Resumo: O presente trabalho faz a análise da restituição de tributos no regime de substituição tributária considerando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Em síntese, no regime de substituição tributária progressiva, determina o contribuinte no início da cadeia de circulação de mercadorias, assumindo uma condição de responsável por reter e recolher antecipadamente o imposto devido não apenas sobre a sua própria operação de saída, mas, também, o imposto devido sobre as operações de saídas subsequentes, a serem praticadas pelos próximos contribuintes envolvidos na cadeia. Nesse sentido, atendendo ao comando constitucional, o STF entende devida a restituição de tributos no regime de substituição tributária na hipótese de inocorrência, total ou parcial, do fato gerador presumido.
Palavras Chave: Tributo, Restituição, Contribuinte, Imposto.
Abstract: The present work analyzes the refund of taxes in the tax substitution regime considering the jurisprudence of the Federal Supreme Court. In short, in the progressive tax substitution regime, the taxpayer is determined at the beginning of the goods circulation chain, assuming the position of being responsible for withholding and collecting in advance the tax due not only on its own output transaction but also the tax due on subsequent output operations, to be practiced by the next taxpayers involved in the chain. In this sense, in compliance with the constitutional command, the STF understands that the refund of taxes in the tax substitution regime is due in the event of non-occurrence, in whole or in part, of the presumed taxable event.
Keywords: Tribute, Restitution, Taxpayer, Tax.
1.Introdução
O ordenamento jurídico prevê que o tributo apenas poderá ser objeto de cobrança após a ocorrência do fato gerador, momento no qual há a manifestação da capacidade econômica do contribuinte.
Nada obstante a rigidez do nosso sistema tributário, excepcionalmente, a Constituição permite a antecipação do recolhimento do tributo para momento anterior ao da efetiva ocorrência da hipótese de incidência, por meio do instituto da substituição tributária progressiva ou "para frente", insculpido no § 7º do art. 150 da Carta Política, introduzido através da emenda constitucional 3/93.
Apesar de, conforme pacificamente admitido, o instituto da substituição tributária progressiva não ferir, de per si, os princípios constitucionais tributários, o fato é que esse deve necessariamente ser aplicado com temperamentos, justamente porque permite a tributação tomando por base tão somente uma presunção de ocorrência de um fato gerador futuro.
Tanto é assim que o constituinte instituiu a técnica da substituição tributária para frente, visando a tornar a fiscalização mais eficaz; e, em contrapartida, estabeleceu uma garantia de restituição em favor do contribuinte, com o objetivo de afastar eventual excesso de poder de tributar.
Acerca do direito de restituição dos contribuintes, um grande debate foi levado ao Supremo Tribunal Federal. Especificamente, por anos, discutiu-se se a parte final do § 7º do art. 150 da Constituição Federal asseguraria a imediata e preferencial restituição da quantia paga, apenas na hipótese de o fato gerador presumido não se realizar totalmente ou, se também, o texto constitucional asseguraria à restituição da quantia paga a maior, caso o fato gerador presumido se realizasse parcialmente.
2.Da possibilidade de restituição de tributos no regime de substituição tributária
Dispõe o Código Tributário Nacional, notadamente os arts. 113 e 114, que a obrigação tributária principal surge com a ocorrência do fato gerador, sendo este a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência.
A regra, portanto, é que o tributo apenas poderá ser objeto de cobrança após a ocorrência do fato gerador, momento no qual há a manifestação da capacidade econômica do contribuinte.
A Constituição da República estabelece que as “operações relativas à circulação de mercadorias” constituem o elemento material da hipótese de incidência tributária relativa ao ICMS, de sorte que a base de cálculo do tributo deve corresponder a uma grandeza que represente essas operações.
Assim é que, da inteligência do texto constitucional, depreende-se que o constituinte estipulou, ainda que implicitamente, a base de cálculo do imposto como sendo o valor da operação. Diante disso, a princípio, o tributo apenas poderá ser objeto de cobrança após a ocorrência do fato gerador, momento no qual há a manifestação da capacidade econômica do contribuinte, nos termos do art. 145, §1º da CF/88:
“Art. 145 (...)
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.”
Excepcionalmente, todavia, a Constituição permite a antecipação do recolhimento do ICMS para momento anterior ao da efetiva ocorrência da operação de circulação de mercadoria, por meio do instituto da substituição tributária progressiva ou “para frente”, insculpido no §7º do art. 150 da Carta Política, introduzido através da Emenda Constitucional nº 3/93. Observe-se a dicção constitucional:
“Art. 150.
(...)
§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.” (grifos acrescidos)
Esse dispositivo veio a ser regulamentado pela Lei Complementar nº 87/96 que, nos seus arts. 6º, 9º e 10, delegou aos Estados e ao Distrito Federal a competência para disciplinar o regime de substituição tributária, através de lei ordinária (operações internas) ou norma interestadual (operações interestaduais). “In verbis”:
“Art. 6o Lei estadual poderá atribuir a contribuinte do imposto ou a depositário a qualquer título a responsabilidade pelo seu pagamento, hipótese em que assumirá a condição de substituto tributário.
§ 1º A responsabilidade poderá ser atribuída em relação ao imposto incidente sobre uma ou mais operações ou prestações, sejam antecedentes, concomitantes ou subsequentes, inclusive ao valor decorrente da diferença entre alíquotas interna e interestadual nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final localizado em outro Estado, que seja contribuinte do imposto.
§ 2o A atribuição de responsabilidade dar-se-á em relação a mercadorias, bens ou serviços previstos em lei de cada Estado.
(...)
Art. 9º A adoção do regime de substituição tributária em operações interestaduais dependerá de acordo específico celebrado pelos Estados interessados.
§ 1º A responsabilidade a que se refere o art. 6º poderá ser atribuída:
I - ao contribuinte que realizar operação interestadual com petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, em relação às operações subseqüentes;
II - às empresas geradoras ou distribuidoras de energia elétrica, nas operações internas e interestaduais, na condição de contribuinte ou de substituto tributário, pelo pagamento do imposto, desde a produção ou importação até a última operação, sendo seu cálculo efetuado sobre o preço praticado na operação final, assegurado seu recolhimento ao Estado onde deva ocorrer essa operação.
§ 2º Nas operações interestaduais com as mercadorias de que tratam os incisos I e II do parágrafo anterior, que tenham como destinatário consumidor final, o imposto incidente na operação será devido ao Estado onde estiver localizado o adquirente e será pago pelo remetente.
(...)
Art. 10. É assegurado ao contribuinte substituído o direito à restituição do valor do imposto pago por força da substituição tributária, correspondente ao fato gerador presumido que não se realizar.”
Em síntese, no regime de substituição tributária progressiva, determinado contribuinte situado no início da cadeia de circulação de mercadorias assume a condição de responsável por reter e recolher antecipadamente o imposto devido não apenas sobre a sua própria operação de saída mas, também, o ICMS devido sobre as operações de saídas subsequentes, a serem praticadas pelos próximos contribuintes envolvidos na cadeia.
Noutros termos, pela substituição tributária progressiva ou “para frente”, presume-se a ocorrência dos fatos geradores subsequentes, determinando-se ao contribuinte situado no início do ciclo econômico que calcule, retenha e recolha o ICMS-ST devido sobre operações que ainda irão se concretizar.
Naturalmente, se o fato gerador subsequente ainda não ocorreu, é evidente que é desconhecido o valor efetivo da operação presumida – este que se estabelece tão somente quando a operação se concretizar no plano dos fatos. Assim, para efeito de retenção e recolhimento do ICMS devido por substituição tributária para frente, portanto, assume-se como “preço” da operação uma unidade de valor presumida, normalmente fixada por ato do ente tributante.
Apesar de, conforme pacificamente admitido, o instituto da substituição tributária progressiva não ferir, de per si, os princípios constitucionais tributários, é também incontroverso que se deve aplicá-lo com temperamentos, justamente porque permite a tributação tomando por base tão somente uma presunção de ocorrência de um fato gerador futuro.
Tanto é assim que, da leitura do §7º do art. 150 da CF/88 vê-se que “o constituinte fez surgir a nova figura jurídica do fato gerador por presunção, contrabalançada pela ‘imediata e preferencial restituição da quantia’ na hipótese de sua não realização”[1]. Noutras palavras, o constituinte instituiu a técnica da substituição tributária para frente, visando a tornar a fiscalização mais eficaz; e, em contrapartida, estabeleceu uma garantia em favor do contribuinte, com o objetivo de afastar eventual excesso de poder de tributar.
É assim porque o fato gerador presumido, em função do qual se antecipa o recolhimento do ICMS que seria futuramente devido não é definitivo, posto que pode vir a não ocorrer, ensejando posterior acerto de contas através de restituição dos valores recolhidos.
A Constituição, naturalmente, não autoriza a adoção de qualquer base de cálculo para substituição tributária. Ao contrário, a Carta Política autoriza tão somente a adoção de base de cálculo cuja grandeza corresponda ao preço da venda ao consumidor final, ou seja, corresponda ao fato gerador subsequente, eis que a base de cálculo do ICMS deve, necessariamente, externar ou refletir a hipótese que materializa a incidência do tributo.
Sob esse raciocínio, e nos termos da redação do §7º do art. 150 da CF/88, se o fato gerador efetivamente realizado no plano dos fatos não reflete a grandeza que, presuntivamente, serviu de parâmetro para o recolhimento antecipado no momento da presunção, o imposto será, ainda que parcialmente, indevido, devendo ser restituído.
Em outras palavras, na hipótese de a base de cálculo presumida ser contrariada pela base de cálculo efetivamente praticada na operação comercial realizada, é esta que deve se sobrepor.
Registre-se, ainda, que o instituto da substituição tributária constitui instrumento de arrecadação, que dimensiona os elementos da obrigação tributária com base em valores estimados, visando a uniformizar a atividade de fiscalização e recolhimento do ICMS da Administração, não podendo tornar-se um meio para o Estado aumentar sua receita.
Desta feita, não apenas nos casos em que a operação final não se realiza, mas também naqueles em que a operação final se apresente em valores menores do que aqueles presuntivamente utilizados para efeito de antecipação do ICMS, é dever da Administração devolver imediata e preferencialmente o valor indevido recolhido antecipadamente a título de ICMS-ST.
Sobre o tema, cumpre trazer à baila os ensinamentos de HUMBERTO ÁVILA, expendidos em Parecer colacionado nos autos do RE 593.849/MG, no qual analisou a constitucionalidade da restituição do imposto pago antecipadamente em razão da substituição tributária na hipótese de restar comprovado que, na operação final com mercadoria ou serviço, ficou configurada obrigação tributária de valor inferior à presumida. Senão vejamos:
“(...) a CF/88 não permite um abandono total do fato gerador subsequente, como se poderia apressadamente pensar. Ao contrário, na operação com substituição, o legislador institui obrigação tributária ‘cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente’, devendo assegurar a restituição da quantia paga, caso não se realize ‘o fato gerador presumido’. Isso significa que, embora seja legalmente criado um novo fato gerador (saída da mercadoria na fase inicial do ciclo econômico), o ponto de referência para o dimensionamento da obrigação tributária com substituição continua sendo o fato gerador que presumidamente vai ocorrer em fase subsequente do ciclo econômico. Em outras palavras, a CF/88 não autoriza o legislador a adotar qualquer base de cálculo para a obrigação com substituição, mas apenas aquela cuja grandeza corresponda ao fato que deva ocorrer posteriormente. Essa exigência de vinculação conduz a capacidade objetiva ao centro da substituição tributária.
Pode-se afirmar, até mesmo, que a capacidade contributiva objetivada pelo valor de venda efetiva da mercadoria constitui uma razão que não pode ser afastada por completo, recebendo um peso que se mantém mesmo diante das razões que justificam a utilização da substituição. A capacidade contributiva objetiva é, assim, uma razão para tanto (ou ‘contanto que’), no sentido de que não pode ser descartada, conservando seu peso mesmo diante de razões contrárias e, não prima facie (ou ‘descartável’), no sentido de que pode ser afastada completamente em face de razões contrárias.”
Registre-se ainda que, acerca da interpretação desse dispositivo, até outubro de 2016, não era desprezível a jurisprudência no sentido de que a Constituição apenas asseguraria a imediata e preferencial restituição de quantia paga no caso de não se realizar o fato gerador presumido, vendando-se a mesma possibilidade nos casos em que o fato gerador se concretizasse em importe inferior ao valor que serviu de referência para antecipação do ICMS.
Esse entendimento, todavia, foi superado pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 593.849/MG , realizado sob o regime de repercussão geral. No caso concreto, objetivava-se garantir o direito da empresa Parati Petróleo Ltda. de usufruir da garantia constitucional de imediata e preferencial restituição da quantia concernente às diferenças acontecidas nas operações finais de venda de óleos combustíveis, óleo diesel, querosene e outros lubrificantes com preço inferior ao valor que serviu de base à antecipação do imposto.
No julgamento, proferido sob a sistemática de repercussão geral, dando nova interpretação ao §7º do art. 150 da CF, a Suprema Corte fixou tese nos seguintes termos: “é devida a restituição do ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior a presumida”. Observe-se o dispositivo da decisão:
“O Tribunal, apreciando o tema 201 da repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Relator, conheceu do recurso extraordinário a que se deu provimento, para reformar o acórdão recorrido e afirmar o direito da parte recorrente em lançar em sua escrita fiscal os créditos de ICMS pagos a maior, nos termos da legislação tributária do Estado de Minas Gerais e respeitado o lapso prescricional de 5 (cinco) anos previsto na Lei Complementar nº 118/05; na qualidade de prejudicial, declarou a inconstitucionalidade dos artigos 22, § 10, da Lei nº 6.763/1975, e 21 do Decreto 43.080/2002, ambos do Estado de Minas Gerais; fixou interpretação conforme à Constituição nas expressões “não se efetive o fato gerador presumido” no § 11 do art. 22 da Lei estadual e “fato gerador presumido que não se realizou” no artigo 22 do Regulamento do ICMS, para que essas sejam entendidas em consonância à tese objetiva deste tema de repercussão geral; e condenou a parte recorrida ao pagamento das despesas processuais, à luz da legislação processual regente ao tempo da interposição do recurso extraordinário, ficando a parte vencida desonerada do pagamento de honorários advocatícios, conforme o enunciado da Súmula 512 do STF e o art. 25 da Lei 12.016/2009, vencidos os Ministros Teori Zavascki, Dias Toffoli e Gilmar Mendes, que negavam provimento ao recurso extraordinário. Por unanimidade, o Tribunal fixou tese nos seguintes termos: “É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para a frente se a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida”. Em seguida, o Tribunal modulou os efeitos do julgamento a fim de que o precedente que aqui se elabora deve orientar todos os litígios judiciais pendentes submetidos à sistemática da repercussão geral e os casos futuros oriundos de antecipação do pagamento de fato gerador presumido realizada após a fixação do presente entendimento, tendo em conta o necessário realinhamento das administrações fazendárias dos Estados membros e do sistema judicial como um todo decidido por essa Corte.”
Entendeu o ilustre Relator, Ministro Edson Fachin, que o princípio da praticidade, que justifica a existência do sistema de substituição tributária, não pode se sobrepor aos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da vedação ao confisco. Outrossim, destacou que “A tributação não pode transformar uma ficção jurídica em uma verdade absoluta, tal como ocorreria se o fato gerador presumido tivesse caráter definitivo, logo, alheia à realidade extraída da realidade do processo econômico."
Na mesma linha, o eminente Ministro Luís Roberto Barroso destacou que a presunção do fato gerador é provisória, após o que o Fisco tem a oportunidade de apurar a operação real, cabendo tanto a restituição dos valores pagos a mais pelo contribuinte no regime de substituição, caso o valor presumido seja maior que o real, quanto a cobrança da diferença, caso seja menor.
Elucidativo, ainda, o seguinte trecho do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, proferido nos autos do referido recurso, que revela de forma mais clara o entendimento estabelecido pelo Tribunal:
“Nessa linha de raciocínio, constato, desde logo, que a interpretação literal do dispositivo constitucional em tela mostra-se inadequada, data venia, para o correto deslinde da questão sob exame.
É que, como lembra Karl Larenz, na esteira de outros doutrinadores, a interpretação literal dos textos legais constitui apenas a primeira etapa do processo hermenêutico. Vicente Ráo, por sua vez, discorrendo acerca das técnicas de interpretação, aponta para os riscos decorrentes do apego ao sentido literal dos textos, com o abandono dos demais processos hermenêuticos, recordando uma velha regra do direito luso-brasileiro segundo a qual ‘deve-se evitar a supersticiosa observância da lei que, olhando só a letra dela, destrói a sua intenção’.
Com efeito, a impossibilidade de restituição do valor cobrado a maior, por força da incidência do regime de substituição tributária para frente, não se sustenta quando submetida a uma exegese mais abrangente, que leva em conta os princípios gerais do direito, dentre os quais se encontra a regra que estabelece ser lícito ou exigível o menos, quando o texto autoriza o mais.
Nesse ponto, vale recordar a lição de Carlos Maximiliano, para o qual, ‘descoberta a razão íntima e decisiva de um dispositivo, transportam-lhe o efeito e a sanção aos casos não previstos, nos quais se encontrem elementos básicos idênticos aos do texto’.
Assim, ao autorizar o mais, isto é, a devolução imediata e preferencial da quantia paga, caso não se verifique o fato gerador presumido, o texto constitucional, à toda a evidência, autorizou o menos, ou seja, a restituição do valor indevidamente pago a maior.
Não se argumente, portanto, que a restituição imediata e preferencial do tributo somente é possível na hipótese de inocorrência integral do fato gerador, visto que, se o texto constitucional garantiu ao contribuinte um plus, não se admite, como querem alguns, uma interpretação restritiva para afastar o direito de reembolso, caso se verifique um minus, quer dizer, se ocorrer a realização apenas parcial daquele pressuposto.
A interpretação que desautoriza a devolução nesses termos, ademais, também nega vigência ao princípio que veda o enriquecimento sem causa e àquele que garante a repetição do indébito, os quais constituem balizas fundamentais do Direito.
De fato, conforme adverte Marco Aurélio Greco, a autorização constitucional para antecipar a cobrança do devido não implica ‘uma autorização para cobrar mais do que resultaria da aplicação direta da alíquota sobre a base de cálculo existente ao ensejo da ocorrência do fato legalmente previsto (fato gerador). Antecipa-se o imposto devido; não se antecipa para arrecadar mais do que o devido’. A proibição de restituição do imposto pago a maior igualmente não se coaduna com os princípios constitucionais de natureza tributária aplicáveis à espécie. Em outras palavras, se o ICMS recolhido pelo contribuinte substituto apenas se torna efetivamente devido com a ocorrência do fato gerador, a inocorrência, total ou parcial deste, impõe que se faça a devida adequação da regra ao fato, sob pena de afronta aos princípios da moralidade, da legalidade e do não-confisco. O fato gerador, descrito pelo Código Tributário Nacional como a ‘situação definida em lei como necessária e suficiente’ à ocorrência da obrigação tributária (art. 114), representa, nas palavras de Geraldo Ataliba, ‘o fato concreto, ocorrido hic et nunc, no mundo fenomênico, como acontecimento fático, sensível, palpável, concreto, material e apreensível’. Configura, pois, um fato jurígeno, quer dizer, um dado empírico ao qual a lei atribui a consequência de criar uma determinada obrigação tributária, com contornos bem definidos, que não podem ser expandidos pela simples razão de o contribuinte-substituto recolher o imposto antecipadamente. Penso que a interpretação do texto constitucional que autoriza a restituição de parte do tributo na hipótese de pagamento a maior mostra-se coerente com as garantias que protegem o contribuinte e os limites que balizam o poder de tributar, não configurando benefício fiscal.
Isso posto, dou provimento ao recurso extraordinário (art. 21, § 2°, do RISTF), para reconhecer, com base no § 7° do art. 150 da Constituição Federal, a possibilidade de exigir-se a restituição de quantia cobrada a maior, nas hipóteses de substituição tributária para frente, em que a operação final resultou em valores inferiores àqueles utilizados para efeito de incidência do ICMS.” (grifos acrescidos)
Nessa senda, confira-se o posicionamento do e. Min. Cezar Peluso, no julgamento da ADI nº 2.777/SP, ao qual se filiaram os Ministros Lewandowski, Joaquim Barbosa, Marco Aurélio e Celso de Mello:
"Esta aí boa resposta à objeção de que o art. 150, §7º, da CF, só se aplica ao fato gerador presumido que não se tenha realizado como fato histórico visto na sua simplicidade material, isto é, como algo que, perceptível aos sentidos, muda a configuração do mundo físico. É que a lei não cuida apenas do fato gerador como simples evento histórico que componha a cadeia de comercialização, mas se refere ainda ao mesmo fato como unidade jurídico-normativa, da qual é ineliminável a dimensão do valor monetário que serve à definição da base de cálculo do tributo. Daí a necessidade de se considerar também a hipótese em que, embora acontecido o fato na sua consistência material, não se realize a dimensão monetária presumida pela lei como base de cálculo do tributo, cuja obrigação de pagamento antecipou".
Registre-se, ainda, o pronunciamento do Ministro Marco Aurélio no julgamento da ADI nº 1.851:
“recuso-me a ceder à interpretação literal, gramatical, verbal, a qual realmente seduz, no que se tem a cláusula segundo a qual 'fica assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido'. Será que esta previsão, voltada à proteção do contribuinte, à preservação do figurino do tributo, com balizas rígidas, com quantia que não diz respeito ao tributo? A resposta, para mim, é desenganadamente negativa".
Vale destacar, ademais, que o entendimento adotado pelo STF em sede de repercussão geral no RE 593.849/MG já vinha sendo adotado em precedentes do Superior Tribunal de Justiça, como se confere de trechos do voto do Ministro Ari Pargendler, nos autos do RMS 9.380/MS, no qual analisou o §7º, do art. 150 da Constituição:
“A partir de então já é anacrônica a afirmação de que ‘entre o Estado e o substituído não existe qualquer relação jurídica’ (Backer, op. Cit. P. 507). Com certeza, o ‘substituído’ não passou a integrar a relação jurídico-tributária, que se esgota na prestação do tributo. Mas tem uma relação jurídica com o Estado porque a lei lhe conferiu ‘legitimidade’ para requerer a devolução do imposto, ‘caso não se realize o fato gerador presumido’.
Em outras palavras, o regime de substituição tributária mudou, já que não admitindo base de cálculo por estimativa, com presunção juris et de jure, na forma como a Lei Complementar nº 44, de 1983 autorizava; e o ‘substituído’ é o beneficiário da eventual diferença entre a base de cálculo do imposto estimada e o preço efetivo de venda, se menor.
(...)
Do ponto de vista legal, na cláusula ‘caso não se realize o fato gerador presumido’, incluem-se tanto a hipótese em que o fato material não se realiza quanto a hipótese de eventual saída de mercadorias por preço inferior àquele que serviu de base de cálculo para o imposto. Só a reunião de seus vários aspectos (material, pessoal, espacial, temporal) configura o fato gerador (Geraldo Ataliba, Hipótese de Incidência Tributária, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1973, p.68). Se o fato gerador previsto pelo regime de substituição tributária pressupunha ‘x’ como base de cálculo, ele efetivamente não se realiza numa operação consumada pelo preço ‘x’ – ‘y’.” (grifos acrescidos)
De resto, a doutrina igualmente acolhe o posicionamento. Com efeito, HUGO DE BRITO MACHADO em artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 26, às páginas 36, esclarece que:
“Não podem, porém, as leis estaduais, excluir o direito do contribuinte substituído às diferenças, nas hipóteses de operação final com preço inferior ao valor que serviu de base a antecipação. Disposição nesse sentido seria inconstitucional, pela mesma razão que não se admite a pauta fiscal, vale dizer, por desrespeito à norma Constitucional Federal que estabelece ser o imposto sobre operações relativas à circulação e mercadorias. Se o imposto incide sobre operações relativas à circulação de mercadoria, sua base de cálculo há de ser o valor de tais operações. No caso de venda , o processo correspondente”. (grifos acrescidos)
No mesmo sentido, HUMBERTO ÁVILA, no âmbito do Parecer mencionado anteriormente, colacionado nos autos do RE 593.849/MG, analisando detalhadamente a matéria, concluiu:
“(...) (3) Sendo a tributação sem substituição meio de realização da justiça individual e a tributação com substituição tributária instrumento de concretização da justiça geral, é perfeitamente permitida (e necessariamente obrigatória para determinados casos em qualquer modelo de substituição) a utilização de um sistema que harmonize a justiça geral com a individual mediante a instituição de cláusulas de devolução;
(4) A padronização deve servir de instrumento para a realização da igualdade geral, o que só se verifica quando provoca efeito desigual de diminuta extensão (a desigualdade não é contínua nem considerável entre os contribuintes), alcance (a desigualdade não atinge um número expressivo de contribuintes) e qualidade (a desigualdade não provoca efeito de natureza direta, mas secundária relativamente aos direitos fundamentais de igualdade e de liberdade);
(5) A substituição deve usar uma base de cálculo que reflita o valor de venda das mercadorias para um grupo proporcionalmente grande de vendedores, sendo permitidas unicamente discrepâncias acidentais entre o valor presumido e o real; deve usar a mesma base de cálculo para situações substancialmente iguais e deve ser neutra com relação às atividades exercidas e levar em consideração as diferenças estruturais entre os grupos profissionais atingidos, sem interferir em elementos essenciais ao livre exercício de atividade econômica e à livre concorrência;
(6) A devolução das diferenças entre o valor presumido e o efetivo de venda das mercadorias forçosamente não pode conduzir à impraticabilidade da substituição tributária, pois se a diferença entre o valor presumido e o efetivo só pode surgir para um número marginal de situações e de contribuintes, o dever de devolução não tem como anular as vantagens da substituição, haja vista que o acréscimo em fiscalização será ínfimo em relação às vantagens;
(7) Qualquer modelo de substituição tributária deve, necessariamente, envolver a devolução das diferenças que sejam significativas e, por isso mesmo, causem gravames que comprometam a eficácia mínima de princípios fundamentais;
(8) A invalidade de uma lei que institui um modelo de substituição tributária não está na determinação de devolução condicionada de diferenças entre o valor presumido e o efetivo, mas na sua total ausência;
(9) A previsão de cláusulas de devolução da Lei Estadual nº 6.374/88, modificada pela Lei Estadual nº 9.176/95, não coloca em risco a aplicabilidade geral da substituição tributária porque as cláusulas de equidade só inviabilizam a padronização se anularem as suas vantagens, fazendo com que o custo e a insegurança da fiscalização sejam superiores àqueles decorrentes do modelo regular de tributação sem substituição; isto não ocorre no caso em exame, já que o custo da fiscalização das operações que envolvem substituição com cláusula de devolução não é maior do que o da fiscalização das operações regulares na medida em que o número de casos em que é necessária a fiscalização é, além de reduzido e pouco intenso, necessariamente menor do que aqueles que deveriam ser fiscalizados num modelo normal de tributação; ademais, a insegurança decorrente das operações que envolvem substituição com cláusula de devolução não é maior do que aquela advinda da fiscalização das operações regulares porque há regras claras e prévias que determinam condições sem cujo preenchimento surge o dever de devolver;
(10) O exercício da autonomia legislativa estadual pode oscilar no âmbito existente entre a regra e a exceção, privilegiando totalmente a justiça particular ou perseguindo parcialmente a justiça geral, não podendo, porém adotar um modelo puro de justiça geral sem cláusulas de abertura para realização do critério básico de tributação de acordo com a capacidade contributiva objetiva;
(11) O princípio da eficiência administrativa não justifica o abandono total da capacidade contributiva objetiva exteriorizada pelo valor efetivo de venda das mercadorias, já que lhe é vedado criar poder inexistente e ampliar poder existente; (...)”
Por fim, é precisa a lição de MARCO AURÉLIO GRECO:
“Questão que pode ser levantada é saber se a previsão constitucional alcança as hipóteses em que o fato gerador não se realizar (dicção literal do dispositivo) ou se também se aplica às hipóteses em que ele ocorrer, mas não tiver a dimensão prevista ao ensejo do recolhimento por antecipação (não ocorrer tal como previsto). O sentido do dispositivo constitucional é claramente o de proteger o contra exigências maiores do que as que resultam da aplicação do modelo clássico do fato gerador da obrigação tributária. Não há uma autorização constitucional para cobrar mais do que resultaria da aplicação direta de alíquota sobre a base de cálculo existente ao ensejo da ocorrência do fato legalmente previsto (fato gerador). Antecipa-se o imposto devido, não se antecipa para arrecadar mais do que o devido. Portanto, a devolução é de rigor sempre que o fato não realizar ou, realizando-se, não se der na dimensão originalmente prevista. O excesso tem a natureza de uma cobrança indevida e a Constituição não está legitimando o indébito.” (Substituição Tributária – ICMS, IPI, PIS COFINS. IOB – informações objetivas, pág. 22). (grifos acrescidos)
3.Conclusão
Diante de todo o exposto, parece que a melhor interpretação da norma do § 7º do art. 150 da CF/88 é no sentido de que, se o fato gerador efetivamente realizado no plano dos fatos não reflete a grandeza que, presuntivamente, serviu de parâmetro para o recolhimento antecipado no momento da presunção, o tributo será, ainda que parcialmente, indevido, devendo ser restituído. É dizer, na hipótese de a base de cálculo presumida ser contrariada pela base de cálculo efetivamente praticada na operação comercial realizada, é esta que deve se sobrepor.
Entender em sentido diverso em nome da praticidade, parece-nos, pode dar margem para que, de encontro aos comandos constitucionais, o instituto torne-se um meio de enriquecimento sem causa para o Estado. Afinal, estar-se-ia tributando grandeza que não corresponde ao real preço da venda ao consumidor final, ou seja, que não corresponde ao fato gerador subsequente.
Assim é que o posicionamento que perfilhado pelo Supremo Tribunal Federal parece acertado e representa importante vitória aos contribuintes, que, por décadas, aguardaram uma definição segura a respeito da matéria. Vez que ambas as decisões foram proferidas sob o apanágio da repercussão geral, o entendimento deverá ser seguido pelos demais tribunais pátrios.
Referências
Reclamação 5.639/MT. Rel. Min. Dias Toffoli. Primeira Turma. DJ: 30.09.2014. DJe: 14.11.2014.
GRECO, Marco Aurélio. Comentário ao artigo 150, parágrafo 7º. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 1672.
HUMBERTO ÁVILA - Parecer colacionado nos autos do RE 593.849/MG.
HUGO DE BRITO MACHADO - artigo publicado na Revista Dialética de Direito Tributário nº 26, às páginas 36.
[1] Reclamação 5.639/MT. Rel. Min. Dias Toffoli. Primeira Turma. DJ: 30.09.2014. DJe: 14.11.2014.
Advogada. Especialização em direito tributário pelo IBET, bacharel em direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Débora Pascal de. Restituição de tributos no regime de substituição tributária à luz da jurisprudência do STF Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jan 2023, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60747/restituio-de-tributos-no-regime-de-substituio-tributria-luz-da-jurisprudncia-do-stf. Acesso em: 25 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Por: Roberto Rodrigues de Morais
Precisa estar logado para fazer comentários.