RESUMO: Os litígios multipolares complexos são caracterizados pela presença de múltiplas partes envolvidas e pela complexidade das questões legais e fáticas subjacentes. Eles geralmente abrangem uma ampla gama de interesses, direitos e responsabilidades. Nesse contexto, o processo estrutural surge como uma abordagem inovadora para enfrentar esses litígios complexos, buscando soluções abrangentes e duradouras. O problema estrutural refere-se a questões sistêmicas e estruturais que afetam os direitos fundamentais. O processo estrutural é a ferramenta utilizada para abordar e solucionar esses problemas, visando alcançar mudanças estruturais e sistêmicas. A decisão estrutural é o resultado final do processo estrutural, estabelecendo medidas e diretrizes para enfrentar o problema identificado. O artigo propõe uma classificação das características essenciais e típicas do processo estrutural e aborda aspectos relacionados ao procedimento, sugerindo a aplicação do procedimento comum previsto no Código de Processo Civil de 2015.
Palavras-chave: Processo Estrutural. Litígios multipolares complexos. Efetividade processual.
ABSTRACT: Complex multipolar litigation is characterized by the presence of multiple parties involved and the complexity of the underlying legal and factual issues. They generally cover a wide range of interests, rights and responsibilities. In this context, the structural process emerges as an innovative approach to face these complex disputes, seeking comprehensive and lasting solutions. The structural problem refers to systemic and structural issues that affect fundamental rights. The structural process is the tool used to address and solve these problems, aiming to achieve structural and systemic changes. The structural decision is the final result of the structural process, establishing measures and guidelines to face the identified problem. The article proposes a classification of the essential and typical characteristics of the structural process and addresses aspects related to the procedure, suggesting the application of the common procedure provided for in the Civil Procedure Code of 2015.
Keywords: Structural Process. Complex multipolar disputes. Procedural effectiveness.
1 INTRODUÇÃO
O tema de estudo desse artigo aborda os processos estruturais e a relação e efetividade com os litígios multipolares complexos caracterizados pela presença de múltiplas partes envolvidas e pela complexidade das questões legais e fáticas subjacentes.
No campo do Direito Processual Civil, a busca pela efetividade e pela justiça tem levado à adoção de novas abordagens, além dos tradicionais modelos de processos individuais. Entre essas abordagens, destacam-se os processos estruturais, que têm como objetivo solucionar problemas jurídicos e sociais de maneira ampla e coletiva. Os processos estruturais são uma resposta à necessidade de lidar com questões que transcendem os interesses das partes diretamente envolvidas, promovendo a transformação social e garantindo direitos fundamentais. Neste artigo, exploraremos os processos estruturais no processo civil e sua importância na promoção de uma justiça mais abrangente e efetiva.
Os processos estruturais são mecanismos processuais utilizados para enfrentar problemas jurídicos complexos que afetam uma coletividade ou uma categoria de pessoas. Ao contrário dos processos individuais tradicionais, que buscam a proteção de interesses particulares, os processos estruturais visam corrigir situações sistêmicas e estruturais que violam direitos fundamentais ou causam prejuízos generalizados.
Uma característica fundamental dos processos estruturais é sua abrangência. Eles não se limitam a solucionar casos individuais, mas têm o propósito de estabelecer diretrizes e soluções que afetem um grupo mais amplo de pessoas. Além disso, os processos estruturais buscam promover mudanças estruturais e institucionais, indo além da simples reparação de danos e visando a prevenção de violações futuras.
Busca-se abordar a causa raiz dos problemas e promover mudanças sistêmicas, visando à proteção dos direitos fundamentais, à prevenção de violações futuras e à promoção de justiça social. Eles geralmente abrangem uma ampla gama de interesses, direitos e responsabilidades. Nesse contexto, o processo estrutural surge como uma abordagem inovadora para enfrentar esses litígios complexos, buscando soluções abrangentes e duradouras.
As principais características do processo estrutural em litígios multipolares complexos: abordagem holística: O processo estrutural leva em consideração a complexidade dos litígios multipolares complexos, analisando não apenas os aspectos legais, mas também os fatores sociais, econômicos e políticos envolvidos. Isso permite uma compreensão mais abrangente das questões em disputa; participação das partes interessadas: o processo estrutural busca envolver todas as partes interessadas relevantes, incluindo indivíduos, grupos afetados, organizações da sociedade civil e representantes governamentais. Isso promove a representatividade e a legitimidade das decisões tomadas; busca de soluções abrangentes: em vez de se limitar a resolver disputas individuais, o processo estrutural busca encontrar soluções abrangentes que abordem as questões sistêmicas subjacentes. Isso pode incluir a implementação de políticas públicas, a adoção de medidas corretivas e a reforma de instituições; medidas de acompanhamento: O processo estrutural pode incluir mecanismos de monitoramento e acompanhamento para garantir a efetividade das decisões e a implementação das medidas estabelecidas. Isso permite avaliar o progresso e realizar ajustes conforme necessário. Benefícios do Processo Estrutural em Litígios Multipolares Complexos: efetividade: O processo estrutural aborda as causas subjacentes dos litígios complexos, permitindo soluções mais abrangentes e duradouras. Isso promove a efetividade na resolução de disputas e na proteção dos direitos das partes envolvidas; prevenção de litígios futuros: Ao enfrentar as questões sistêmicas e estruturais, o processo estrutural busca prevenir a ocorrência de litígios futuros semelhantes. Isso reduz a carga sobre o sistema judiciário e promove uma abordagem mais proativa na resolução de conflitos.
Existem diferentes tipos de processos estruturais, cada um com suas peculiaridades e objetivos específicos. Alguns exemplos notáveis incluem:
1. Ações Civis Públicas: São ações promovidas pelo Ministério Público ou por entidades legitimadas, com o propósito de tutelar interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Essas ações visam à reparação de danos, à implementação de políticas públicas ou à correção de práticas que afetam uma coletividade.
2. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR): Trata-se de um mecanismo que busca a uniformização de decisões sobre questões de direito com grande repetição em múltiplos processos individuais. O objetivo é evitar a proliferação de decisões divergentes, promovendo a segurança jurídica e a eficiência na prestação jurisdicional.
3. Ações de Controle de Constitucionalidade: São ações promovidas para questionar a constitucionalidade de leis ou atos normativos, visando à declaração de sua inconstitucionalidade e à consequente proteção dos direitos fundamentais.
Alguns dos principais benefícios são:
1. Efetividade: Os processos estruturais permitem abordar questões que afetam uma coletividade, proporcionando soluções mais abrangentes e duradouras. Ao lidar com problemas sistêmicos, eles visam a promover mudanças reais e efetivas, evitando a repetição de violações.
2. Justiça Social: Os processos estruturais têm o potencial de corrigir desigualdades e injustiças que afetam grupos vulneráveis ou minoritários. Eles buscam promover uma distribuição mais equitativa de direitos, benefícios e oportunidades, contribuindo para uma sociedade mais justa.
3. Prevenção de Danos: Ao abordar problemas estruturais, os processos estruturais têm como objetivo não apenas reparar danos passados, mas também prevenir violações futuras. Ao implementar medidas corretivas e estabelecer diretrizes, eles contribuem para a prevenção de práticas abusivas e injustas.
No entanto, os processos estruturais também apresentam desafios significativos. Alguns dos principais desafios são:
1. Complexidade: Devido à natureza abrangente e complexa dos problemas abordados, os processos estruturais podem envolver questões jurídicas e fáticas complexas. Isso requer uma análise aprofundada e especializada, bem como a cooperação entre diferentes atores do sistema de justiça.
2. Morosidade: A abrangência e a complexidade dos processos estruturais podem levar a um maior tempo de tramitação. A necessidade de envolver múltiplas partes interessadas, realizar investigações extensas e obter dados relevantes pode resultar em um processo mais demorado.
3. Implementação e Cumprimento das Decisões: Uma vez que os processos estruturais envolvem mudanças estruturais e institucionais, a implementação e o cumprimento das decisões podem ser desafiadores. É necessário garantir a efetiva execução das medidas ordenadas pelo tribunal, bem como monitorar sua eficácia ao longo do tempo.
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 O Devido processo estrutural
No sistema jurídico brasileiro, o direito ao devido processo legal é fundamental para garantir a proteção dos direitos e liberdades individuais, bem como a segurança jurídica. Ele impõe limites ao exercício do poder estatal, garantindo que os indivíduos sejam tratados de acordo com as normas e procedimentos estabelecidos pela lei.
A Constituição de 1988 do Brasil consagra o direito ao devido processo legal no artigo 5º, inciso LIV. Essa garantia constitucional tem como base a expressão "due process of law" do direito anglo-americano. A inclusão desse princípio na Constituição reflete a preocupação em assegurar um processo justo e equitativo para todos os cidadãos. A expressão "due process of law" tem suas origens na Magna Carta inglesa de 1215, especificamente na cláusula n. 39. Ela foi posteriormente incorporada ao 28º Estatuto de Eduardo III, de 1354. Esses documentos históricos foram fundamentais na consolidação do princípio do devido processo legal, estabelecendo a ideia de que nenhum indivíduo pode ser privado de seus direitos fundamentais sem um processo adequado.
O devido processo legal abrange uma série de garantias processuais, como o direito à ampla defesa, ao contraditório, à igualdade de tratamento, à produção de provas, ao acesso à justiça e à imparcialidade do juiz. Essas garantias são essenciais para assegurar que as partes envolvidas em um processo judicial tenham a oportunidade de apresentar suas argumentações e evidências de maneira justa e equitativa.
a principal diferença entre o devido processo legal individual e o devido processo legal estrutural reside na sua abordagem e flexibilidade em relação às soluções aplicáveis aos casos em questão.
O devido processo legal individual está mais associado à legalidade e ao respeito aos princípios tradicionais do processo, como o princípio da demanda e o princípio da estabilidade do processo. Ele é voltado para a proteção dos direitos e interesses das partes envolvidas em um litígio específico, seguindo as regras e procedimentos estabelecidos pela legislação.
Por outro lado, o devido processo legal estrutural apresenta uma maior abertura à construção de soluções adaptadas e flexíveis por parte do juiz e das partes envolvidas. Ele busca lidar com problemas sistêmicos e estruturais, indo além da resolução de disputas individuais e abordando questões mais amplas que afetam a sociedade como um todo.
No processo estrutural, o foco está na adequação das soluções às especificidades do caso concreto, considerando a evolução do tratamento da causa em juízo e a variação das medidas executivas necessárias para tutelar adequadamente os direitos envolvidos. Isso significa que as providências a serem tomadas podem ser ajustadas ao longo do procedimento, conforme a evolução das circunstâncias e das necessidades das partes. Essa abordagem flexível e adaptada do devido processo legal estrutural é ainda mais ampla do que aquela praticada no processo coletivo em geral. Ela reconhece que problemas sistêmicos exigem soluções personalizadas e abrangentes, que podem variar de acordo com as particularidades do caso e a evolução das circunstâncias.
Portanto, a maior abertura do devido processo legal estrutural às soluções adaptadas para o caso concreto reflete a necessidade de lidar com questões estruturais e complexas, permitindo uma maior flexibilidade na busca por medidas que efetivamente protejam os direitos envolvidos e promovam a justiça social.
2.2 As Características do Processo Estrutural
O processo estrutural apresenta características distintas que são fundamentais para a sua adequação às particularidades da tutela de interesses multipolares complexos. Essas características visam superar a rigidez do processo tradicional e lidar com a complexidade dos conflitos envolvidos.
Conforme explica Edilson Vitorelli:
“Litígios estruturais são litígios coletivos decorrentes do modo como uma estrutura burocrática, usualmente, de natureza pública, opera. O funcionamento da estrutura é que causa, permite ou perpetua a violação que dá origem ao litígio coletivo. Assim, se a violação for apenas removida, o problema poderá ser resolvido de modo aparente, sem resultados empiricamente significativos, ou momentaneamente, voltando a se repetir no futuro.” (VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural processo coletivo processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo: RePro, ano 43, vol. 284, São Paulo: Revista dos Tribunais, out. 2018, p. 345).
2.3 Características essenciais e específicas dos processos estruturais
O processo estrutural é um processo coletivo no qual se pretende, pela atuação jurisdicional, a reorganização de uma estrutura burocrática, pública ou privada, que causa, fomenta ou viabiliza a ocorrência de uma violação pelo modo como funciona, originando um litígio estrutural.
Essencialmente, o processo estrutural tem como desafios:
1) a apreensão das características do litígio, em toda a sua complexidade e conflituosidade, permitindo que os diferentes grupos de interesses sejam ouvidos;
2) a elaboração de um plano de alteração do funcionamento da instituição, cujo objetivo é fazer com que ela deixe de se comportar da maneira reputada indesejável;
3) a implementação desse plano, de modo compulsório ou negociado;
4) a avaliação dos resultados da implementação, de forma a garantir o resultado social pretendido no início do processo, que é a correção da violação e a obtenção de condições que impeçam sua reiteração futura;
5) a reelaboração do plano, a partir dos resultados avaliados, no intuito de abordar aspectos inicialmente não percebidos ou minorar efeitos colaterais imprevistos; e
6) a implementação do plano revisto, que reinicia o ciclo, o qual se perpetua indefinidamente, até que o litígio seja solucionado, com a obtenção do resultado social desejado, que é a reorganização da estrutura. (VITORELLI, Edilson. Levando os conceitos a sério: processo estrutural processo coletivo processo estratégico e suas diferenças. Revista de Processo: RePro, ano 43, vol. 284, São Paulo: Revista dos Tribunais, out. 2018, p. 348).
Algumas das características do processo estrutural incluem:
Conflitos multipolares complexos: O processo estrutural lida com situações em que há a presença de múltiplos interesses em disputa sobre o objeto do litígio. Diferentemente do modelo bipolar, que envolve apenas dois interesses opostos, o processo estrutural lida com a formação de diversos núcleos de posições e opiniões. Essa multiplicidade de interesses exige uma abordagem diferenciada e flexível para alcançar soluções adequadas.
Adequação ao caso concreto: O processo estrutural busca adaptar-se às particularidades de cada caso, levando em consideração as características específicas e a evolução do litígio ao longo do tempo. Isso implica em uma maior flexibilidade nas medidas e providências a serem adotadas, permitindo a construção de soluções personalizadas para cada situação.
Enfoque na equidade: O processo estrutural valoriza o princípio da equidade, buscando a justa conciliação dos interesses envolvidos. Essa abordagem vai além da mera aplicação da lei e considera aspectos de justiça social, buscando soluções que promovam a igualdade e a justiça distributiva.
Participação das partes interessadas: O processo estrutural incentiva a participação ativa das partes interessadas, como representantes de grupos afetados, especialistas, organizações da sociedade civil, entre outros. Essa participação é fundamental para que as soluções propostas considerem as perspectivas e necessidades de todos os envolvidos, garantindo uma maior legitimidade e efetividade do processo.
Busca por soluções abrangentes: O processo estrutural busca soluções abrangentes e duradouras, que não se limitem apenas à resolução dos litígios individuais, mas que tenham impacto no sistema ou na estrutura que gerou o conflito. O objetivo é promover mudanças estruturais que previnam a repetição dos mesmos problemas no futuro.
Essas características do processo estrutural refletem a necessidade de uma abordagem diferenciada e adaptada para lidar com conflitos multipolares complexos, buscando soluções justas e efetivas que considerem a diversidade de interesses e as particularidades de cada caso. A flexibilidade, a equidade e a participação das partes interessadas são elementos-chave para alcançar uma abordagem eficaz no contexto do processo estrutural.
É possível que se atinja no processo estrutural um denominador comum na ponderação dos interesses. Por essa razão, Sérgio Cruz Arenhart questiona inclusive o emprego da expressão “conflito” no âmbito dos Processos Estruturais, ao sustentar:
“Embora o texto aluda, constantemente, a expressões classicamente ligadas à finalidade da prestação jurisdicional – “conflito”, “litígio”, etc. – é até mesmo de se duvidar da adequação do emprego desses vocábulos em relação aos processos estruturais. A rigor, essas expressões ligam-se aos conflitos bipolarizados, em que há um polo demandante, a que se opõe outro, demandado. No caso dos “conflitos” estruturais, porém, o que há é um problema, que demanda solução, e que envolve diversos interesses e pontos de vista diferentes. Nem sempre haverá conflito, no seu sentido próprio, já que, muitas vezes, os sujeitos envolvidos convergem na conclusão sobre a necessidade de dar solução ao problema; divergem, porém, quanto à forma de solução, ao tempo ou a aspectos dessa resposta.”.
Referida característica importa na dedução pela doutrina de requisitos indispensáveis para os processos estruturais: redefinição do contraditório enquanto direito de influir e participação no processo. Sobre a redefinição da noção de contraditório, leciona Sérgio Cruz Arenhart: O contraditório visto como direito de efetivamente influir no convencimento do juiz, aqui, não pode limitar-se a partes de um conflito abstrato. Exige a participação de toda coletividade, na medida em que a política pública também se destina a toda ela. Logicamente, porém, essa ampla participação de todos os sujeitos individuais que compõem o grupo ou a sociedade como um todo é inviável, o que impõe o emprego de técnicas de representação adequada dos vários interesses em jogo e dos vários segmentos que possam utilmente contribuir para a construção da decisão judicial. Ainda assim, porém, trata-se de uma visão muito mais ampla do que o tradicional dualismo que impregna o processo individual e o processo coletivo tal como praticado hoje em dia.
Sobre a necessidade de participação no processo estrutural não apenas dos núcleos de interesses envolvidos, mas também de especialistas a fim de contribuir com conhecimento técnico necessário para elaborar soluções para o conflito de fundo, o autor prossegue:
As questões típicas dos litígios estruturais envolvem valores amplos da sociedade, no sentido não apenas de que há vários interesses concorrentes em jogo, mas também que a esfera jurídica de vários terceiros pode ser afetada pela decisão judicial. Para a consecução desse objetivo, instrumentos como as audiências públicas e o amicus curiae são fundamentais. Audiências que permitam participação ampla da comunidade envolvida, embora não disciplinadas expressamente nem no CPC, nem na legislação básica a respeito do processo coletivo. Do mesmo modo, é fundamental que o processo seja capaz de absorver a experiência técnica de especialistas no tema objeto da demanda, em que possam contribuir tanto no dimensionamento adequado do problema a ser examinado, como em alternativas à solução da controvérsia.
2.3 Um Procedimento Adequado para o Controle Judicial de Políticas Públicas-Litígios Complexos
A garantia ativa do processo refere-se ao fato de que, diante de uma ilegalidade ou violação de direitos, o indivíduo prejudicado pode utilizar o processo como meio de buscar prevenir ou remediar essa situação. Ou seja, o processo jurisdicional permite que o indivíduo busque a proteção de seus direitos e a reparação de danos.
Por outro lado, o processo jurisdicional também é uma garantia passiva, pois impede a justiça pelas próprias mãos. Ele previne que as pessoas façam justiça de forma unilateral, seja através do exercício arbitrário do poder estatal, seja por ações realizadas por particulares visando a satisfação direta de suas pretensões, sem a devida análise jurídica e imparcialidade.
Assim, o processo jurisdicional desempenha um papel fundamental no Estado de Direito, assegurando a garantia de acesso à justiça, a igualdade das partes perante o tribunal e a imparcialidade na resolução dos conflitos. Além disso, o processo contribui para a pacificação social, evitando a aplicação da força ou da autotutela como forma de solucionar os litígios.
É importante ressaltar que o processo jurisdicional, além de ser uma garantia individual, também possui uma dimensão coletiva, na medida em que promove a efetivação dos direitos fundamentais e a proteção da ordem jurídica como um todo.
Portanto, a garantia do processo jurisdicional como componente essencial do Estado de Direito é uma conquista histórica que assegura a todos o direito a um julgamento justo, a proteção de seus direitos e a manutenção da paz social.
A despeito da reconstrução, por parte da doutrina, de uma base normativa para fundamentar a adoção dos processos estruturais no Brasil, é de suma importância a constatação de que, assim como nos Estados Unidos e na Argentina, as ferramentas dos Processos Estruturais foram introduzidas no Brasil por meio da atuação judicial. Foram os magistrados brasileiros e membros do Ministério Público que, cientes das limitações do processo civil tradicional brasileiro, passaram a adotar medidas e procedimentos que muito se aproximam da ideia de Processo Estrutural. Mais de uma década antes do advento do Código de Processo Civil de 2015, já havia, no Brasil, demandas judiciais que, não obstante não haverem adotado o termo Processo Estrutural, desenvolveram-se de acordo com algumas suas características. A doutrina aponta como um dos mais emblemáticos, o caso que ficou conhecido como Ação Civil Pública do Carvão (ACP do Carvão).160 Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada no ano de 1993161, pelo Ministério Público Federal de Santa Catarina, perante a Justiça Federal de Criciúma, por meio da qual postulou a criação e implementação de plano de recuperação de áreas degradadas pela mineração nos arredores do Município de Criciúma.
No polo passivo havia, inicialmente, 24 réus: a União e empresas mineradoras. A sentença de fundo, prolatada no ano 2000, determinou que os réus apresentassem plano de recuperação da área degradada, contemplando os itens indicados na decisão. Assim como no caso Mendoza, na ACP do Carvão osréusforam condenados a elaborar e apresentar ao juízo plano de recuperação ambiental. 162 Para efetivar a decisão, foram impostas medidas coercitivas e medidas de sub-rogação. Por fim, a decisão também determinou que o Ministério Público Federal deveria opinar sobre o plano de recuperação que seria apresentado pelos réus. A decisão transitou em julgado no ano de 2014 (11 anos depois do ajuizamento da demanda).
Sucede que, o Ministério Público Federal, antevendo a possibilidade de prejuízo pela demora, paralelamente ao trâmite dos recursos, entrou com pedido de cumprimento provisório da sentença. Medida importante contra o risco de ineficácia da decisão pelo decurso do tempo, ou seja, para garantia de uma tutela jurisdicional tempestiva. A complexidade da matéria de fundo exigiu que os provimentos para dar cumprimento à decisão se estruturassem em forma de cascata, divididos em três grandes fases.
A primeira fase foi de 2000 a 2004. Sobre ela, explica Sérgio Cruz Arenhart163, que com as informações disponíveis até o momento, não se tinha a exata noção da dimensão do problema. Também por essa razão, a sentença então prolatada condenada os réus a obrigação genérica de recuperação ambiental. Percebe-se, aqui, a característica mencionada dos Processos Estruturais acerca da dificuldade de antever, de plano, a correta dimensão do problema enfrentado e, consequente, as medidas necessárias para sua solução. Por isso, a primeira fase de execução da decisão na ACP do carvão consistiu na reunião de informações para subsidiar, posteriormente, a adoção de medidas mais concretas.
Na segunda fase, que se desenvolveu entre os anos de 2004 e 2005, as ações foram concentradas na atuação do Ministério Público Federal que, com auxílio de técnicos e especialistas, identificou as partes do programa de recuperação apresentado pelos réus que não condiziam ou a realidade ou não ofereciam soluções adequadas.
Na terceira fase, que vai de 2006 a 2009, os réus foram obrigados a apresentar plano de recuperação de acordo com a padronização e indicadores sugeridos pelo Ministério Público Federal. Foi criado também Grupo de Assessoramento Técnico do Juízo (GTA), composto por especialistas da área ambiental externos ao processo, responsáveis por propor soluções e técnicas para a recuperação ambiental. Sérgio Cruz Arenhart também chama atenção para o fato de que todas as decisões tomadas pelo GTA necessitavam de consenso.164 Observa-se, assim, que ao longo do processo procurou-se, a todo momento, permitir ampla participação daqueles que poderiam contribuir para a construção da decisão. Para conferir publicidade ao cumprimento da decisão, foi também criado, como já mencionado, endereço eletrônico para que a população tivesse fácil acesso às informações do caso e pudesse acompanhar seu cumprimento.
Ainda que não tenha adotado a expressão “Processo Estrutural”, o modo como o caso conhecido como ACP do Carvão se desenvolveu apresenta características que são próprias do Processo Estrutural. Assim como no caso Mendoza, na ACP do Carvão pode ser constatada postura consciente de autocontenção dos magistrados ao determinarem, em um primeiro momento, apenas objetivo a ser alcançado (a recuperação ambiental de área degradada pela ação humana). Aos demandados, ficou a possibilidade de escolha sobre os meios empregados para a consecução dos objetivos. Apenas diante da inércia dos réus ou apresentação de planos em desconformidade com dados objetivos sobre a realidade, que adotaram postura mais ativa ao concretizar suas determinações.
A ACP do Carvão também foi marcada por ampla participação e possibilidade de influência de diversos núcleos de interesse, seja mediante a realização de audiências públicas, oitiva de amicus curiae ou assessoramento técnico ao juízo. Importante destacar também a prospectividade presente no caso: os planos de recuperação têm execução prevista até o ano de 2020. Presentes essas características, é possível concluir que a ACP do Carvão é exemplo de uma das primeiras vezes (talvez a primeira) em que a lógica do Processo Estrutural foi aplicada no Brasil. Por sua vez, Fredie Didier Jr., Hermes Zaneti Jr. e Rafael Alexandria de Oliveira165 indicam que o caso conhecido como Raposa Serra do Sol166 também adotou ferramentas típicas dos processos estruturais, ainda que de maneira não tão ostensiva como ocorreu na ACP do Carvão.
No caso, o Supremo Tribunal Federal fixou condições para a demarcação como área indígena de extensão de terra conhecida como Raposa Serra do Sol. A área foi demarcada pelo Ministério da Justiça, através da Portaria No 820/98, modificada pela Portaria 534/2005.A demarcação foi homologada por decreto da Presidência da República, em 15 de abril de 2005. Não obstante, foi o Supremo Tribunal Federal que fixou diversos requisitos para o exercício dos direitos dos indígenas sobre a terra.
Os autores indicam como outro exemplo de decisão estrutural a proferida no Mandado de Injunção n. 708/DF, no qual o Supremo Tribunal Federal delineou o modo como o direito de greve dos servidores públicos civis deveria ser exercido. Diante da constatação de omissão inconstitucional por parte do Poder Legislativo em regulamentar o exercício do direito de greve previsto na Constituição, o STF determinou qual a regra que deveria ser adotada, no caso, a Lei n. 7.783/89, que regulamenta o direito de greve dos trabalhadores celetistas. Atribui-se, também, a lógica estrutural às decisões proferidas em sede de Medida Cautelar na ADPF 378, por meio das quais foi reconhecido pelo STF o estado de coisas inconstitucional em que se encontra o sistema carcerário brasileiro.
3 CONCLUSÃO
Processo estrutural é aquele em que se veicula um litígio estrutural, pautado num problema estrutural, e em que se pretende alterar esse estado de desconformidade, substituindo-o por um estado de coisas ideal.
O processo estrutural se caracteriza por: (i) pautar-se na discussão sobre um problema estrutural, um estado de coisas ilícito, um estado de desconformidade, ou qualquer outro nome que se queira utilizar para designar uma situação de desconformidade estruturada; (ii) buscar uma transição desse estado de desconformidade para um estado ideal de coisas (uma reestruturação, pois), removendo a situação de desconformidade, mediante decisão de implementação escalonada; (iii) desenvolver-se num procedimento bifásico, que inclua o reconhecimento e a definição do problema estrutural e estabeleça o programa ou projeto de reestruturação que será seguido; (iv) desenvolver-se num procedimento marcado por sua flexibilidade intrínseca, com a possibilidade de adoção de formas atípicas de intervenção de terceiros e de medidas executivas, de alteração do objeto litigioso, de utilização de mecanismos de cooperação judiciária; (v) e pela consensualidade, que abranja inclusive a adaptação do processo (art. 190, CPC). Além disso, o processo estrutural também apresenta algumas características típicas, mas não essenciais: a multipolaridade, a coletividade e a complexidade.
O devido processo legal individual está centrado na proteção dos direitos e interesses das partes envolvidas em um litígio específico, seguindo as regras e procedimentos estabelecidos pela lei. Porém, quando lidamos com conflitos multipolares complexos, o processo tradicional pode ser insuficiente para oferecer soluções adequadas e justas.
Nesse sentido, o devido processo estrutural procura superar a rigidez do processo tradicional, permitindo uma abordagem mais flexível e adaptada às necessidades do caso concreto. Ele reconhece que a multiplicidade de interesses envolvidos requer soluções personalizadas e abrangentes, que vão além da simples aplicação da lei.
No contexto do devido processo estrutural, é importante considerar a equidade como um princípio orientador. A busca pela equidade visa a alcançar uma justa conciliação dos interesses envolvidos, levando em conta não apenas a legalidade, mas também aspectos de justiça social e distribuição equitativa dos direitos e benefícios.
Além disso, o devido processo estrutural enfatiza a participação ativa das partes interessadas no processo. Isso inclui representantes de grupos afetados, especialistas, organizações da sociedade civil e outros atores relevantes. A participação das partes interessadas contribui para a legitimidade e efetividade das soluções propostas, assegurando que as decisões tomadas reflitam as perspectivas e necessidades dos envolvidos.
Por fim, o devido processo estrutural busca soluções abrangentes e duradouras, que vão além da resolução dos litígios individuais. O objetivo é promover mudanças estruturais que previnam a repetição dos mesmos problemas no futuro, garantindo uma tutela adequada dos interesses multipolares envolvidos. Em conclusão, um procedimento adequado para o controle judicial de políticas públicas deve garantir o acesso à justiça, permitir uma análise aprofundada das políticas, promover a transparência e a participação pública, assegurar a deliberação fundamentada das decisões e respeitar os limites constitucionais. Ao estabelecer um processo equilibrado e eficiente, o controle judicial de políticas públicas contribui para a proteção dos direitos fundamentais e para o aprimoramento das políticas implementadas pelo Estado.
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Bacharel em Direito e Analista Jurídica na Defensoria Pública do Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Taisa Emiliano da. O processo estrutural e as respostas aos litígios multipolares complexos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 jun 2023, 04:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/61627/o-processo-estrutural-e-as-respostas-aos-litgios-multipolares-complexos. Acesso em: 26 dez 2024.
Por: ELISA CARDOSO BATISTA
Por: Fernanda Amaral Occhiucci Gonçalves
Por: MARCOS ANTÔNIO DA SILVA OLIVEIRA
Por: mariana oliveira do espirito santo tavares
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