RESUMO: O objetivo deste artigo é estudar o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a exigibilidade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Nesta finalidade, utilizou-se o método dedutivo, com as técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, partindo de uma análise exploratória e qualitativa. Como resultado, apresentou-se um cenário de interdependência dos DESCA, que demandam análise conjunta para possibilitar a plena realização e cumprimento destes direitos. A pesquisa demonstrou o contexto em que a América Latina está inserida, com forte desigualdade socioeconômica, a histórica discriminação dos grupos vulneráveis e as dificuldades de consolidação da experiência democrática. Desse modo, a exequibilidade dos DESCA passa pela cooperação internacional, difusão de boas práticas e utilização de evidências científicas.
Palavras-chave: DESCA. Sistema Interamericano de Direitos Humanos. América Latina.
PROTECTION OF DESCA IN THE INTER-AMERICAN SYSTEM HUMAN RIGHTS
ABSTRACT: The purpose of this article is to study the Inter-American System of Human Rights and the enforceability of economic, social, cultural and environmental rights. For this purpose, the deductive method was used, with the techniques of documental and bibliographic research, starting from an exploratory and qualitative analysis. As a result, a scenario of DESCA interdependence was presented, which require joint analysis to enable the full realization and fulfillment of these rights. The research showed the context in which Latin America is inserted, with strong socioeconomic inequality, the historical discrimination of vulnerable groups and the difficulties of consolidating the democratic experience. Thus, the feasibility of DESCA depends on international cooperation, dissemination of good practices and use of scientific evidence.
Keywords: DESCA. Inter-American Human Rights System. Latin America.
SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A PROTEÇÃO DOS DESCA. 2. A EXIGIBILIDADE DOS DESCA PERANTE A SENTENÇA JUDICIAL. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
INTRODUÇÃO.
O presente trabalho analisa o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a proteção dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais no âmbito da América Latina. Além disso, o SIDH é importante mecanismo para a concretização dos direitos humanos nos regimes democráticos e na efetivação do Estado de Direito.
O reconhecimento e a proteção dos direitos humanos a nível internacional foi fruto de uma construção contínua, com avanços e retrocessos, principalmente no século XX, que culminou com o reconhecimento da tutela do destes direitos para além da competência exclusiva dos Estados nacionais, desembocando em toda comunidade internacional, como um dos responsáveis pela efetivação dos direitos humanos. Apesar das barbaridades e guerras mundiais, o século XX nos trouxe um direito internacional mais humanitário, com protagonismo dos sistemas internacionais de justiça (GORCZEVSKI, 2021, p. 150), sendo o sistema interamericano de direitos humanos um desses exemplos.
Cada vez mais, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos reconhece a possibilidade e importância da judicialidade para possibilitar a execução dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (ANTONIAZZI; PIOVESAN; IGNÁCIO, 2020, p. 68). Está ideia, em processo de consolidação, acaba por reforçar a relação de interdependência e indivisibilidade existente entre os direitos civis e políticos, que devem ser buscados e concretizados em conjunto.
De início, os DESCA foram tratados como conexos ou dependentes dos direitos civis e políticos. Contudo, a partir do caso julgado de Lagos del Campo vs. Peru[1], restou reformulada a tese inicial para adentrar e reconhecer a possibilidade de submissão imediata, direta e independente dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, rompendo as relações hierárquicas historicamente estabelecida nos direitos humanos.
Nessa medida, os DESCA assumem posição de destaque no Sistema Interamericano de Direitos humanos na medida em que passam a serem analisados de forma independente dos direitos civis e políticos, dando possibilidade não apenas de análise pelo órgão internacional, mas também pela coercibilidade de sua decisão, que constitui título para execução e realização do direito previsto.
De tal modo, este artigo objetiva analisar a evolução da atuação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos na construção da exigibilidade dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Como fundamento de metodologia, utilizou-se o método dedutivo, com as técnicas de pesquisa documental e bibliográfica, por intermédio de uma análise exploratória e qualitativa.
Este trabalho foi desenvolvido em duas seções. De início, analisou-se o Sistema Interamericano de Direitos Humanos e a evolução histórica na proteção dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais para, logo após, trazer os contornos da execução da sentença judicial que estabelece obrigações relacionadas aos DESCA.
1. O SISTEMA INTERAMERICANO DIREITOS HUMANOS E A PROTEÇÃO DOS DESCA.
Para compreender as dificuldades de proteção dos DESCA no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) e as estratégias empregadas para superá-las, convém perpassar, inicialmente, por algumas análises sobre a evolução da exigibilidade dos DESCA. Nesse sentido, é interessante notar que, aos direitos econômicos, sociais e culturais, já tradicionalmente consolidados, foram incluídos os direitos ambientais dentro do SIDH, quando, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), se constituiu uma relatoria especial sobre o DESCA para que fosse possível supervisionar o cumprimento das obrigações destes direitos.
A análise da possibilidade de se exigir os DESCA, de se buscar a sua efetividade, pode ser dividida em dois grandes períodos. Num primeiro momento, observa-se um início com o constitucionalismo social, principalmente na década de 30, até a promulgação das constituições em 1989. Posteriormente, tem-se o constitucionalismo latino-americano do período pós- ditaduras militares que afetaram a maioria dos países da região, saindo de um regime autoritário e fechado para pregar maior liberdade e garantia de direitos.
O primeiro texto jurídico que reconhece os DESCA surgiu com o fim da Primeira Guerra Mundial, através da Declaração Russa de 04 de janeiro de 1918, na esteira da Revolução Bolchevique, com um reconhecimento de direitos coletivos, em contraposição à concepção individualista da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e da Declaração de Direitos da Virginia de 1776. Além disso, esse texto jurídico surge como uma reinvindicação de direitos esquecidos durante a Revolução Industrial, como o reconhecimento econômico e social da classe trabalhadora.
Nesse apanhado histórico, convém destacar que, na América e na Europa, os DESCA tiveram reconhecimento primeiramente na Constituição do México de 1917 e, logo em seguida, na Constituição da Alemanha de 1919, ambos os textos constitucionais reconheciam os direitos humanos sem distinção entre as vertentes social e individual. Contudo, Castro lembra que, nesse primeiro período, predominava a ideia de que os direitos civis e políticos sempre puderam ser cobrados na via jurisdicional, enquanto os direitos econômicos, sociais e ambientais demandariam cumprimento progressivo, em função da disponibilidade dos recursos econômicos do Estado, não se suscitando a sua proteção perante os Tribunais.
Uma mudança começa a ser percebida quando, no âmbito da ONU, entra em vigência o Protocolo Facultativo do PIDESC, em maio de 2013, gerando mecanismos para a reclamação perante o Comitê do DESC, com um sistema de petições individuais, possibilidade de medidas de urgência e investigações de violações. Segundo a autora, a partir deste momento, os atos concretos são submetidos à análise do Comitê e os DESC passam a ser exigíveis quando se vislumbra a violação individual, demonstrando a evolução da exigibilidade desses direitos.
Em relação à jurisprudência da Corte Interamericana, a autora organiza sua análise em duas etapas. Primeiramente, inicia-se com a discussão da ideia de indivisibilidade dos DESCA e a possibilidade de sua judicialização indireta, possibilitando o reconhecimento da obrigação do Estado agir positivamente na concretização de direitos, inclusive aquele que garante a vida digna. Numa segunda etapa, direcionou-se a análise para a exigibilidade direta dos DESCA, reconhecendo sua dimensão individual e coletiva, podendo, assim, ser diretamente exigido ao órgão jurisdicional contra o Estado.
Pâmela Castro utiliza-se do caso emblemático de Acevedo Buendía e outros para tratar da nova interpretação dada ao art. 26 da CADH, que demonstra a evolução da jurisprudência da Corte IDH no sentido de passar da invisibilidade dos DESCA para a tese de sua justiciabilidade e/ou exigibilidade indireta até se tornar efetivos os DESCA em um sentido amplo e direto. Neste julgado emblemático, a Corte Interamericana mostrou-se competente para julgar as violações de todos os direitos previstos na Convenção Americana, sem distinções, possibilitando a máxima proteção aos DESCA, com a possibilidade de submissão aos Tribunais. Além disso, a noção de ‘desenvolvimento progressivo’ não foi considerada impeditivo para a conquista de exigibilidade aos DESCA, na verdade, depreendeu-se da expressão o significado de vedação do retrocesso pelo Estado, que deve passar a fundamentar seus atos, havendo, inclusive, a possibilidade de controle jurisdicional sobre a observância do Estado em relação a esse dever.
A Corte Interamericana passa a reconhecer a independência e a indivisibilidade entre os direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais, caracterizados como direitos humanos em sua integralidade, sem hierarquia e exigíveis perante as autoridades competentes. Posteriormente, num julgamento que envolveu a prestação de serviços privados de saúde no Equador, onde uma menina recebeu transfusão de sangue e acabou contaminada com o vírus HIV, a Corte IDH entendeu que o Estado é responsável pela violação aos direitos à vida e à integridade pessoal por violar seu dever de fiscalizar a prestação dos serviços de saúde, o direito à educação e à razoável duração do processo. Houve, assim, a abordagem do direito à saúde de maneira direta e autônoma.
Outro caso interessante, Chinchilla Sandoval contra Guatemala, julgado em 2016, tratava de uma pessoa com doença crônica, diabetes e incapacidade motora, que morreu na prisão por ausência de atendimento médico oportuno. Assim, a Corte Interamericana reconheceu a violação aos direitos a vida e a integridade física, atestando a obrigação do Estado em prover o atendimento médico das pessoas detidas, provendo os serviços adequados de acordo com a saúde e capacidade da vítima. Ainda neste julgado, ficou estabelecido a necessidade de garantir a acessibilidade às pessoas com necessidades especiais.
Prossegue Castro (2018, p. 182) demonstrando que a progressividade do direito está vinculada a uma interpretação ampla, que possibilita o estabelecimento de obrigações para os Estados na implementação de medidas positivas e repressão de retrocessos aos direitos consagrados na Convenção Americana, assim como os DESCA positivados na Carta da OEA de 1948, revisada através do protocolo de Buenos Aires, em 1967.
A Corte Interamericana entende que o direito ao trabalho se encontra protegido também no ordenamento jurídico internacional, criando para o Estado os deveres de proteção e estabilidade laboral, que acarreta o dever de atuação do Estado no sentido de: i) regular e fiscalizar o direito dos trabalhadores; ii) proteger o trabalhador contra despedidas imotivadas; iii) em caso de despedida injustificada, produzir mecanismos de retorno ao mercado de trabalho e recebimento das indenizações; iv) o Estado terá de dispor de mecanismos eficientes para combater as despedidas imotivadas, garantindo o acesso a justiça e a tutela jurisdicional efetiva de tais direitos.
Em todos direitos sociais existem obrigações de progressividade e não retrocesso, devendo a alegação de violação a algum dos DESCA ser analisada no caso concreto submetido a julgamento. A CIDH atesta a importância dos DESCA, possibilitando sua judicialização direta e indiretamente sob o fundamento de que são direitos indivisíveis e interdependentes, sem que haja hierarquia entre eles.
Apesar dos avanços no reconhecimento pela CIDH de violação expressa aos DESCA, Castro (2018, p. 186) adverte que ainda há um caminho longo a se percorrer na efetividade da submissão à jurisdição dos casos de abusos referentes aos DESCA, pois a América Latina mostra-se como uma região ainda necessitada da construção de ensinamentos pela Corte Interamericana através de sua jurisprudência, para aplicação a todos os países, com as adaptações administrativas, legislativas e judiciais, de acordo com o controle de convencionalidade revelado.
Como visto, o entendimento da Corte IDH é pela exigibilidade imediata dos DESCA. Essa ampliação da jurisprudência não é um passo abstrato, mas, sim, uma ampliação da proteção em benefício de pessoas que têm seus direitos constantemente violados. Nesta esteira de justiça social é que deve avançar a jurisprudência de proteção aos DESCA, o que perpassa pelo reconhecimento de que o art. 26 da CADH obriga o hermeneuta a fazer uma interpretação sistemática de todo o sistema a fim de que se alcance uma submissão jurisdicional e exigibilidade direta do supracitado artigo para possibilitar a consagração dos direitos dos DESCA.
Mas essa justiciabilidade e/ou exigibilidade direta dos DESCA enfrenta algumas dificuldades reais. Uma delas é definir o conteúdo das obrigações específicas do artigo 26 da CADH. Isso perpassa pelo desafio do intérprete em identificar os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais que se incluem na perspectiva do artigo 26 da CADH, visto que este dispositivo não individualiza os direitos que derivam de si. Assim, uma estratégia que pode auxiliar o intérprete é explorar a Carta da OEA para identificar suas normas econômicas, sociais, educativas, científicas e culturais. Depois, deve-se traduzir os enunciados, princípios e objetivos identificados em direitos quando estes não forem reconhecidos explicitamente.
O artigo 26 da CADH é plenamente exigível e os direitos que dele derivam são autônomos. Mas, para tanto, é necessário um adequado exercício hermenêutico para identificar quais são os direitos consagrados pelo referido artigo e qual o seu conteúdo, bem como para dotar de conteúdo as obrigações específicas que derivam do referido artigo. A Corte IDH vem utilizando distintos instrumentos internacionais que formam o corpus iuris dos direitos humanos a fim de definir o conteúdo do artigo 26 e especificar as obrigações estatais.
Prosseguindo na explanação, CASTRO (2018, p. 191) afirma que a Corte IDH tem entendido que os tratados direitos humanos são instrumentos em constante transformação, que deve estar em sintonia com a mudança do tempo e as condições de vida atual, como consequência das regras gerais de interpretação trazidas pelo art. 29 da Convenção Americana e na Convenção de Viena sobre o direito dos Tratados. Nesta interpretação evolutiva, a Corte IDH dá relevância ao direito comparado, à utilização de normas internas de direitos fundamentais e às jurisprudências de Tribunais Nacionais.
O conteúdo das obrigações específicas do art. 26 da CADH, para corroborar a tese da exigibilidade direta dos DESCA, tem natureza de lei especial, devendo ser consagrado no julgamento do caso concreto, com a derrogação da lei geral. Como exemplo de aplicação na Corte IDH, Castro (2018, p. 194-195) cita o caso Suárez Peralta contra Equador, onde foi evidenciado que o Estado deveria prover, pelo menos, o nível mínimo essencial na regulação dos sistemas de saúde no âmbito interno, como proteção a integridade pessoal.
Como mencionado anteriormente, os DESCA são plenamente exigíveis e que os direitos são autônomos, indo além da mera promoção de políticas públicas, por se tratarem de verdadeiros direitos autônomos, amparados por obrigações gerais, podendo contar com um conteúdo específico através do adequado exercício hermenêutico.
Outra dificuldade está relacionada à progressividade dos DESCA como parâmetro objetivo de sua justiciabilidade. A progressividade conferida aos DESCA é uma das obrigações mais sólidas e claras do conteúdo do artigo 26 da CADH[2]. A progressividade liga-se ao direito à vida adequada, direito este incluído nas normas econômicas, sociais, educativas, científicas e culturais consagradas na Carta da OEA. Nessa perspectiva, tanto a CIDH quanto a Corte IDH têm reconhecido essa obrigação de forma expressa em suas manifestações. Em análise de violação dos DESCA, a CIDH já enfatizou, inclusive, a obrigação de não retrocesso dos avanços já conquistados em relação aos direitos derivados do artigo 26 da CADH.
Convém notar que a avaliação de progressividade e não regressividade é devida mesmo quando se está diante de obrigações de respeito e garantia, tratando-se de um parâmetro adicional de análise de cumprimento dos deveres estatais em termos de DESCA, constituindo-se o artigo 26 em uma norma especial. Porém, a obrigação de avaliar a progressividade dos DESCA não é a única, singularizá-la como a única obrigação que deve ser analisada por parte dos juízes cancela o conteúdo do mínimo essencial para os DESCA.
Assim, CASTRO (2018, p. 199-200) sinaliza que o Estado deve garantir os DESCA através de medidas que possibilitem sua plena efetividade, que vai além da garantia da progressividade e do não retrocesso destes direitos, bem como da disponibilidade de recursos ou sobre a legislação geral das políticas públicas. No julgamento do Caso Lagos del Campo, o juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, citado pela autora, afirma que os direitos sociais não dependem só do passar do tempo para serem concretizados, necessitando de atuação positiva e direta do Estado, não sendo o objetivo final judicializar as políticas públicas estatais, mas sim proteger a efetiva aplicação dos direitos humanos no caso particular.
Desse modo, a dificuldade inicial da Corte IDH foi confirmar sua competência jurisdicional de garantir a proteção dos DESCA. Consolidada a jurisprudência neste sentido, o próximo passo foi garantir mecanismos pelos quais a decisão pudesse ser tornada eficaz, com a exequibilidade no âmbito interno dos Estados. Portanto, foi conquistado pela Corte IDH a atuação coercitiva, junto aos Estados soberanos, para garantir a efetividade dos DESCA e sua implementação no âmbito interno.
Como conclusão é possível entender os DESCA como universais, indivisíveis, interdependentes e relacionados entre si. A Corte IDH tem adotado parâmetros específicos para promoção de direitos por via indireta, por exemplo, reconhecendo a acessibilidade aos serviços de saúde e sanitários por meio de sua vinculação ao direito à integridade pessoal. E, em relação ao artigo 26 da CADH, o reconhecimento genérico dos DESCA tem obrigado os Estados a adotarem medidas de desenvolvimento progressivo na matéria desses direitos.
2. A EXIGIBILIDADE DOS DESCA PERANTE A SENTENÇA JUDICIAL.
O professor César Garavito (2011), ao realizar uma revisão de literatura sobre a justiciabilidade dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESCA), percebeu que a ênfase das pesquisas acadêmicas na fase de produção dos julgamentos criou um ponto cego analítico e prático: o estágio de implementação das decisões. Assim, o autor se debruça na averiguação sobre o que os tribunais podem fazer para melhorar o impacto das suas decisões sobre DESCA, garantindo a execução de suas sentenças.
Para tanto, foi realizada uma pesquisa empírica por meio de entrevistas e de um estudo comparativo do impacto das decisões da Corte Constitucional Colombiana (CCC). Foram selecionados três casos estruturais[3] para análise, relacionados da seguinte maneira: o relativo alto impacto do Julgamento T-025 foi contrastado com os efeitos mais modestos de outras duas decisões estruturais, o T-153 e o T-760.
Acerca de seus conteúdos, em síntese, no T-025, a CCC declarou que a emergência humanitária causada pelo deslocamento forçado constituía um “estado de coisas inconstitucional”. No T-153, a CCC declarou que a terrível situação dos detidos em prisões superlotadas representava “um estado de coisas inconstitucional”. E no T-760, a CCC emitiu uma decisão mais recente sobre o direito à saúde, envolvendo um conjunto de medidas cautelares estruturais e lançou um processo de monitoramento ambicioso.
Para analisar os efeitos dos julgamentos, o autor, primeiramente, criou um “framework” de tipos e exemplos de efeitos das decisões judiciais a partir da exploração dos estudos já realizados sobre o impacto judicial. Dessa análise inicial, o autor classifica os estudos existentes em dois grupos: aqueles estudos que focam nos efeitos diretos e palpáveis, adotando uma perspectiva neorrealista e uma metodologia pautada em técnicas de pesquisa quantitativas; e aqueles que, inspirados em uma concepção construtivista, salientam a importância dos efeitos indiretos e simbólicos das decisões, adotam estratégias de pesquisa que incluem técnicas qualitativas.
A partir dessas duas perspectivas, o autor constrói uma tipologia dos efeitos sob consideração. De um lado, no eixo horizontal da tabela criada, são alocados os efeitos das decisões que podem ser: os efeitos diretos, que incluem ações judiciais que afetam os participantes do caso; e os efeitos indiretos, que incluem todos os tipos de consequências que, sem serem estipuladas nas ordens do tribunal, ainda assim derivam da decisão.
No eixo vertical da tabela estão representados os efeitos materiais e simbólicos. Os efeitos materiais implicam mudanças tangíveis na conduta de grupos ou indivíduos. Por seu turno, os efeitos simbólicos consistem em mudanças de ideias, percepções e construções sociais coletivas relacionadas ao assunto do litígio.
Assim, a interseção dessas duas perspectivas origina quatro tipos de efeitos: 1) efeitos materiais diretos (formulação de uma política ordenada pelo tribunal); 2) efeitos materiais indiretos (intervenção de novos atores no debate); 3) efeitos simbólicos diretos (reformulação da cobertura da mídia); 4) efeitos simbólicos indiretos (a transformação da opinião pública sobre o assunto). Retomando o contraste entre as abordagens neorrealista e construtivista, com essa tipologia é possível constatar que os neorrealistas se concentram nos efeitos materiais diretos, ou seja, na execução da decisão. Por outro lado, os construtivistas consideram todos os quatro tipos.
É importante notar isso, porque vai gerar diferentes pontos de vista sobre a eficácia de um julgamento. Um julgamento poderá ser visto como ineficaz pelos neorrealistas e como eficaz pelos construtivistas, na medida em que o que é visto como impacto para o último grupo inclui um conjunto mais amplo de efeitos.
Em um segundo momento, o autor busca compreender a existência de variação na amplitude e na profundidade dos efeitos das decisões estruturais do CCC e de outros tribunais. Primeiramente, o autor inicia discutindo as diferenças entre o ativismo monológico e o ativismo dialógico em relação as suas habilidades de aumentar o impacto das Cortes no cumprimento dos DESCA. O autor esclarece que um julgamento sobre DESCA será mais ou menos dialógico a depender das escolhas do tribunal com relação a três componentes da decisão: conteúdo substantivo, remédios e mecanismos de monitoramento.
O conteúdo substantivo da decisão está relacionado a um “se” e “em que medida” o tribunal declara que houve uma violação de um DESCA justiciável. Em termos dos critérios de Tushnet[4], as decisões ativistas, de variedades monológicas e dialógicas, implicam a afirmação dos DESCA como "direitos fortes".
Em relação aos remédios, enquanto os julgamentos monológicos envolvem ordens precisas e orientadas para os resultados, os julgamentos dialógicos tendem a delinear procedimentos e objetivos amplos e, alinhados ao princípio da separação de poderes, sobrecarregam os órgãos governamentais para projetar e implementar políticas. Em termos dos critérios de Tushnet, os remédios dialógicos tendem a ser mais fracos.
No que se refere ao terceiro componente, os mecanismos de monitoramento, consiste no enfrentamento pelos tribunais da escolha de manter ou não a jurisdição supervisora sobre a implementação dessas decisões. As decisões dialógicas tendem a abrir um processo de monitoramento que incentiva a discussão de alternativas de políticas para resolver o problema estrutural detectado na decisão.
Essa caracterização tríplice permite uma avaliação do caráter monológico ou dialógico de uma determinada decisão ou tribunal. Por sua vez, as decisões mais dialógicas em casos estruturais envolvem uma afirmação clara da justiciabilidade dos DESCA enquanto “direitos fortes”; deixam as decisões de política para os ramos eleitos do poder, enquanto traça um roteiro claro para medir o progresso (remédios moderados); e monitoraram ativamente a implementação das ordens do tribunal por meio de mecanismos participativos, como audiências públicas, relatórios de progresso e decisões de acompanhamento (monitoramento forte).
Em cada uma dessas três dimensões será possível encontrar grandes diferenças entre os tribunais ativistas (até mesmo entre as decisões de um mesmo tribunal). E é por isso que o autor se propõe a analisar comparativamente as três decisões selecionadas da CCC a fim de verificar como essas diferenças influenciam no impacto judicial.
Assim, o autor constatou que as três decisões compartilham a abordagem dos DESCA enquanto “direitos fortes”. Mas, em relação aos remédios, uma grande diferença é notada entre elas: no T-153, a CCC adotou uma abordagem de remédios fortes ao dar ordens detalhadas para o governo; a decisão do T-025 adotou uma abordagem mais procedimental e dialógica ao deixar para o governo do direito de decidir o conteúdo dos programas de Pessoas Deslocadas Internamente; na decisão no T-760, a CCC adotou abordagem moderada e intermediária ao orientar os meios pelos quais o governo formularia um plano de contingência para lidar com a iminente falência do sistema de saúde.
Por fim, no que consiste ao monitoramento, a decisão do T-025 se destaca das demais. Isto porque, ao longo de sete anos, ela gerou 21 audiências públicas de acompanhamento envolvendo uma ampla gama de atores governamentais e não-governamentais, demonstrando que a CCC implementou um processo de monitoramento notavelmente forte.
Em contraste, a abordagem da CCC no T-153 não incluía nenhum mecanismo de monitoramento patrocinado pela Corte. Da mesma forma, na decisão do T-760, embora tenha delineado um mecanismo de monitoramento semelhante ao do T-025, a CCC permaneceu em grande parte passiva: não realizou audiências públicas, não conseguiu promover uma participação significativa dos cidadãos e limitou seu acompanhamento a pedidos de informações do governo. Esses dois últimos julgamentos citados são caracterizados por possuírem um monitoramento fraco.
Portanto, o autor conclui que os resultados sugerem que decisões dialógicas como o T-025 oferecem a perspectiva de maior impacto geral no cumprimento dos DESCA, enquanto decisões monológicas como a T-153 provavelmente têm menor impacto. Entre esses dois extremos, há diferentes combinações de direitos, remédios e monitoramento que podem ter um impacto moderado.
O autor supõe que as decisões dialógicas tenham maior impacto porque abordam os dois principais obstáculos práticos à implementação de decisões estruturais envolvendo os DESCA: a resistência política e a capacidade institucional. Quanto ao primeiro, as injunções estruturais nos DESCA naturalmente provocam resistência de setores poderosos com interesses no status quo. E, ao capacitar uma gama mais ampla de partes interessadas para participar do monitoramento, os tribunais liberam efeitos diretos e indiretos que podem ajudar os tribunais a superar a resistência política.
Em relação ao segundo obstáculo, os mecanismos do ativismo dialógico podem ajudar os tribunais a resolver as deficiências institucionais ao lidar com questões socioeconômicas complexas. Os tribunais podem promover diálogos cujos efeitos diretos e indiretos potencialmente decorrentes incluem desbloquear processos políticos, melhorar a coordenação entre os órgãos estatais desconectados e criar políticas públicas enquadradas na linguagem dos direitos.
Por fim, combinando os direitos, remédios e mecanismos de monitoramento do ativismo dialógico, os tribunais podem compensar algumas das deficiências políticas e institucionais que tornam suas intervenções ineficazes em questões distributivas complexas, contribuindo para o aumento do impacto geral dos tribunais no cumprimento dos DESCA.
CONCLUSÃO.
O presente trabalho procurou examinar o avançar histórico do processo judicialização internacional dos DESCA, que passaram a ser pleiteados de maneira autônoma e desvinculados dos direitos civis e políticos. Em decorrência da pesquisa verificamos uma mudança de paradigma através do julgamento pela CIDH do caso Lagos del Campo vs. Peru (2017), que reconheceu a possibilidade de judicializar diretamente os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, com a criação de nova norma ao artigo 26 da CADH.
Apesar do surgimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos quando a América Latina era governada, em sua maioria, por ditaduras militares, o perfil da corte de justiça foi à busca pelo avanço da agenda democrática na região. Neste aspecto, a jurisprudência da Corte restou solidificada no combate as violações de direitos humanos, na proteção de grupos vulneráveis e na consolidação das instituições democráticas.
No passo seguinte, a CIDH caminhou no sentido de internacionalizar a proteção dos direitos humanos na América Latina, reconhecendo a autonomia, independência e possibilidade de submissão em juízo para buscar concretizar os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Para solidificar esta diretriz, a CIDH procurou estabelecer uma cultural de diálogo entre os diferentes níveis para contribuir na evolução da matéria dos direitos humanos. Além disso, foi necessário intervir e aperfeiçoar as medidas executivas necessárias para fortalecer o sistema interamericano de direitos humanos. Tudo isto revela a íntima relação da proteção dos direitos humanos com o fortalecimento e consolidação da democracia e do Estado de Direito no âmbito da América Latina.
Em caso paradigma, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso Lagos del Campo vs. Peru, em 2017, se desvencilhou de sua jurisprudência restritiva e passando a permitir a judicialização autônoma e direta dos DESCA com fundamento no artigo 26 da CADH. Neste caso, a CIDH passou da análise central de violação de direitos humanos por regimes não democráticos e justiça de transição para a democracia e se inclinou para fazer valer os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais na América Latina por intermédio da exequibilidade de suas decisões.
Por todo conteúdo trazido, a possibilidade de submissão direta de conflitos relacionados ao DESCA no enredo da CIDH deve ser dotada de mecanismos que garantam o cumprimento pelos Estados nacionais submetido à jurisdição internacional. Nesse sentido, a garantia da judicialização dos direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos deve vir acompanhada e aperfeiçoada por instrumentos garantidores de sua execução no âmbito interno de cada país latino-americano.
REFERÊNCIAS.
ANTONIAZZI, Mariela Morales; PIOVESAN, Flávia; IGNÁCIO, Renata Rossi. Covid-19 e direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais (DESCA): impacto dos estandares interamericanos. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, v. 11, n. 1, p. 59-90, 2020.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em 04 de julho de 2022.
CASTRO, Pamela Juliana Aguirre. Los derechos económicos, sociales y culturales a la luz de la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos. In: Revista IIDH/Instituto Interamericano de Derechos Humanos, n. 67, jan./jul., p. 155-202, 2018.
CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. CASO LAGOS DEL CAMPO VS. PERU. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/ docs/casos/articulos/seriec_340_esp.pdf. Acessado em: 06 de jul. 2022.
GARAVITO, César Rodríguez. Beyond the courtroom: the impact of judicial activism on socioeconomic rights in Latin America. Texas Law Review, n. 89, p. 1669-1698, 2011.
GORCZEVSKI, Clovis. A atuação da Corte Interamericana de direitos humanos nas questões dos DESCA. In: Sensibilidad, sociología y derecho: Libro homenaje al Prof. Dr. José Alcebiades de Oliveira Junior. Álvaro Sánchez Bravo, p. 141-156, 2021.
[1] No julgamento, através de sentença proferida em 31 de agosto de 2017, a CIDH reconheceu o Estado do Peru como responsável pelas seguintes violações: a) dos direitos a liberdade de pensamento, expressão e garantias judiciais; b) do direito a estabilidade laboral; c) do direito a liberdade de associação; e d) dos direitos a proteção e garantias judiciais.
[2] CAPÍTULO III
DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS
Artigo 26. Desenvolvimento progressivo Os Estados Partes comprometem‐se a adotar providências, tanto no âmbito interno como mediante cooperação internacional, especialmente econômica e técnica, a fim de conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura, constantes da Carta da Organização dos Estados Americanos, reformada pelo Protocolo de Buenos Aires, na medida dos recursos disponíveis, por via legislativa ou por outros meios apropriados.
[3] Casos estruturais são caracterizados por Garavito como processos judiciais que: (1) afetam um grande número de pessoas que alegam violação de seus direitos, diretamente ou através de organizações que litigam a causa; (2) implicam várias agências governamentais consideradas responsáveis por falhas generalizadas de políticas públicas que contribuem para essas violações de direitos; e (3) envolvam medidas cautelares estruturais, ou seja, ordens de execução pelas quais os tribunais instruem várias agências governamentais a tomar ações coordenadas para proteger toda a população afetada e não apenas os reclamantes específicos no caso.
[4] Os critérios de Tushnet servem para distinguir a amplitude das ordens e a extensão em que as ordens são obrigatórias e peremptórias.
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco em 2016. Pós-graduada em Direito Público pela Universidade Maurício de Nassau em 2019.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORAIS, Ana Roberta Silva de. A proteção dos DESCA no Sistema Interamericano de Direitos Humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2023, 04:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/60835/a-proteo-dos-desca-no-sistema-interamericano-de-direitos-humanos. Acesso em: 25 dez 2024.
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