RESUMO: O presente artigo tem como objetivo principal o estudo da família e seus efeitos, com o foco na paternidade e sua responsabilização jurídica; investigando através de uma abordagem qualitativa e metodologia explicativa, como a legislação pátria respalda ou não a responsabilidade afetiva, social e alimentar do pai, mesmo diante do laudo de DNA negativo. Analisar a possibilidade de retificação/anulação do registro da criança para retirada do nome do pai registral e avós paternos, mediante a ação de negatória de paternidade, resguardando o direito da criança em casos de laços afetivos já constituídos. Tem também como objetivo estudar a possibilidade de reparação civil nos casos de falsa imputação de paternidade por parte da genitora. O presente artigo foi elaborado por meio de pesquisas doutrinárias, bibliográficas, documentais e jurisprudenciais.
Palavras-chave: Paternidade; Negatória de paternidade; Família; Imputação de paternidade.
1. INTRODUÇÃO
A manutenção de vínculos afetivos sempre existiu. Nas palavras de Maria Berenice a manutenção de vínculos afetivos não é prerrogativa exclusiva dos seres humanos, mas, entre os seres vivos de algum modo, expressando o receio de solidão.
A definição família sofreu diversas alterações em decorrência dos anos, o que também é objeto de estudo no presente artigo, podendo se dizer, então que família é um agrupamento não formal, espontânea na sociedade, sendo onde o indivíduo se mantém de forma espontânea, podendo demonstrar e integrar sentimentos, valores, direitos, obrigações, projetando assim seu projeto individual de “felicidade”.
A legislação brasileira presta uma proteção ampla à família, resguardando direito e obrigações entre os seus membros, para que a garantia dos direitos fundamentais resguardados pela Constituição Federal não venham ser feridos.
Acontece que com a evolução do conceito família para famílias, passou-se a haver divergência de pensamentos, surgindo assim conflitos, um deles, o qual será objeto do presente estudo é a relação de parentesco biológico ou socioafetivo entre filhos e pais, mais precisamente o pai.
O tema em estudo se objetiva a análise da paternidade, sua classificação, definição e até onde o ordenamento jurídico preserva o fator genético/biológico em razão da paternidade constituída por vínculos afetivos.
Levando em consideração a importância do tema em comento, buscarei mostrar quais são as responsabilidades inerentes à paternidade mesmo em decorrência da ausência de paternidade biológica comprovada através de perícias laboratoriais, bem como demonstrar a possibilidade do pai registral do infante negar/contestar a paternidade a ele imputada ou por ele reconhecida de forma espontânea, por último demonstrar a responsabilidade da genitora em face da falsa imputação de paternidade ou do induzimento ao erro e coação para realização do registro.
Por fim, a análise do tema possui um aspecto social muito importante, deve-se, portanto, realizar a análise sob a ótica moral, mesmo o Estado tutelando tal assunto.
2. FAMÍLIA E SUA DEFINIÇÃO LEGAL CONTEMPORÂNEA
A antiga e superada definição de família advinda do século passado, regulamentava que família era constituída unicamente pelo matrimônio entre homem e mulher, pregava uma visão discriminatória e limitada, onde havia uma hierarquia entre os membros da família em relação aos direitos e obrigações, seguindo um modelo patriarcal, onde o pai tinha o papel central, tendo ao lado uma esposa a qual era cercada de filhos, inclusive os filhos havidos fora da união matrimonial eram tratados como ilegítimos e tinham seus direitos reduzidos a fim de preservar a relação matrimonial e os interesses dos filhos advindos de tal relação, a visão de família seguia uma forma hierárquica, no entanto, passou por diversas modificações com o avanço do tempo.
Com as mudanças sociais e surgimentos de novos vínculos, o direito de família passou por diversas alterações legislativas, devolvendo a capacidade plena às mulheres casadas; instituindo o divórcio, acabando com a ideia de perpetuidade da relação matrimonial; instaurando a igualdade entre homem e mulher em suas relações, passando a igualar os deveres e direitos dos membros da entidade familiar; consagrando a igualdade dos filhos havidos ou não da relação matrimonial ou pelo instituto da adoção; garantindo a possibilidade do instituto da união estável e o comparando com o casamento.
A Constituição de 1988 em seu Capítulo Vll trata da família e traz em seu artigo 226 os institutos que originam a família, são eles: O casamento civil, a união estável e a família monoparental, entendendo esta última à entidade familiar formada por qualquer dos pais e seus descendentes. A constituição estabelece que o casamento e a união estável devam ser constituídos entre homens e mulheres, imposição já superada pelos entendimentos doutrinários e jurisprudenciais dos tribunais superiores.
O entendimento doutrinário e jurisprudencial é de que o rol de família elencado da Constituição é meramente exemplificativo, admitindo-se assim, outras manifestações de família.
Flávio Tartuce, em sua doutrina traz definições de ampliação do conceito constitucional de família, são elas: Família anaparental, onde se entende que seja família aquelas cujo haja a inexistência de pais (ex: duas irmãs residindo no mesmo imóvel, formando, assim, uma família); Família homoafetiva, aquela constituída por pessoas do mesmo sexo, tendo seu reconhecimento como entidade familiar pelo Supremo Tribunal Federal, possuindo comparação legal à união estável; por último a Família mosaica ou pluriparental, aquela que advém de vários casamentos, uniões estáveis ou mesmo simples relacionamentos afetivos entre os membros da família.
Junto com o entendimento de que a norma Constitucional que regulamenta o direito de família é meramente exemplificativa, atualmente passamos a ter a existência de várias modalidades de família, sendo algumas delas:
Família matrimonial: instituída pelo casamento/matrimônio, união a qual sempre teve previsão e proteção legal expressa;
Família Informal: entidade familiar constituída pela união estável, instituto regulamentado pela legislação infraconstitucional, a qual se assemelha ao modelo oficial do casamento;
Família homoafetiva: modelo de entidade familiar constituída por pessoas do mesmo sexo, reconhecida inicialmente pelo Supremo Tribunal Federal como união estável, posteriormente a justiça admitiu a conversão da união estável homoafetiva em casamento. Atualmente o entendimento do Superior Tribunal de Justiça é de que o casamento homoafetivo pode ser habilitado de forma direta junto aos Cartórios de Registro Civis;
Família paralela ou simultânea: Possibilidade de cumulação simultânea de entidades familiar, onde o indivíduo se mantém em duas relações, ambas consideradas família. Ex: um indivíduo casado que possuí união estável com outra pessoa;
Família monoparental: família composta por apenas um dos pais e seus descendentes, recebendo a denominação doutrinária de monoparental, como forma de ressaltar a presença de apenas um dos pais no exercício principal do vínculo familiar.
Família parental ou anaparental: modalidade de família que não considera apenas a verticalidade dos vínculos parentais, onde se considera família a convivência entre pessoas, ainda que não parentes. Ex: duas irmãs que convivem juntas, como unidade familiar, sem pais.
Família pluriparental ou mosaica: trata-se de famílias com sucessivas recomposições. Ex: a figura do padrasto em caso de divórcio seguida de nova união.
Família extensa ou ampliada: traz a ideia de que não apenas o vínculo biológico seria capaz de concretizar uma entidade familiar. A Lei nº 12.010/09 conceitua família ampliada como sendo aquela que vai além da relação entre pais e filhos, podendo ser formada por parentes próximos que mantém vínculos de afetividade com a criança e/ou adolescente. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 25, parágrafo único, traz o conceito de família ampliada ou extensa:
Art. 25. Entende-se por família natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes.
Parágrafo único. Entende-se por família extensa ou ampliada aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência.
O entendimento doutrinário e jurisprudencial majoritário é de que o rol de família elencado da Constituição é meramente exemplificativo, admitindo-se assim, outras manifestações de família, não se limitando a estas modalidades acima descritas.
3.FILIAÇÃO E PATERNIDADE
As relações de paternidade e filiação passaram por diversas mudanças decorrentes das alterações no conceito de família, acima exploradas. Os pais atualmente não possuem mais poderes absolutos em relação aos filhos, atualmente as crianças e adolescentes são consideradas titulares de direitos, quais sejam: guarda, alimentos, afeto, proteção, educação, nome, entre outros direitos reservados a manutenção da personalidade.
Apesar da Constituição Federal de 1988 trazer a igualdade entre os filhos havidos dentro ou não do casamento e garantir que não possa haver tratamento desigual a obrigação de amparo e cuidado entre os filhos, no Código Civil há ainda a separação de seu tratamento nos capítulos “Da Filiação”, onde trata dos filhos havidos na constância do matrimônio (Artigos 1.596 a 1.606) ; e “Do Reconhecimento dos Filhos”, tratando dos filhos havidos fora do casamento (Artigos 1.607 a 6.617). Embora haja essa separação, não podemos falar em distinção de filhos, filho é filho!
Atualmente o conceito de paternidade e filiação não se restringe a paternidade biológica, admitindo-se assim, a paternidade e parentalidade socioafetiva, podendo em alguns casos haver a coincidência de ambas, se tratando de um ato relacional, estabelecendo direitos e deveres recíprocos entre pais e filhos.
O desenvolvimento de técnicas modernas para a reprodução vem permitindo que a concepção não dependa apenas do contato íntimo sexual, deixando assim, a filiação de ser definida somente pelo caráter genético, deixando de ser critério indispensável a correspondência de vínculo consanguíneo entre os pais e filhos.
Podemos dizer que a filiação passou a ter duas principais origens: Biológica e Afetiva, ampliando-se assim o conceito de paternidade.
Segundo Maria Berenice Dias:
Toda paternidade é necessariamente socioafetiva, podendo ter origem biológica ou não. Em outras palavras, a paternidade socioafetiva é gênero do qual são espécies a paternidade biológica e a paternidade não biológica. (apud Paulo Lôbo, Paternidade socioafetiva...,795).
A paternidade biológica é comprovável por meio de exame laboratorial, onde se tem quase uma certeza absoluta do liame biológico entre os envolvidos. Sob outra ótica, há também, o estado de filiação decorrente da criação de laços afetivos e de convivência, constituindo fundamento plausível e consistente para a atribuição de paternidade e/ou maternidade.
A paternidade socioafetiva não exclui o direito do filho em conhecer sua origem genética, sendo esse direito individual e personalíssimo, podendo posteriormente ser proposta ação de investigação de paternidade por parte do filho para que tenha conhecimento de sua origem biológica, sem prejuízo da paternidade afetiva constituída anteriormente.
A prova da paternidade se dá através do Registro Civil da criança (certidão de nascimento (o que faz presumir a paternidade)) constando, portanto, o nome do pai, mas, há casos em que a paternidade é presumida pela legislação brasileira.
Antigamente a presunção de paternidade ao qual constava a certidão de nascimento era considerada absoluta, não admitindo prova em contrário, podendo ser questionada apenas pelo filho e/ou seu verdadeiro pai. O atual entendimento é que o registro de paternidade é irrevogável, não sendo objeto de reivindicação, exceto nos casos onde se comprovar erro ou falsidade no registro, passando assim, ser questionável a paternidade.
O exemplo da possibilidade de se questionar a paternidade pode ser visualizado no seguinte exemplo: um homem e uma mulher casados tem um filho, o qual é registrado por ambos, mesmo o marido tendo ciência de que o filho não é biologicamente dele, a presunção de paternidade efetuada pelo registro civil prevalecerá neste caso, tendo em vista a importância da filiação socioafetiva. Neste caso também não será admitido alegação de erro ou falsidade do registro, sendo evidente que o filho e o verdadeiro pai poderão questionar a paternidade. (FIUZA, César, 2014).
Diferente do exemplo acima ocorre nos casos em que o esposo/companheiro registra a criança, sob a imputação de paternidade a ele imposta, por parte da genitora, realizando o registro da criança em seu nome por acreditar ser o verdadeiro pai. Caso seja constatado posteriormente a não paternidade biológica, poderá o pai registral, desde que inexista relação socioafetiva, questionar a paternidade em uma ação denominada negatória de paternidade ou contestação da paternidade como denominam alguns autores.
A infidelidade quando confessa pela esposa/companheira ou contra ela provada, por si só, não pressupõe prova cabal para declaração ou decretação de não paternidade, visto que a filiação biológica poderá independentemente da infidelidade da esposa/companheira ser do marido/companheiro.
3.1 Paternidade Biológica
Quando se fala de filiação, é inevitável a correlação entre a referência biológica e genética entre pais e filhos, cujo ocorre pelo vínculo de consanguinidade. Ocorre que com a modernização do conceito de família passou-se a reconhecer a afetividade, estabelecendo-se assim, uma diferenciação entre pai e genitor. O entendimento doutrinário é de que pai é aquela pessoa que cria, da atenção, afeto e amor à criança e adolescente, enquanto genitor é a pessoa que o gera biologicamente falando, podendo em alguns casos haver a cumulação de pai e genitor em uma só pessoa.
Em síntese, há tendência em se atribuir maior importância à paternidade socioafetiva, mas, a depender do caso em concreto, poderá prevalecer a paternidade biológica, tratando-se de matéria relativa.
3.2 Paternidade Registral
O Código Civil em seu Artigo 1.063 traz a ideia de que o registro de nascimento constitui a paternidade registral, a qual goza de presunção de veracidade tornando-a incontestável (Artigo 1.604, CC), salvo nos casos de erro e falsidade.
Há, no entanto, outras formas de paternidade voluntária: a escritura pública, o escrito particular, o testamento, a declaração manifestadas perante o juiz, ambas comprovam a filiação (DIAS, Maria Berenice, 2013, p. 373).
Atualmente o valor da paternidade socioafetiva se sobrepõe ao valor da paternidade registral, porém, esta segunda ainda é utilizada para determinar direitos e deveres inerentes à paternidade como o dever de alimentar, dar assistência, orientam os direitos sucessórios e ainda regulamenta a relação entre descendentes e ascendentes em suas responsabilidades e atos jurídicos.
Os casos em que se realizam a “adoção à brasileira” (ato de registrar filho como próprio), por si só não gera configuração de erro ou falsidade de registro, pois, não cabe alegação de erro se o registro foi assumido de modo livre e voluntário.
3.3 Paternidade Socioafetiva
A paternidade socioafetiva tem seu respaldo legal no Artigo 1.593, do Código Civil/2002 que prescreve: “o parentesco é natural ou civil, conforme de consanguinidade ou outra origem”. A possibilidade da paternidade socioafetiva inexistia no Código anterior.
Paternidade Afetiva entende-se pela conduta aderida entre pai e filho perante a sociedade. A constância comportamental e demonstrativa de afeto entre pais e filhos, prevalece esta, atribuindo efeito secundário à paternidade biológica; basta lembrar-nos do exemplo acima citado, onde o pai registral descobre que não é pai biológico, porém, não se pode questionar erro ou falsidade caso haja concretizado entre ele e a criança/adolescente vínculos afetivos consideráveis, capazes de trazer sofrimento e prejudicar o desenvolvimento da criança/adolescente caso seja declarada a não paternidade em virtude da descoberta de inexistência de vínculo genético.
4. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE E SEU TRATAMENTO LEGAL
Como visto anteriormente, após o registro de nascimento presume-se inquestionável a paternidade. Há exceção nos casos em que o pai registral descobre a não paternidade após o registro da criança, onde se acreditava ser o verdadeiro pai biológico por induzimento ao erro ou coação por parte da genitora ao imputar a este a paternidade do infante.
A ação de negatória de paternidade ou como denominada por alguns autores como ação de contestação da paternidade, é um direito inerente ao pai registral do infante, onde se busca a declaração da não paternidade biológica, em sua grande maioria, cumulada com a anulação do registro civil, juntamente com a retirada do nome do pai registral e dos avós paternos do assentamento da criança.
O anterior Código Civil estabelecia que para se contestar a paternidade o pai deveria obedecer a um critério de prazo decadencial de dois meses, que seriam contados do nascimento da criança, se era presente o marido ou se ausente ou se não soube do nascimento, o prazo seria de três meses contados da ciência do fato.
Com o Código Civil de 2002 as ações contestatórias de paternidade passaram a ser imprescritíveis, gerando assim, uma presunção de instabilidade jurídica e sendo alvo de várias críticas.
O procedimento de contestar/negar a paternidade deve seguir alguns requisitos legais, trata-se de uma ação direta, não admitindo caráter incidental. O pai registral deve ingressar com uma ação autônoma de qualquer outra para questionar ou negar a paternidade, não podendo, por exemplo, usar a ação de alimentos proposta pelo filho para que no momento de sua contestação referente aos alimentos conteste a paternidade ou negue-a.
A ação de negatória de paternidade é uma ação de titularidade do pai registral, embora a lei fale em marido, já está superado esse entendimento, pois vimos anteriormente que pai pode ser qualquer pessoa que demonstre afeto e reconheça/exerça os deveres inerentes à paternidade em relação ao infante, independentemente do tipo e modalidade de família constituída; se tratando de uma ação privativa do pai registral, não poderá ser interposta por outrem, porém, admite-se continuidade da ação por parte de seus herdeiros. A presente ação terá como parte ré o filho ao qual a paternidade está sendo negada ou contestada.
Comprovada a inexistência de vinculo biológico e existência de vínculo afetivo entre o pai registral e a criança, o segundo deverá prevalecer sobre o primeiro, visto que o direito do filho em ter preservada sua condição a qual sempre se identificou é maior do que o direito de negativa de paternidade que o pai detém.
Sobre o assunto, baseando-se no entendimento do STJ, Maria Berenice Dias expõe: “Entre o direito do pai de negar a paternidade biológica e o direito do filho de ver preservada a condição a qual sempre se identificou, não há como deixar de dar prevalência à filiação afetiva (...)” (DIAS, Maria Berenice, 2013).
A discussão sobre paternidade afetiva é frequente nos tribunais, porém, o STJ e STF possuem entendimentos sobre a prevalência da paternidade afetiva em detrimento da paternidade biológica, é o que se vê nas ementas abaixo:
STF - TEMA - 622 = "RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. DIREITO CIVIL. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO. PATERNIDADE BIOLÓGICA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. CONTROVÉRSIA GRAVITANTE EM TORNO DA PREVALÊNCIA DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA EM DETRIMENTO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. ART. 226, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLENÁRIO VIRTUAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. (STF - 22.9.2016)
RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM ANULATÓRIA DE REGISTRO DE NASCIMENTO. VÍCIO DE CONSENTIMENTO. INEXISTÊNCIA. RELAÇÃO SOCIOAFETIVA. CONFIGURAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA CONTRÁRIA. ÔNUS DE QUEM ALEGA. ART. 333 DO CPC/1973. SÚMULA Nº 7/STJ.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 1973 (Enunciados Adm. nºs 2 e 3/STJ).
2. A retificação do registro de nascimento depende da configuração de erro ou falsidade (art. 1.604 do Código Civil/2002) em virtude da presunção de veracidade decorrente do ato, bem como da inexistência de relação socioafetiva preexistente entre pai e filho.
3. A paternidade socioafetiva não foi impugnada pela autora, a quem incumbia o ônus de desconstituir os atos praticados por seu pai biológico, à luz do art. 333, I, do CPC/1973.
4. O Tribunal local manteve incólumes os registros de nascimentos em virtude da filiação socioafetiva, circunstância insindicável nesta instância especial em virtude do óbice da Súmula nº 7/STJ.
5. Recurso especial não provido.
(REsp 1730618/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/05/2018, DJe 30/05/2018)
A prevalência da paternidade socioafetiva em determinados casos em concreto, não acaba com a importância da paternidade biológica, esta também protegida pelo ordenamento jurídico.
Nos casos em que acontece a famosa “adoção a brasileira”, onde o pai registra o filho de sua companheira/esposa, sabendo que não detém a paternidade biológica, mas, o assume como seu, comprovada a existência de paternidade socioafetiva o pai registral não poderá invocar seu direito a questionar a paternidade, alegando que inexiste vínculo sanguíneo biológico com o infante.
Vejamos:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. RECONHECIMENTO ESPONTÂNEO DA PATERNIDADE PELO COMPANHEIRO DA MÃE. INEXISTÊNCIA DE ERRO SUBSTANCIAL QUANTO À PESSOA. FORMAÇÃO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPOSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO DO REGISTRO. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. SIMILITUDE FÁTICA NÃO COMPROVADA.
1. (...). 2. A" adoção à brasileira ", ainda que fundamentada na" piedade "e muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado, não consubstancia negócio jurídico sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva, consistente no término do relacionamento com a genitora.
3. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito, em ação negatória de paternidade, depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado, na maioria das vezes, na convivência familiar.
4. Nos casos em que inexistente erro substancial quanto à pessoa dos filhos reconhecidos, não tendo o pai falsa noção a respeito das crianças, não será possível a alteração desta situação, ainda que seja realizada prova da filiação biológica com resultado negativo.
5. Em linha de princípio, somente o pai registral possui legitimidade para a ação na qual se busca impugnar a paternidade - usualmente denominada de ação negatória de paternidade -, não podendo ser ajuizada por terceiros com mero interesse econômico.
(REsp 1412946/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17/03/2016, DJe 22/04/2016)
6. A interposição recursal com base na alínea c do permissivo constitucional exige a demonstração analítica da alegada divergência, fazendo-se necessária a transcrição dos trechos que configurem o dissenso e a menção às circunstâncias que identifiquem os casos confrontados.
7. Recurso especial provido.
(REsp 1333360/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18/10/2016, DJe 07/12/2016)
Neste mesmo sentido:
AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL (CPC/1973). FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE E DE ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. 1. Controvérsia em torno da presença dos requisitos legais para a desconstituição da paternidade declarada em desacordo com a verdade biológica. 2. Possibilidade, segundo a orientação jurisprudencial desta Corte, de desconstituição do registro de nascimento quando baseado em vício de consentimento e uma vez afastada a existência de filiação sociofetiva, como verificado no caso dos autos. 3. Inviabilidade do acolhimento da pretensão recursal fundada na alegação de que não houve erro a comprometer a manifestação de vontade do pai registral, por demandar o reexame de matéria fático-probatória dos autos. 4. Razões do agravo interno que não alteram as conclusões da decisão agravada acerca da atração dos óbices dos enunciados das Súmulas n.ºs 07 e 83/STJ.5. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO.(AgInt no REsp 1531311/DF, Rel. Min.PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 3a Turma, DJe 05/09/2018);
Tem-se por conclusão que o maior questionamento nas causas que envolvem a negatória de paternidade é a existência ou não da paternidade socioafetiva; sendo esta comprovada, mesmo que o pai registral tenha sido “enganado”, induzido ao erro ou a ele tenha sido imputada a paternidade por intermédio de coação por parte da genitora, deve-se prevalecer a paternidade socioafetiva, não podendo assim, haver a desconstituição do vínculo paternal. Há, no entanto a possibilidade de um julgamento parcial de mérito, onde a sentença/decisão decrete a não paternidade biológica entre os demandantes, porém, não se admitindo a nulidade do registro, mantendo o pai registrar como pai socioafetivo, consequentemente a manutenção do registro e da responsabilidade de pai em relação ao filho, como por exemplo: a manutenção da pensão alimentícia.
Deve-se ressaltar que a paternidade socioafetiva não afasta a responsabilidade do pai biológico, caso haja discussão futura.
5. POSSIBILIDADE DE REPARAÇÃO CIVIL POR IMPUTAÇÃO FALSA DE PATERNIDADE POR PARTE DA GENITORA
O atual Código Civil estabelece em seu Artigo 186 que: “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Em decorrência de diversas modificações que o direito de família vem enfrentando nos últimos tempos, surgiram diversos problemas, os quais necessitam de eficientes soluções. É neste cenário que encontramos a difusão entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil.
Marcos Mendonça em seu artigo elenca os elementos da responsabilidade civil, quais são: A conduta humana comissiva ou omissiva, podendo ela ser própria ou de terceiro; dano ou violação de um interesse protegido, sendo ele de cunho patrimonial ou extrapatrimonial; bem como o nexo de causalidade entre a conduta do agente e o dano sofrido.
Cabe ressaltar que além destes elementos deve-se analisar se a conduta que exprime vontade é dotada de culpa, em suas modalidades: negligência, imprudência ou imperícia.
A competência de julgamento dos danos civis de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, que advém de uma relação familiar é da justiça comum, tendo como competente as varas de família.
A discussão levantada neste capítulo do presente artigo tem por finalidade estudar a possibilidade de reparação civil nos casos de falsa atribuição de paternidade por parte da genitora, onde o pai registral acredita ser o pai biológico e tem o filho como seu, atendendo muita das vezes a necessidade e obrigações inerentes a criança/adolescente, mas, que posteriormente descobre que não é o pai biológico através de perícia laboratorial ou confissão da genitora. Surge-se então o seguinte questionamento: É possível indenização moral por imputação falsa de paternidade?
O entendimento majoritário dos tribunais é de que cabe sim a responsabilização moral, nos casos de falsa imputação de paternidade por parte da genitora, o que se assemelharia a conduta ilícita, tornando-a passível de indenização.
Sobre isto, é entendimento do TJDFT:
DIREITO CIVIL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO ADESIVO. AUSÊNCIA DE INTERESSE EM RECORRER. MANIFESTAÇÃO EXPRESSA. PRECLUSÃO LÓGICA. DANOS MORAIS. FALSA PATERNIDADE BIOLÓGICA. VIOLAÇÃO A DIREITO DE PERSONALIDADE. SENTENÇA MANTIDA.
A manifestação expressa quanto à ausência de interesse em recorrer da r. sentença impede o conhecimento do recurso adesivo posteriormente interposto pelo autor, diante da ocorrência da preclusão lógica, art. 1000 do CPC. Não conhecimento do recurso adesivo.
O período em que o autor permaneceu acreditando ser o pai biológico da menor, em razão da conduta omissiva voluntariamente praticada pela parte apelante, seguida do dano advindo à parte apelada, além do nexo de causalidade entre eles caracterizam a responsabilidade civil ensejadora do dever de indenizar. Apelação não provida. (Acórdão 940487, 20130111344964APC, Relator: HECTOR VALVERDE, 5ª TURMA CÍVEL, data de julgamento: 11/5/2016, publicado no DJE: 17/5/2016. Pág.: 234/239)(grifei).
O pedido de reparação civil não se confunde com o de negatória/contestação de paternidade, não sendo eles dependentes. Por exemplo: o pai registral ao tomar conhecimento da não paternidade biológica ingressa com uma ação negatória de paternidade cumulando o pedido de nulidade do registro, bem como solicita reparação civil por danos morais. Sabemos que caso tenha sido estabelecido um vínculo afetivo entre os demandados, a nulidade do registro não poderá ser deferida em razão da prevalência da verdade socioafetiva sobre a biológica, mas, nada impede que o juiz acolha o pedido de negar a paternidade, declarando que o Autor/pai registral não é pai biológico do infante, permanecendo o registro sob alegação da paternidade socioafetiva, bem como deferir seu pedido de reparação civil contra a genitora pelos danos extrapatrimoniais causados.
Nos casos de fixação de indenização, deverão ser adotados os critérios gerais: arbítrio prudente, bom senso, equidade, proporcionalidade e/ou razoabilidade, como também os específicos como: grau de culpabilidade, potencial econômico da parte ofensora, repercussão do ato lesivo, condições pessoais da parte que foi ofendida, bem como a natureza do direito que fora violado.
CONCLUSÃO
O desenvolvimento do presente artigo nos trouxe uma definição bem mais ampla de família do que se tinha anteriormente, demonstrando que família vai além de uma relação de consanguinidade e descendência entre seus integrantes, abrangendo novos laços e relações.
A evolução legislativa teve seu papel muito importante para o conceito contemporâneo de família adotado atualmente. Excluiu-se a ideia de que família deveria seguir um molde hierárquico, passando a valorar as relações interpessoais afetivas.
O direito de família acolhe o ser humano desde sua concepção a fim de estabelecer direitos e proteção, com o nascimento além da proteção dada pelo Estado, a criança passará a pertencer, via de regra, a uma das entidades familiares existentes atualmente.
A convivência em família está longe de ser perfeita, podendo gerar vários conflitos, um deles que podemos perceber no decorrer da pesquisa é a descoberta da não paternidade biológica por parte do genitor, possuindo este o direito de questionar a paternidade a ele imputada.
Como o contexto histórico e legal não mais se admite a paternidade biológica, permitindo-se também a paternidade socioafetiva deve-se obervar até onde prevalecerá o direito do pai em questionar o vínculo biológico de seus filhos, quando há a paternidade socioafetiva.
Concluímos no presente estudo que o direito de questionar a paternidade não se sobrepõe a paternidade socioafetiva, sendo esta mais importante e se desconstituída causaria imensos prejuízos e lesões os direitos do infante.
Neste sentido a ação de nagatória de paternidade é caráter de exceção, devendo, portanto, seguir os critérios legais, onde além de demonstrado a ausência de vínculo biológico com a criança/adolescente, há a necessidade de provas sobre a não constituição de paternidade socioafetiva.
Outra importante análise feita foi a da possibilidade do pai registral ser indenizado pela falsa paternidade a ele imposta, quando o pai registra a criança acreditando ser o verdadeiro pai, presta-lhe assistência, muitas das vezes cria laços afetivos e ao descobrir a verdade através de exame de DNA ou confissão da genitora, sente-se extremamente ferido em sua moral. O ordenamento jurídico como podemos ver, prevê a condenação em reparação civil por parte da genitora que imputa falsamente a paternidade ao pai registral.
Por fim, o maior aprendizado elencado no presente artigo é o de que no ponto de vista jurídico não há distinção entre os filhos, filho é filho! Porém, poderá em casos concretos haver distinção entre genitor e pai, pai é quem constrói laços de afetos, quem preserva direitos, quem educa quem alimenta, podendo ainda ser entendido que: “Quem não é pai, nem afetivo nem biológico, não é pai” (DIAS, 2013).
REFERÊNCIAS
BRASIL, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 – Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em 14/09/2022
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Advogada. Especialista em Direito Civil e Processual Civil; Direito de Família e Direito Penal e Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MORAES, Kethley Rodrigues de. Negatória de paternidade e a responsabilidade civil do pai registral Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 mar 2023, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61219/negatria-de-paternidade-e-a-responsabilidade-civil-do-pai-registral. Acesso em: 24 dez 2024.
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