliza regras pragmáticas, o que envolve leis do discurso, tais como: a) pertinência, sinceridade; informatividade; exaustividade; modalidade (clareza e economia) e a polidez (face positiva, fachada social, e a negativa, território individual de cada um). (MAINGUENEAU, 2005, p. 36-38).
O quadro de enunciação, assim, é composto por diversos atores do cenário legislativo e jurídico, quer sejam deputados, operadores do direito e professores. As falas dos atores do cenário tratado se desenvolveram a partir de inscrições, estando cada limitado ao tempo de vinte minutos, nos quais poderiam realizar as suas considerações e, posteriormente, três minutos. Nesse ambiente, logo, estavam pessoas que possuíam familiaridade no trato das matérias. Enquanto ambiente em que a amostra foi obtida, a Câmara dos Deputados pode ser considerada, na estrutura que se deu na Audiência Pública, como um ambiente de falas próximas acerca de quem fala e de quem recebe, podendo quem as recebe fazer interferências, após inscrição. De tal modo, percebe-se a dinamicidade no trato das questões levantadas, visto que a Audiência se colocou enquanto um ambiente de trocas e discussões.
As audiências, como visto, foram gravadas e registradas pelo Núcleo de Redação Final em Comissões, a ser disponibilizada a sua redação final no sítio da Câmara dos Deputados. Assim, podemos indagar acerca dos papeis e locais de falas ocupados pelos deputados e juristas que compunham o cenário estudado, tendo em vista os elementos trazidos anteriormente pela teoria de Maingueneau. Não podemos inferir em absoluto acerca da pertinência, sinceridade e polidez das falas, por exemplo. Contudo, podemos realizar a leitura de tais falas enquanto enunciados presentes em um ambiente político, de entraves ideológicos, os quais necessitavam se fazer pertinentes e claros e suscitar acerca de ser uma “fachada social”, seguindo a nomenclatura do autor.
Esses entraves, por sua vez, são presentes na fala do Promotor de Justiça Marcos Destefenni, quando este referencia, no final da Audiência Pública, a importância destas divergências, pontuando:
O quanto é profícuo o debate, numa Câmara dos Deputados, o confronto de ideias e de opiniões divergentes. É isso que nós fazemos via e-mail ou via telefone e temos a oportunidade aqui de, em público, também reiterar e constatar que não temos todos as mesmas opiniões, e isso é salutar para o progresso do Direito Processual. E não haveria lugar mais adequado para que isso fosse feito.
Nesse mesmo sentido, o deputado Sérgio Barradas Carneiro, ao discorrer acerca do ambiente de discussão na Câmara dos Deputados, afirmou que se sentia “extremamente confortável com esta comissão de juristas que trabalham comigo e que verificam todas essas sugestões que nós temos recebido”.
A problemática das ações possessórias foi trazida logo no início da Audiência Pública pelo Promotor de Justiça Marcos Desteffeni, vindo a ser ponto de pauta, também, em outros momentos. Um dos pressupostos da discussão acerca deste instituto consistiu nas peculiaridades presentes nas ações possessórias, principalmente ao se tratar de conflitos coletivos, quer sejam agrários ou urbanos. Essas peculiaridades – as quais não estariam em consonância com o que previa o antigo código - foram consideradas como um reflexo de que o Código de Processo Civil de 1973 foi construído para uma realidade a qual não mais existe agora. Assim, o suporte fático não estaria mais em harmonia com as previsões legais. Quando da percepção se os projetos trazidos pelo PL 8.046/10, o professor Fredie Didier considerou que:
Não houve uma preocupação grande com uma atualização do tema ao nosso tempo. Então houve basicamente a manutenção de procedimentos especiais de 100 anos de existência, sem nenhuma preocupação com procedimentos especiais para a nossa época. Daí a razão que me parece estar com os expositores (...). É preciso pegar o Código hoje e adequá-lo ao nosso tempo.
Destefenni também realizou comentários na mesma linha de pensamento de Didier, atentando:
O Código de 1973 e o instituto da tutela da posse são muito anteriores a isso, remontam ao Direito Romano. Mas a questão possessória sempre foi pensada à luz da reintegração de uma propriedade, num conflito de vizinhança, numa questão que envolve um conflito intersubjetivo.
A necessidade trazida por esse entendimento foi acompanhada pelo deputado Bonifácio de Andrada, o qual considerou que:
É mesmo necessário meditar a respeito do problema da ocupação urbana, de que o nobre professor falou. É uma questão muito atual o que o crescimento das grandes cidades vem provocando em várias partes do País. Verifica-se que há controvérsia entre o proprietário e aqueles que passam a ter posse, passam a ocupar áreas realmente enormes no meio urbano. É um assunto grave, a respeito do qual temos de meditar. Precisamos procurar, com o Relator-Geral, alguns caminhos para enfrentar esse tema.
Percebe-se, diante desses enunciados, que a realidade do regime das ações possessórias, tal como pôde ser observado no relatório anteriormente citado, possui particularidades que foram se acentuando ao longo do tempo. O Código de 1973, assim, mostrou-se anacrônico para responder aos fatos hoje existentes. Sucede que, diante disso, esperou-se que o Novo Código de Processo Civil viesse para quebrar este anacronismo. Entretanto, como se pode desprender da fala do professor Didier, os projetos levados à discussão, ao tempo da audiência em questão, não modificaram de maneira relevante os procedimentos especiais acerca das possessórias.
De maneira contrária, o deputado Vicente Arruda entendeu que:
E os instrumentos de que dispomos no Código já são suficientes para que o juiz possa não só determinar a reintegração, mas também definir a medida liminar. Eu não acho que seja necessário estabelecer o elo pretendido por V.Exa. [fazendo referência a Destefenni]entre a ação de reintegração de posse e os elementos que apoiam a ação do juiz, porque isso está na parte geral e se aplica a todas as ações, para que a tutela jurisdicional possa prevalecer. Até se criou no Código um sistema que não existia no anterior, uma parte geral que se aplica a todo o Código. Eu acho que o juiz já dispõe desses instrumentos.
As falas, assim, dividiram-se em os que entendiam a necessidade da reformulação do regime das ações possessórias, dado que as suas peculiaridades não eram atendidas pelos procedimentos especiais previstos no Código, e pelos que entendiam que tais alterações não eram necessárias.Outro ponto de discordância pôde ser visto em relação ao entendimento do motivo da importância da discussão acerca das possessórias. Enquanto Destefenni defendeu que
É um tema particularmente sensível que merece a nossa reflexão. (...) Então nós temos um ponto absolutamente sensível não só do ponto de vista jurídico, mas do ponto de vista econômico, do ponto de vista social, a questão das ocupações de grandes áreas e ocupação de propriedades urbanas, não só urbanas. (...) Veja como a questão é polêmica, tanto para que a reintegração, nesses casos, tenha efetividade, quanto para que, se for o caso de reintegração de posse, que existam subsídios para uma decisão bem fundamentada, em relação não só à determinação da reintegração, mas em relação às medidas que serão utilizadas para a reintegração.(...). Por exemplo, uma outra questão que nós poderemos discutir: medidas compensatórias, quem acompanhará in loco a efetivação daquela medida possessória da reintegração, então são pontos sensíveis, mas eu não queria me furtar a mencionar esse ponto sensível nas nossas discussões e não perder a oportunidade para expor esse tópico.
O desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, fez suas considerações entendendo da seguinte maneira:
Eu vejo com muita preocupação o romantismo com que se tenta fazer lei. Vou explicar o que se chama de romantismo, e vou dar um exemplo concreto. Quando se busca a reintegração de posse eu não posso ter pensamento no social. O juiz não tem pensamento no social, é uma inversão dos valores. (...) Eu tive um caso concreto em que invadido um terreno, que ameaçava ruir em razão de chuva e matar todo mundo, os invasores colocavam uma exigência: só saio daqui se eu tiver lugar pra ir, colchão pra dormir... Não é possível se pensar nisso. Então eu peço atenção que em um Código de Processo nós não podemos ter esse tipo de romantismo.
Da mesma maneira, trouxe suas considerações o deputado Vicente Arruda, pontuando que
Quer dizer, é o desrespeito à lei e aos princípios do direito positivo brasileiro, e é uma questão que convulsiona isso e nós não poderíamos de maneira nenhuma, porque o juiz já pode fazer a inspeção, já há a previsão de que o juiz possa fazer a inspeção, que possa recorrer a outros instrumentos para conceder a liminar, ele tem a capacidade de ação e a competência para fazer isso, isso tá nos poderes implícitos de um juiz quando colocado um fato para a sua deliberação. Se nos começarmos a colocar questões menores e tornar mais minudente o processo nós vamos tornar mais difícil a solução.
Rebatendo tal entendimento, Destefenni complementou afirmando:
Não vejo como um juiz pode ignorar um dispositivo constitucional que diz que a propriedade deva ter função social. Hoje a Constituição Federal exige, e o conceito de propriedade mudou extremamente em função disso.
É notório que o debate acerca das ações possessórias se funda, basicamente, no reconhecimento ou não de que tal instituto corresponde a um regramento que deve atender a uma realidade muito peculiar. Assim segue a fala trazida por Destefenni, afirmando que
O Código de 1973 foi previsto num outro contexto de conflitos de direitos intersubjetivos. E aqui nós já temos, na realidade de hoje, vários outros conflitos que ultrapassaram esse limite. (...) Nem toda reintegração é um simples conflito de vizinhança, um simples conflito intersubjetivo de duas pessoas.
As considerações trazidas nos mostra certa polarização no trato do tema, que se desenvolvem, de certa maneira, em raízes ideológicas diferentes. Em outras palavras, o ambiente em questão – Câmara dos Deputados – não pode deixar de ser visto enquanto um ambiente de disputa política, próprio do Estado Legislativo.
É a partir destas exposições que este estudo se pautará para entender como a discussão promovida pela Câmara dos Deputados se refletiu no texto legal aprovado, quer seja a Lei 13.105 de 2015, a qual instituiu o Novo Código de Processo Civil. Antes, porém, da análise dos aspectos processuais, há de se ter em mente as questões que, na prática, são levadas à apreciação do Judiciário.
3. A REALIDADE DO CONFLITO POSSESSÓRIO E O NOVO REGRAMENTO PROCESSUAL
3.1 Comentários ao relatório do “Observatório da atuação do Poder Judiciário nos conflitos agrários decorrentes de ocupações de terra por movimentos sociais nos estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2003-2011)”.
“Conflitos agrários e o Sistema de Justiça no Brasil” é a área temática a que se vinculou o projeto de pesquisa, cuja proposta teve como foco principal o diagnóstico e a análise das respostas que o sistema de justiça tem dado aos conflitos gerados a partir das ações de ocupações coletivas de terra no campo promovidas por movimentos sociais de luta pela terra, que resultaram na instauração de processos judiciais a partir da propositura de ações possessórias, no período de 2003 a 2011, em comarcas a serem selecionadas em quatro estados brasileiros: Pará, Mato Grosso, Goiás, e Paraná.
A investigação centrou-se na análise de processos judiciais, levantando os pressupostos de atuação dos juízes nesses conflitos, sobretudo como representam e interpretam as ações estratégicas dos movimentos sociais de ocupar coletivamente imóveis rurais, como analisam os institutos da posse e da propriedade, qual o rito por eles adotados, se observam os princípios constitucionais em jogo nesse tipo de conflito e de que forma são executadas suas decisões pelas autoridades competentes.
Cumpre abrir um parênteses para destacar que a escolha do espaço de observação nos Estados do Pará e Mato Grosso está relacionado com o grau de conflitos observados nos mesmos se deve a dois fatores. Um deles se relaciona com o fato de nestes estados estarem localizados as principais partes do território definido como o arco do desmatamento, uma porção de terra que se estende “entre o sudeste do Maranhão, o norte do Tocantins, o sul do Pará, norte do Mato Grosso, Rondônia, sul do Amazonas e o sudeste do Acre” (PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2004, p. 9), sendo que aproximadamente 70% do desmatamento ocorreram nos Estados de Mato Grosso, Pará e Rondônia (Presidência 2004, p. 9).
O alto índice de desmatamento nesta região tem relação direta com a ocupação recente da pecuária nos Estados do Pará e Mato Grosso, processo que vem acompanhado dos conflitos agrários, principalmente por este projeto econômico se desenvolver numa área que é marcada pela “fragilidade nos processos discriminatórios e outras ações de averiguação da legitimidade de títulos” (Presidência 2004, p. 11).
Um segundo fator que justifica a escolha dos Estados do Pará e Mato Grosso, se deve pelo grau de conflito que assumiu a questão agrária nestes dois estados. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra entre os anos de 2003 a 2010 o Estado do Pará registrou um total de 210 ocupações de terra, sendo que nestes estiveram envolvidos 32.927 famílias.
A escolha de Goiás como outro espaço de observação, por seu turno, deve-se ao fato do estado ter tido sua maior ocupação econômica e física, principalmente após as políticas agrícolas do Governo Federal, conduzidas nas décadas de 1970 e 1980, relacionadas com a expansão da soja para o cerrado brasileiro.
Já o Estado do Paraná, foi escolhido por se constituir, assim como o Rio Grande do Sul, no berço dos movimentos sociais formados na nova conjuntura de politização da reforma agrária, foi neste estado que também se consolidou a ocupação organizada da terra como estratégia de ativismo público, envolvendo o objetivo de disputa de ideias, convencimento público e pressão sobre o Estado, sobretudo se levarmos em consideração que o Paraná teve sua configuração agrária marcada pela presença dos posseiros em disputa com as companhias internacionais de colonização.
Ademais disso, pontua-se também que a definição do marco temporal de 2003 a 2011 se deve a dois fatores. Primeiramente, em 2004 foi constituído o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que ficou responsável por disciplinar no âmbito administrativo a condução das ações do judiciário no País, elemento que exerceu uma influência decisiva na atuação da Justiça. O segundo aspecto que justifica a definição do período apresentado se refere ao tempo em que as Ações, em grau de recurso, chegam às instâncias superiores do Poder Judiciário, atingindo, em média, o lapso temporal de seis anos. Isso porque, evidentemente, a observação da atuação judiciária só seria completa se observasse não somente a atuação do juiz de primeira instância, mas também as decisões colegiadas produzidas pelos Tribunais dos Estados e Superiores.
Pois bem, a leitura dos dados obtidos no relatório supracitado nos permite identificar a presença, dentre os estados participantes da pesquisa, de alguns pontos convergentes de problemáticas processuais. As conclusões trazidas pelo relatório em questão nos leva a contrapor as peculiaridades que envolvem os conflitos coletivos fundiários e a luta pela terra, visto serem litígios que se fundam, necessariamente em coletividades; com as peculiaridades trazidas pelas ações possessórias, enquanto instituto processual fundado em uma perspectiva teórica individualista.
Nesse sentido, é possível observar, por exemplo, no que se refere às condições da ação e a qualificação das partes, que há “dificuldades em se nomear e se qualificar todos os sujeitos que ocupam, ou ameaçam ocupar, determinada área de terra”. Sendo assim, é comum que haja ou a não qualificação, ou a qualificação incorreta “sob a alegação de que se nega a fornecer documentos ou talvez seja qualificado de invasores” (FERREIRA; MAIA; TÁRREGA, 2012), ou, ainda, a qualificação apenas de líderes do movimento, que passam a atuar como representantes de todos os demandados.
Outro ponto trazido é o prejuízo de que a função social da propriedade não encontra eco nas decisões judiciais analisadas. Os conflitos agrários são analisados, assim, a partir de categorias do direito civil e do processo civil tradicional. Sequer foi feita uma oxigenação constitucional (ROSA, 2010) das categorias de posse civil, ações possessórias, da turbação, do esbulho, da função social etc. (FERREIRA; MAIA; TÁRREGA, 2012), com base nas peculiaridades trazidas pelo direito agrário.
Por fim, há de se discutir acerca da participação do Ministério Público e de órgãos agrários, como o INCRA. A participação do Ministério Público é imposta por lei para casos de conflitos coletivos pela posse da terra, cuja ausência pode ensejar nulidade processual (art. 82, III, CPC). O INCRA, por sua vez, tem fundamental importância nesses litígios, porquanto ser uma autarquia federal cujo objetivo prioritário reside na realização da reforma agrária.
No estado de Goiás, por exemplo, o INCRA foi intimado apenas em 15% dos processos analisados. No Paraná, por sua vez, O INCRA não foi intimado a se manifestar em nenhum processo, enquanto o Ministério Público se manifestou em apenas 29% dos processos analisados. No Mato Grosso, entretanto, a situação é melhor: o INCRA se manifestou em 62% dos processos. No Pará, o representante do Ministério Público foi chamado a se manifestar em todos os processos.
A partir dessas visualizações – de como se encontra a atuação jurisdicional acerca dos conflitos coletivos agrários – podemos perceber as particularidades que envolvem esse tipo de litígio, particularidades essas que nem sempre encontram respostas no regramento do instituto processual das ações possessórias. O presente estudo, assim, a partir desses subsídios, pretende analisar a reformulação do instituto das possessórias no Código de Processo Civil de 2015, procurando entender como tais alterações correspondem – ou não – à realidade apresentada. É de se pontuar, novamente, que, sendo o Novo Código Processual o primeiro a ser construído em regime democrático – balizado pela Constituição de 1998, em específico – a expectativa residia na ideia de que os princípios previstos nesta estejam com ecos no novo regramento.
3.2 Exame do novo regramento processual das ações possessórias
É certo que o novo Código de Processo Civil, por ser construído em regime democrático e à luz da Constituição Brasileira de 1988 buscou refletir um processo de constitucionalização dos procedimentos previstos em seu texto, inclusos os procedimentos especiais e, assim, as ações possessórias. Além disso, as reformulações ocorridas na parte geral do código contribuem para tal, visto que os regimes especiais devem estar em harmonia com as normas fundamentais previstas. Como exemplo, tem-se o art. 8º, prevendo que:
Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
O capítulo III trata da matéria das possessórias, com início no art. 554. É neste que está previsto, em seu §2º, uma especificidade acerca dos conflitos fundiários coletivos, prevendo que
No caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública.
Outra especificidade está disposta no art. 565, o qual dispõe:
No litígio coletivo pela posse de imóvel, quando o esbulho ou a turbação afirmado na petição inicial houver ocorrido há mais de ano e dia, o juiz, antes de apreciar o pedido de concessão da medida liminar, deverá designar audiência de mediação, a realizar-se em até 30 (trinta) dias, que observará o disposto nos §§ 2o e 4o.
Vale o destaque, também, do §2º do mesmo artigo, o qual trata da situação ao entender necessário que:
Os órgãos responsáveis pela política agrária e pela política urbana da União, de Estado ou do Distrito Federal e de Município onde se situe a área objeto do litígio poderão ser intimados para a audiência, a fim de se manifestarem sobre seu interesse no processo e sobre a existência de possibilidade de solução para o conflito possessório.
São esses os regramentos trazidos pelo Código de Processo de 2015 que, em tese, tratariam das peculiaridades de um regramento específico em relação às ações possessórias fundadas em conflitos coletivos fundiários. Ocorre que, como visto, a realidade dos litígios coletivos possuem especificidades – tanto de ordens técnicas e objetivas, como, também, intersubjetivas – as quais carecem de um regramento mais adequado. Tanto a análise dos entraves ocorridos durante as discussões na Audiência Pública, quanto os dados trazidos pelo relatório possibilitam a percepção de que a realidade fundiária é bastante complexa.
Não se trata, por óbvio, de ignorar os avanços trazidos no Novo Código de Processo Civil. Para Antonio Sérgio Escrivão Filho, representante da Terra de Direitos, organização de direitos humanos, a alteração no regime das possessórias “inova ao trazer mecanismos de mediação tendentes a proporcionar solução pacífica a conflitos sociais coletivos, quando judicializados”[4]. Entretanto, para os movimentos sociais, o avanço foi considerando enquanto “tímido”, visto que não atendeu proposições como
(i) a ampliação da atuação do Ministério Público para os conflitos coletivos urbanos; (ii) o cumprimento da função social da propriedade como requisito para as ações possessórias; e, (iii) a audiência de justificação prévia antes das decisões liminares de despejo nas ações possessórias coletivas[5].
Grande discussão gira em torno sobre a aplicabilidade ou não de uma interpretação extensiva no que consiste o princípio da função social da propriedade, previsto no art. 170, da Constituição Federal. Do relatório anteriormente citado, é possível extrair que o Judiciário é silente, em seu procedimento decisório acerca das ações possessórias, sobre a função social da propriedade. É sabido que, nas ações possessórias, por se tratar de discussão sobre posse, não cabe o mérito acerca da propriedade. Esta ficaria designada a uma ação petitória.
Na lição de Comparato, “quem não cumpre a função social da propriedade perde as garantias, judiciais e extrajudiciais, de proteção da posse, inerentes à propriedade, como o desforço privado imediato e as ações possessórias” (2000, p. 146). A partir disso, indaga-se se não seria cabível invocar a “função social da posse”. A temática das ações possessórias se desenvolve a partir da óptica do proprietário, ignorando-se as questões fáticas e a realidade do “réu”. Assim, “se a posse é somente aquilo, todo o direito relacionado com ela antecipa um juízo de valor sobre toda a realidade, todo e qualquer “dado real inafastável”, considerando que somente é bom, legal e justo o que já é, e não o que pode ou deve ser” (ALFONSÍN, 2006).
Admitir, assim, a manutenção de conceitos arcaicos para entender questões complexas tais como as que envolvem a posse e a propriedade, bem como a conservação de conceitos também ultrapassados, como a posse nova e a posse velha, consiste em uma “tranquilidade que se empresta à uma exploração antissocial da terra, atribuindo a quem é agredido e tem os seus direitos humanos fundamentais violados por tal conduta o ônus de provar que ela descumpre com sua função social” (ALFONSÍN, 2006).
É preciso, assim, questionar o porquê que os institutos jurídicos não vêm sendo pautados para realidade que se pretendem aplicar. Nas audiências públicas, muito se discutiu acerca da complexidade da questão, da necessidade de regramentos específicos, das peculiaridades sociais e econômicas que envolvem esses conflitos que são, antes de tudo, intersubjetivos. Não se refletiu, entretanto, no texto legal sancionado, uma solução efetiva para os conflitos, mas, sim, em uma continuidade litigiosa a qual não se resume aos aspectos jurídicos. Ignorar essa realidade, é, logo, entende-las enquanto “realidades que são ativamente produzidas como inexistentes” (SANTOS, 2005, p. 29).A perpetuação desses institutos sem o aperfeiçoamento – inclusive constitucional – de seus conceitos é falha grave.
Se, com o advento da Constituição de 1998, e com “a consagração constitucional da função social da propriedade, como princípio que estrutura a ordem econômica brasileira e como um direito fundamental, tornou imperiosa a reestruturação do regramento infraconstitucional da tutela processual da posse” (DIDIER,2008), quando da possibilidade de tal reestruturação ocorrer – construção de um novo código processual civil – esta não ocorreu, havendo apenas uma fraca inclusão de dispositivos que discutem os conflitos coletivos. Becker sintetiza a questão ao afirmar que
Quando falamos que a função social deve também repercutir sobre o polo ativo da relação processual, queremos dizer que o processo civil brasileiro deveria pôr à disposição dos jurisdicionados ações, procedimentos especiais, o que for necessário, para conferir aos interessados o direito à terra, o direito à moradia, o direito à reforma agrária. (2002, p. 121)
Para o professor Didier, sendo a função social da propriedade um princípio, este deveria possuir uma eficácia direta e imediata na tutela da posse, devendo-se, de tal modo, “exigir como pressuposto para a tutela da posse a demonstração de cumprimento da sua função social” (2008). Complementa que só haveria “direito de propriedade se este for exercido de acordo com a sua função social”. Percebe-se que a função social da propriedade se configura enquanto um dever do proprietário, que deve dar um fim específico àquela.
Esse princípio carece de repercussão na tutela processual da posse, porquanto que
A posse é o principal instrumento de exercício do direito de propriedade, que, como visto, deve observar os deveres fundamentais decorrentes daquela cláusula geral constitucional. A posse é, pois, o instrumento da concretização do dever constitucional de observância da função social da propriedade (DIDIER, 2008).
Sucede que é contraditório que o primeiro Código de Processo Civil brasileiro com construção – do início ao fim – em regime democrático não reflita, de fato, a Constituição que o rege, principalmente porque tal construção, em tese, foi pautada por um processo de constitucionalização e modernização do processo civil.
4. A ATIVIDADE JUDICATIVA NOS CONFLITOS AGRÁRIOS: UMA ABORDAGEM ANALÍTICA
A última etapa a que se dedica essa pesquisa consiste, em apertada síntese, em exame jurisprudencial para efeito de se apreender se, de algum modo, as inovações trazidas pelo novo diploma processual foram efetivamente aplicadas. Em outros termos, visando à análise da aplicabilidade dos institutos, fora objeto de pesquisa as decisões proferidas, pelos tribunais pátrios, a partir da vigência do Código de Processo Civil de 2015, de sorte a evidenciar a atuação jurisdicional recente acerca dos conflitos coletivos agrários e como está sendo observada a tutela da posse.
Para tal, o ponto de partida consistiu na indexação das “palavras-chaves” que guiaram o presente estudo (e, especialmente, utilizadas de modo recorrente pelos julgadores, quando da apreciação de temas fundiários), realizando sobretudo um recorte nos estados que haviam sido objeto do relatório do “Observatório da atuação do Poder Judiciário nos conflitos agrários decorrentes de ocupações de terra por movimentos sociais nos estados do Pará, Mato Grosso, Goiás e Paraná (2003-2011)”.
Pois bem, ao inserir os termos “ações possessórias”, “novo código de processo civil”, e “intimação INCRA”, associando-se ao filtro do Tribunal do Estado do Mato Grosso, foram localizados 115 (cento e quize) acórdãos convergindo com as palavras-chave em questão. De uma análise minuciosa desses, foi possível se constatar que, regra geral, não há a intimação do INCRA para atuar no feito, cingindo-se a participação deste a questões de “expedição de certificado de georreferenciamento”. É o que se confere dos seguintes precedentes:
“APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO E PERDAS E DANOS (COD. 28.860). CONEXÃO COM AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C CONSIGNAÇÃO EM PAGAMENTO E PERDAS E DANOS (COD. 32.552) E COM AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE (COD. 36.932). POSSIBILIDADE. IDENTIDADE DE PARTES, OBJETO E CAUSA DE PEDIR, COM PEDIDOS DIFERENTES. QUESTÃO PRELIMINAR SUPERADA NA DECISÃO SANEADORA. DETERMINADA A REUNIÃO DOS PROCESSOS E PROFERIDA UMA SÓ SENTENÇA. LEGITIMAÇÃO ATIVA. ESTABILIZAÇÃO SUBJETIVA DA LIDE. CESSÃO DE DIREITOS HEREDITÁRIOS. SUBSTITUIÇÃO DO PÓLO ATIVO PELA EMPRESA CESSIONÁRIA ANTES DA CITAÇÃO VÁLIDA DOS PROMISSÁRIOS COMPRADORES. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 42, 219, 264 E 294 DO CPC/1973. ADMISSIBILIDADE. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL RURAL POR INSTRUMENTO PÚBLICO FIRMADO EM 03/06/2005. EXIGÊNCIA DE CUMPRIMENTO DA CLÁUSULA QUINTA QUANTO À REGULARIZAÇÃO DE DOCUMENTOS PELOS PROMISSÁRIOS VENDEDORES PARA DESMEMBRAMENTO DE ÁREA MENOR VENDIDA PARA A LAVRATURA DE ESCRITURA DEFINITIVA. INTELIGÊNCIA DO ART. 10 DA LEI Nº 10.267-2001 – LEI DE REGISTROS PÚBLICOS. FORÇA MAIOR. JUSTO IMPEDIMENTO PARA OBTER O CERTIFICADO DO GEORREFERECIAMENTO. PORTARIA Nº 21 DO INCRA/MT DE 28/03/2005 DETERMINANDO A SUSPENSÃO DA EXPEDIÇÃO DO CERTIFICADO DE GEORREFERENCIAMENTO.NOTIFICAÇÃO EXTRAJUDICIAL DOS PROMITENTES VENDEDORES POR TELEGRAMA RECEBIDO EM 2007, UM ANO APÓS O DESCUMPRIMENTO DO PAGAMENTO DE TODAS AS TRÊS PARCELAS, AVENÇADAS PARA JUNHO-AGOSTO-OUTUBRO DE 2006. INEXISTÊNCIA DO PAGAMENTO INTEGRAL DO PREÇO PELOS PROMISSÁRIOS COMPRADORES, CONFORME CLÁUSULA TERCEIRA. (...)”
(Ap 116022/2016, DRA. FLAVIA CATARINA OLIVEIRA DE AMORIM REIS, SEGUNDA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO, Julgado em 02/08/2017, Publicado no DJE 18/08/2017)
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO REIVINDICATÓRIA – DECISÃO QUE JULGA EMBARGOS DE DECLARAÇÃO E INDEFERE PEDIDO DE IMISSÃO POSSESSÓRIA DOS AUTORES DA AÇÃO REIVINDICATÓRIA EM PARTE DA ÁREA LITIGIOSA – INDEFERIMENTO FUNDADO NA INEXISTÊNCIA DE PROVA INILUDÍVEL DA OCUPAÇÃO ILÍCITA DA ÁREA PELOS RÉUS – INSUBSISTÊNCIA DA NEGATIVA – ÁREA REIVINDICANDA DE QUASE 10 MIL HECTRES, DOS QUAIS POUCO MAIS DE 6 MIL HECTARES JÁ FORAM RESTITUÍDOS À POSSE DOS AUTORES POR DECISÃO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA – PROVA DOCUMENTAL SATISFATÓRIA DA DENTENÇÃO IRREGULAR DE PARTE REMANESCENTE (FAZENDA RIVIERA) ROBUSTECIDA, ENTRE OUTROS, POR AUTO DE CONSTATAÇÃO ELABORADO POR DOIS OFICIAIS DE JUSTIÇA DISTINTOS, AUTO DE AUTUAÇÃO EMITIDO PELO IBAMA, BLOQUEIO ADMINISTRATIVO DAS MATRÍCULAS FEITO PELA CORREGEDORIA GERAL DA JUSTIÇA E CANCELAMENTO DO GEORREFERENCIAMENTO DAS ÁREAS PELO INCRA – CABIMENTO DA IMISSÃO POSSESSÓRIA NA ÁREA DA FAZENDA RIVIERA (1.249,9921 HECTARES) – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Havendo prova satisfatória de que os autores da ação reivindicatória já foram imitidos na posse de parte da área reivindicada por decisão do próprio Tribunal de Justiça, e sendo inafastável a conclusão, robustecida por vários documentos, entre eles certidões elaboradas por dois oficiais de justiça distintos, de que outra parte dos imóveis vem sendo injusta e indevidamente ocupada pelos réus, que não detém justo título de domínio, que, inclusive, foram bloqueados administrativamente pela Corregedoria Geral de Justiça, deve ser deferido pedido de imissão dos reivindicantes na área remanescente dos imóveis.
(AI 137801/2016, DES. JOÃO FERREIRA FILHO, PRIMEIRA CÂMARA DE DIREITO PRIVADO, Julgado em 14/03/2017, Publicado no DJE 22/03/2017)”
Lado outro, realizando a mesma inserção no âmbito do acervo jurisprudencial do Estado do Pará, a seu turno, foram encontrados 130 (cento e trinta resultados), nos quais a participação do INCRA mostrou-se mais presente. Senão vejamos:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE MANUTENÇÃO DE POSSE EM FASE DE EXECUÇÃO. EXTINÇÃO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO DO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. INCONFORMISMO DO EXEQUENTE. ACORDO HOMOLOGADO ENTRE AS PARTES, TRANSITADO EM JULGADO, CONDICIONANDO A PERMANÊNCIA DOS APELADOS NO IMOVEL COM A MANIFESTAÇÃO FAVORÁVEL DO INCRA EM DESAPROPRIAR A ÁREA. PARECER DESFAVORÁVEL DA REFERIDA AUTARQUIA FEDERAL. NÃO CONFIGURADO NOVO ESBULHO. DESNECESSIDADE DE AJUIZAMENTO DE NOVA AÇÃO POSSESSÓRIA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA ANULAR A SENTENÇA COMBATIDA, DETERMINANDO O REGULAR PROSSEGUIMENTO DO CUMPRIMENTO DE SENTENÇA, À UNANIMIDADE.”
(2017.04044549-94, 180.736, Rel. RICARDO FERREIRA NUNES, Órgão Julgador 2ª TURMA DE DIREITO PRIVADO, Julgado em 2017-09-12, Publicado em 2017-09-21)
A análise efetiva da presença da função social da posse também tem se caracterizado. É o que se confere dos seguintes precedentes:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO EM 1º GRAU. SUSCITADA AUSÊNCIA DE FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE. INOCORRÊNCIA. COMPROVAÇÃO DE POSSE AGRÁRIA COM FUNÇÃO SOCIAL. INDICATIVO DE DESENVOLVIMENTO DE ATIVIDADE ECONÔMICA NA ÁREA E OBSERVÂNCIA DA LEGISLAÇÃO AMBIENTAL E TRABALHISTA VIGENTE. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO, À UNANIMIDADE. “
(2017.01522855-49, 173.537, Rel. RICARDO FERREIRA NUNES, Órgão Julgador 2ª TURMA DE DIREITO PRIVADO, Julgado em 2017-04-11, Publicado em 2017-04-19)
Outra importante decisão analisada no âmbito do Estado do Pará denota a importância da criação de varas especializadas, de sorte a possibilitar que o julgador tenha maior afinidade com o tema. Confira-se:
“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. ACÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. IMÓVEL RURAL E LITIGIO COLETIVO. CARACTERIZADOS. RESOLUÇÃO N.º 018/2005-GP. COMPETÊNCIA DA VARA AGRÁRIA DA COMARCA DE REDENÇÃO. 1 - A classificação do imóvel como urbano ou rural, para finalidade de definir a competência das Varas Agrárias, é realizada segundo a destinação econômica, inobstante sua localização, na forma do art. 4.º, inciso I, da Lei n.º 4.504/64 (Estatuto da Terra); 2 - Compete às Varas Especializadas Agrárias processar e julgar as ações que envolvem litígios coletivos da terra em área rural, ex vi art. 1.º da Resolução n.º 018/2005-GP, como ocorrido na espécie dos autos diante da presença de conflito, em tese, com intuito de reforma agrária e indícios de destinação econômica agrícola da área objeto da ocupação possessória; 3 ? Conflito de competência conhecido e provido, para declarar a competência de Vara Especializada Agrária de Redenção para processar e julgar a ação de reintegração de posse.?”
(2016.04132363-56, 165.954, Rel. LUZIA NADJA GUIMARAES NASCIMENTO, Órgão Julgador CÂMARAS CÍVEIS REUNIDAS, Julgado em 2016-10-11, Publicado em 2016-10-13)
No âmbito de Goiás, por sua vez, ao analisarmos as decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça, filtrando-se pelos mesmos termos e da análise das 338 (trezentos e trinta e oito decisões encontradas), facilmente se apercebe uma maior tecnicidade quando do julgamento do tema, enfrentando-se questões precisas (e comumente confundidas pelos julgadores), como a diferenciação dos requisitos da posse e da propriedade. Vejamos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. PEDIDO DE LIMINAR DEFERIDO NA ORIGEM. REQUISITOS EVIDENCIADOS. DECISÃO MANTIDA. 1. A concessão de liminar na ação de reintegração de posse exige a comprovação dos requisitos previstos nos artigos 561 do CPC/15, quais sejam, a posse; o esbulho praticado pelo réu; a data do ato de agressão à posse e; a perda da posse decorrente do esbulho, de forma sumária ou após realização de audiência de justificação. 2. No caso concreto, não há evidências da posse do recorrente, resultando inviável a reforma da decisão agravada. Ademais, os argumentos e provas trazidos aos autos circunscrevem-se ao fato de que o agravante se encontra negociando a compra do referido imóvel rural, assim como de que realizou arrendamento deste para fins de atividades laborativas, ou seja, alegações totalmente relacionados a propriedade e, portanto, dissociados da posse, que é o elemento central das ações possessórias. 3. Além disso, da audiência de justificação realizada nos autos em apenso, bem como da certidão de verificação do imóvel, elaborada por Oficial de Justiça, depreende-se que a posse da fazenda em discussão pertence a agravada e que a turbação vem sendo praticada pelo agravante. Agravo conhecido e desprovido.
(TJGO, Agravo de Instrumento (CPC ) 5230027-12.2016.8.09.0000, Rel. Sebastião Luiz Fleury, 2ª Câmara Cível, julgado em 21/08/2017, DJe de 21/08/2017)
Outra decisão que demonstra a observância do novo diploma processual atenta para a necessidade de que haja a chamada “audiência de justificação”. É o que se confere do seguinte precedente:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE. COM PEDIDO LIMINAR. INDEFERIMENTO DA ANTECIPAÇÃO DA TUTELA RECURSAL. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ARTIGO 561 DO NCPC. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DA AUDIÊNCIA DE JUSTIFICAÇÃO. I- Indeferida a tutela de urgência, posto não estar comprovado os requisitos da probabilidade do direito e perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. II ? Para concessão de liminar em ações possessórias deverá a petição inicial estar devidamente instruída conforme artigo 561 do NCPC. III ? Se a petição inicial não traz provas suficientes para justificar a expedição de mandado liminar de posse, deve o juiz cumprir o que dispõe o artigo 562 do NCPC e determinar a realização de audiência de justificação antes de decidir sobre a concessão de liminar. AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E PROVIDO.”
(TJGO, Agravo de Instrumento ( CPC ) 5307539-71.2016.8.09.0000, Rel. JOSÉ CARLOS DE OLIVEIRA, 2ª Câmara Cível, julgado em 14/06/2017, DJe de 14/06/2017)
Ao que se vê, portanto, no âmbito do Estado de Goiás, há uma efetiva observância do Diploma Processual, o que, todavia, não foi observado nos demais estados objeto de análise.
A partir dessas visualizações – de como se encontra a atuação jurisdicional acerca dos conflitos coletivos agrários – podemos perceber as particularidades que envolvem esse tipo de litígio, particularidades essas que nem sempre encontram respostas no regramento do instituto processual das ações possessórias.
No presente estudo, assim, a partir desses subsídios, pôde ser observado o quadro jurisprudencial e a sua aplicação da reformulação do instituto das possessórias no Código de Processo Civil de 2015, procurando entender como tais alterações correspondem – ou não – à realidade apresentada. É de se pontuar, novamente, que, sendo o Novo Código Processual o primeiro a ser construído em regime democrático – balizado pela Constituição de 1998, em específico – a expectativa residia na ideia de que os princípios previstos nesta estejam com ecos no novo regramento, o que, todavia, não aconteceu.
CONCLUSÃO
É certo que as análises e exposições realizadas, a limitada amostra que constitui o corpus deste trabalho, bem como o recorte realizado para a pesquisa em questão restringem as ponderações a serem alcançadas. Entretanto, tratando-se de uma análise qualitativa, e reconhecendo as limitações dos espaços amostrais das conclusões, há, sim, pontuações cabíveis quanto aos dados coletados. Em sendo assim, entende-se, de tal maneira, que o presente trabalho não esgota a discussão; mas, sim, procura fomentá-la e desdobrá-la, ensejando a continuidade de uma pesquisa mais aprofundada. Realizadas tais ressalvas, passamos às considerações.
Grande expectativa se criou no Código de Processo Civil de 2015, porquanto quarenta e dois anos separaram a sanção deste do diploma processual que o antecedeu. Essas pouco mais de quatro décadas foram suficientes para que a sociedade brasileira fosse passando por alterações, sejam elas de ordem social, política ou econômica. Com efeito, relativamente às configurações do uso da terra e, por conseguinte, com os conflitos decorrentes de questões fundiárias, não poderia ter sido diferente. Um novo regramento, assim, viria para se adaptar à realidade atual, corroborando com as já existentes mudanças de perspectivas trazidas pela Constituição de 1988.
De tal maneira, a possibilidade advinda da construção de um novo código proporcionou grande pressão política por parte dos autores desse processo, quer sejam deputados, juristas ou, especialmente, movimentos sociais. Como visto, nas audiências públicas, os entraves perpassaram diversas ordens, sejam elas econômicas, sociais, ou políticas. Essa disputa, que tem seu caráter ideológico, colocava em jogo a repercussão de um instrumento com forte impacto na realidade agrária e urbana no Brasil.
Pois bem, ainda que diversas ponderações progressistas tenham sido realizadas, as quais entenderam que as peculiaridades e sensibilidades decorridas dos conflitos fundiários necessitariam de um regramento que atendesse tais particularidades, sendo assim, um regramento mais específico no que tange os conflitos coletivos, este não foi o resultado encontrado no texto legal.
Isso porque, consoante delineado, inobstante possamos vislumbrar tímidas alterações no regramento das ações possessórias, o fato é que houve a manutenção de conceitos arcaicos, os quais, a rigor, deveriam ser aptos a responder questões complexas.
Daí que, muito embora a realidade agrária, no Brasil, requisite de avanços de diversas naturezas – o que inclui, evidentemente, alterações no quadro processual da questão, de molde a se refletir na atividade judicativa -, podemos considerar que os inúmeros interesses em jogo dificultaram o progresso da matéria, a qual ainda em vista enquanto espaço de disputa de poder.
Em sendo assim, em que pese possamos entender o Código de Processo Civil enquanto um espaço de avanço, é certo que este foi mínimo, sobretudo quando comparado com a realidade a ser atendida, especialmente no que consiste aos movimentos sociais e aos princípios constitucionais.
Este momento político, de importância inegável, não trouxe, desse modo, as respostas que os conflitos coletivos fundiários necessitam. É preciso – e muito – que a realidade fundiária do Brasil seja o alicerce do Estado Legislativo quando da elaboração do diploma processual para que, por consectário lógico, o Poder Judiciário tenha meios de atendê-la.
Isso tudo deriva de que, em se tratando da atividade judicativa na seara agrária, deve o juiz ter capacidade e preparo técnicos para lidar com as peculiaridades que envolvem a matéria, sobretudo versar, não raramente, acerca de sensíveis conflitos agrários pela terra – do que decorre, não é demais repetir, a necessidade de que o diploma processual forneça tais mecanismos.
Especialmente, levando-se em consideração a “mentalidade agrarista” que permeia o Poder Judiciário – e, sobremaneira, o Poder Legislativo -, podemos concluir que o novo Diploma Processual seria, em um plano ideal, um artifício apto a contrapor-se a essa realidade.
Sucede que, tendo em vista que não haveria como a elaboração do aludido diploma refugir ao âmbito do Legislativo, porquanto sua tramitação se deu, naturalmente, na Câmara dos Deputados, a produção nesta realizada está eivada dos interesses ruralistas que, corriqueiramente, ali se depositam.
Disso decorre que, em uma visão, de certo modo, cética, muito dificilmente poder-se-ia vislumbrar avanços concretamente aptos a alterar – ou, por assim dizer, minimizar a precariedade – (d)a realidade agrária do Brasil, eis que tanto o Poder Legislativo como o Poder Judiciário parecem-nos hermeticamente fechados a lidar com as peculiaridades que envolvem a matéria.
Em sendo assim, podemos concluir que os enunciados coletados conseguiram perpassar diversas questões. Os entendimentos acerca das ações possessórias, todavia, foram diversos e, muitas vezes, opostos, próprios de um regime tido como democrático. Sobrevém que, ainda que o processo de construção do Código de Processo Civil de 2015 tenha possibilitado a inclusão de diversos atores, há uma parcela muita clara destes não efetivamente representada no texto legal e, assim, continuará distante, com suas reinvindicações, dos meios institucionais assegurados na ordem vigente.
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[1] Portal E-democracia. Código de Processo Civil. Câmara dos Deputados. Disponível em: < http://edemocracia.camara.gov.br/web/codigo-de-processo-civil/inicio>; acesso em: jun./2015
[2] Portal E-democracia. Código de Processo Civil. Câmara dos Deputados. . Disponível em: < http://edemocracia.camara.gov.br/web/codigo-de-processo-civil/videos/-/blogs/cpc-audiencia-publica-procedimentos-especiais>; Acesso em: jun./2015
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[4] Modernização do CPC pode contribuir para avanço no acesso à Justiça no Brasil. Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/2013/09/27/modernizacao-do-cpc-pode-contribuir-para-avanco-no-acesso-a-justica-no-brasil/>; Acesso em: jun./2015
[5] Fórum Nacional de Reforma Urbana divulga nota de descontentamento com Código de Processo Civil sancionado. Disponível em: <http://terradedireitos.org.br/2015/03/20/forum-nacional-de-reforma-urbana-divulga-nota-de-descontentamento-com-codigo-de-processo-civil-sancionado/>; Acesso em: jun./2015
Advogada. Especialização em direito tributário pelo IBET, bacharel em direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Débora Pascal de. A necessidade de uma comunicação cooperativa entre o direito processual e os conflitos fundiários: uma análise da nova configuração do regime das possessórias no novo Código de Processo Civil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jan 2023, 04:20. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60742/a-necessidade-de-uma-comunicao-cooperativa-entre-o-direito-processual-e-os-conflitos-fundirios-uma-anlise-da-nova-configurao-do-regime-das-possessrias-no-novo-cdigo-de-processo-civil. Acesso em: 25 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
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