RESUMO: O presente artigo aborda a questão da despenalização da eutanásia ativa e passiva como garantia ao princípio da dignidade da pessoa humana. A vida, nos seus mais diversos aspectos, sempre é tema de discussões, mas e a morte? Para muitos é um tabu, afinal, dizem que se atrai o que se fala e por isso esse assunto é postergado até ser esquecido. A eutanásia é uma prática altruística que visa propiciar a determinadas pessoas acometidas de doença grave, incurável e em estado terminal uma morte digna e indolor. O impasse presente entre direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana quando se pretende positivar essa prática no ordenamento jurídico brasileiro traz à tona uma série de argumentos – mais contra do que a favor, que acabam por negar a aplicabilidade deste instituto. O presente trabalho indica que a eutanásia não pode ser ignorada pelo legislador, e que a garantia a uma morte digna não é contrária ao direito à vida.
Palavras-chaves: Morte; Dignidade; Eutanásia.
ABSTRACT: The decriminalization of active and passive euthanasia as a guarantee of the principle of human dignity. Life in its most diverse aspects is always the subject of discussions, but what about death? For many it is a taboo, after all, they say that what is said is attracted and therefore this subject is postponed until it is forgotten. Euthanasia is an altruistic practice that aims to provide certain people suffering from serious, incurable and terminal illness with a dignified and painless death. The current impasse between fundamental rights and the principle of human dignity when it is intended to make this practice positive in the Brazilian legal system brings up a series of arguments – more against than in favor, which end up denying the applicability of this institute. The present work indicates that euthanasia cannot be ignored by the legislator, and that the guarantee of a dignified death is not contrary to the right to life.
Keywords: Death; Dignity; Euthanasia.
INTRODUÇÃO
Em um verso da música “Do outro lado do rádio”, famosa na voz do cantor Daniel, é dito que: “A vida, mesmo que às vezes sofrida, é tão curta e tão bonita pra não ser vivida”. Mas e se viver traz consigo sofrimento insuportável ocasionado por uma doença sem chance de reversão que prevê a morte como certa e iminente? E se viver significa apenas o prolongamento quantitativo das funções vitais por meio de aparelhos médicos ultramodernos?
A ciência e a medicina avançam a cada dia, no entanto, não há cura ou tratamento medicamentoso e cirúrgico para algumas patologias, e com isso, uma questão ética, jurídica, biológica, religiosa, emana nesse impasse entre a vida e a dor.
A eutanásia é uma palavra de origem grega e significa "boa morte". Consiste em dar uma morte indolor e sem sofrimento a pacientes em estado terminativo, ou cuja recuperação não é possível ante a inexistência de medicamentos, tratamentos ou cirurgias capazes de restabelecer a saúde, tornando a vida excessivamente dolorosa, física e mentalmente.
Muito mais que um fenômeno social, a eutanásia engloba fatores culturais, religiosos, políticos, ideológicos, filosóficos, dentre outros. O falecimento é algo inexorável, e postergar ou evitar o debate é tão grave quanto permitir o sofrimento de outrem.
A discussão jurídica em projetos de lei desta temática no Brasil é polêmica e possui pouco mais de duas décadas, e, em face as mais variadas e divergentes opiniões, não se chegou ainda a um consenso para a permissão de sua prática.
Por se tratar de um assunto inerente a todos os membros da sociedade, as decisões sobre ele por assim tomadas devem pautar pelo equilíbrio entre o conflito gerado entre direitos fundamentais (direito à vida e à autonomia da vontade) e um fundamento que deve orientar toda a República Federativa do Brasil (dignidade da pessoa humana).
O estudo abordado é de extrema relevância e foi escolhido em virtude de uma série de filmes e reportagens jornalísticas veiculadas na televisão, livros e outras obras que retratam a vida e os sentimentos de indivíduos que enxergam na morte eutanástica a melhor solução para o seu problema.
Em termos teóricos o trabalho se baseou em DINIZ (2001), BARROSO (2013) e PESSINI (2004), tendo como resultado uma ampla pesquisa baseada no surgimento da eutanásia e sua evolução no mundo. Abordando, inicialmente, os conceitos de vida e morte. Adiante, acerca da eutanásia, aponta-se sua definição, evolução histórica, modalidades, institutos correlatos, positivação da eutanásia no mundo, e principalmente como os princípios da dignidade humana e da autonomia da vontade atuam neste cenário.
Ademais, destacam-se os projetos de lei sobre a eutanásia e os motivos que devem ser levados em consideração para sua despenalização, motivação que consistiu na parte principal desse trabalho, trazendo à luz os principais projetos de lei que buscou abarcar a eutanásia no Brasil e ao final uma das justificativas para a sua despenalização.
1 O SURGIMENTO DA EUTANÁSIA
Inicialmente cabe adentrar na conceituação da acepção jurídica de vida e morte, antes de abordar a Eutanásia e sua evolução, para que se possa ter um entendimento amplo do tema.
1.1 A vida
O direito à vida é considerado por muitos estudiosos como o mais importante de todos os direitos, visto que para exercer a grande maioria deles é necessário estar vivo. A vigente Constituição Federal de 1988 prevê tal direito no artigo 5°:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida [...].”
O parágrafo 4°, inciso IV, do artigo n. 60, da Constituição Federal, assinala que os direitos e garantias individuais fundamentais (previstos nos 78 incisos do artigo 5°) não serão passíveis de propostas de emenda que tendem a aboli-los, tendo então, recebido o tratamento de cláusula pétrea.
O decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992, assinado pelo então Vice Presidente da República, à época Itamar Franco, determinou no seu artigo 1° que as disposições previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) deverão ser cumpridas inteiramente no território nacional. O artigo 4° da declaração assim infere:
Artigo 4. Direito à vida
1.Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
Destaca-se ainda a doutrina de Uadi Lâmeggo Bulos, que aduz:
Os direitos fundamentais são o conjunto de normas, princípios, prerrogativas, deveres e atributos inerentes à soberania popular que garantem a convivência pacífica, digna, livre e igualitária independente do credo, raça, origem, por condição econômica ou status social.
O douto escritor indica que são características de todos os direitos fundamentais a universalidade, a cumulatividade, a irrenunciabilidade, a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a relatividade.
O marco inicial exato do início da vida humana não foi abordado pelo Magno Texto Federal, ficando a cargo da legislação infraconstitucional, da doutrina e da jurisprudência buscar a resposta para esse acontecimento.
No julgamento da ADI n. 3510/2008 perante o Supremo Tribunal Federal – a mais alta corte de justiça do país, em que se tratava de pesquisas em células troncos embrionárias, o então Ministro Relator Carlos Ayres Britto proferiu que: “não se nega que o início da vida humana só pode coincidir com o preciso instante da fecundação de um óvulo feminino por um espermatozoide masculino”.
Nesse sentido caminha o Código Civil, que em seu artigo 2° prevê: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” Logo, não se exige então a vida extrauterina (fora do útero), ou o nascimento com vida para que se tenha a proteção aos direitos do nascituro.
Quanto à absolutividade do direito à vida, a doutrina é divergente. A professora Maria de Fátima Freire de Sá preleciona que:
Em se tratando do direito à vida, enquanto direito da personalidade, podemos afirmar ser ele um direito absoluto, tão somente por que é oponível erga omnes. A inviolabilidade do direito à vida, garantido pela Constituição da República, implica na proteção da vida contra arbitrariedades de terceiros, porém, não impede a construção da pessoalidade pelo seu titular.
No entanto, o próprio estado impõe, através de seus regramentos, situações em que a vida pode ser sacrificada. No Brasil, por exemplo, ao mesmo em tempo que a vida é um direito fundamental (artigo 5°, caput da CF), há a previsão de que poderá haver pena de morte em caso de guerra declarada (artigo 5°, inciso XLVII, alínea ‘a’ da CF), porém é indiscutível que é uma rara exceção.
1.2 A morte
A morte é uma das poucas certezas universais. Todo ser humano será acometido dela, mais cedo ou mais tarde. Entretanto, além de pouco discutida, ela ainda é tratada como um tabu. Nesse sentido, com razão assinala Blaise Pascal (1622-1663): “os homens, por não terem podido encontrar um remédio para a morte, houveram por bem não pensar nela.”
Determinar a ocorrência da morte é de suma importância, porque a partir dela decorrem várias consequências jurídicas: abertura da sucessão, retirada de órgãos para doação, extinção de contratos personalíssimos, etc.
O Código Civil Brasileiro infere no seu artigo 6º que “a existência da pessoa natural termina com a morte [...]”. Entretanto, o referido código não indica qual espécie de morte de que se refere. A doutrina de Flávio Tartuce expõe:
A lei exige, dessa forma, a morte cerebral (morte real), ou seja, que o cérebro da pessoa pare de funcionar. Isso consta, inclusive, do art. 3° da Lei 9.434/1997, que trata da morte para fins de remoção de órgãos para transplante.
São sábias as palavras escritas sobre a morte por Igor Vinícius Rezende do Amaral em artigo publicado pela Revista Iuris in Mente, abaixo transcritas:
Constata-se, portanto, que a morte, como algo que põe fim a tudo, que rejeita a possibilidade de qualquer outro acontecimento posterior ao seu, é algo que assombra o homem moderno. Ao passo que este vive ensandecido, amante dos prazeres efêmeros que a vida lhe pode proporcionar, fica desnorteado ao mensurar que não mais gozará de qualquer maior deleite terrenal se vier a se encontrar com a morte.
Assim, a morte segue sendo indiretamente temida pelo homem médio, que procura evitar tratá-la com mais profundidade, fazendo com que inexistam discussões acerca de se obter direitos sobre a própria morte do indivíduo, e fazendo com que se torne invisível o princípio da autonomia da vontade, nos casos em que a morte seria deveras melhor para quem está sofrendo por alguma doença terminal, deixando a pessoa por vezes extremamente fragilizada em seus últimos momentos de vida.
1.3 Eutanásia
Derivada do vernáculo grego euthanatos – eu (bom) e thanatos (morte), a palavra eutanásia significa boa morte, morte tranquila, morte fácil e sem dor. A maioria das obras pertinentes atribui o termo ao filósofo inglês Francis Bacon, sendo quem primeiro utilizou o termo, em 1623, na sua obra "Historia vitae et mortis". Nas palavras de Bacon:
O ofício do médico não é somente restaurar a saúde, mas também mitigar as dores e tormentos das enfermidades; e não somente quando tal mitigação da dor (...) ajuda e conduz à recuperação, mas também quando, esvaindo-se toda esperança de recuperação, serve somente para conseguir uma saída da vida mais fácil e equitativa. Em nossos tempos, os médicos fazem questão de escrúpulo e religião estar junto ao paciente quando ele está morrendo (...); devem adquirir habilidades e prestar atenção em como o moribundo pode deixar a vida mais fácil e silenciosamente.
São diversos os posicionamentos e significados que os autores atribuem à eutanásia. Nos dizeres de Fernando Gorriti, seria a eutanásia:
“a faculdade de dar morte sem sofrimentos aos pacientes com doença incurável de evolução fatal e que estejam sofrendo dores físicas intoleráveis e persistentes, incapazes de serem atenuadas por instrumentos médicos.”
Há que se ter cuidado com a definição de eutanásia, eis que cada grupo a par de suas ideologias morais-ético-político-religiosas, podem atribuir diferentes conotações a este instituto. A título de exemplo, sob o aspecto nazista, tal instituto adquiriu traços de eugenia: “eutanásia foi apenas um eufemismo para um programa clandestino de assassinato de deficientes físicos e mentais que viviam em instituições de saúde na Alemanha e nos territórios a ela anexados”. Tem-se aqui um desvirtuamento do sentido literal da palavra, tratando-se claramente de homicídio, em que se sacrificavam os que eram julgados inferiores.
A concepção atual de eutanásia é fortemente influenciada pelo caráter humanístico e piedoso, em relação a doentes com enfermidades incuráveis, em fase terminal e com excessivo sofrimento físico ou emocional, e a seu prévio requerimento.
Todos os requisitos são cumulativos. É importantíssimo ressaltar que a ausência de qualquer um dos requisitos já não configura a eutanásia, podendo se falar em homicídio privilegiado, simples ou qualificado, a depender das circunstâncias fáticas.
Um dos exemplos mais famosos em que foi utilizada a eutanásia que os escritores discorrem é o de Sigmund Freud (1856-1939), considerado por muitos como o pai da psicanálise. Aos 83 anos, Freud já sofria de câncer no maxilar havia 16 anos e foi submetido ao todo, a 33 operações diversas, e suas dores não lhe eram mais suportáveis. Certo dia, conversou com o médico e amigo que lhe tratava há muitos anos, Max Schur, e lhe disse: “Agora minha vida não passa de permanente tortura. Essa tortura não tem mais sentido”. Pouco tempo depois, o médico confessou que lhe injetara dois centigramas de morfina, e reaplicou a dose após doze horas, e Freud caiu em coma e posteriormente faleceu, junto com sua dor.
1.3.1. Espécies de Eutanásia
De acordo com os estudiosos do assunto, a eutanásia possui diversas espécies, dentre elas a ativa, passiva e a duplo-efeito.
Na modalidade ativa ou positiva: “trata-se de uma ação médica pela qual se põe fim a vida de uma pessoa enferma, através do pedido do paciente ou a sua revelia”. Um exemplo clássico é o da aplicação de uma injeção de algum fármaco letal que leva o paciente a óbito em poucos minutos, de modo indolor.
Já a eutanásia passiva, ou ortotanásia (do grego - orthos: normal, natural e thanatos: morte), exige uma omissão do profissional, que, a pedido livre e consciente do paciente ou de seus familiares, deixa de usar alguma terapia médica ou meios artificiais que teriam apenas a função de prolongar a vida do paciente terminal, baseado na inviabilidade física, psicológica ou econômica. Logo, percebe-se que nesta hipótese não há interferência para que a morte aconteça mais depressa, e nem que ele seja postergada, e sim que ela ocorra no seu momento natural.
A Resolução n. 1.805/2006 emitida pelo Conselho Federal de Medicina autorizou a ortotánasia no Brasil:
Na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis é permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal.
Entretanto, o Ministério Público Federal, por meio de Ação Civil Pública, solicitou a declaração de nulidade da referida Resolução em 2007, e teve deferido seu pleito liminarmente. Por 03 anos a Resolução não teve aplicabilidade, quando em 2010, o juiz Roberto Luis Luchi Demo, pela 14ª Vara da Justiça Federal, sediada em Brasília, emitiu sentença onde considerou improcedente o pedido do Ministério Público Federal. Na sentença, o magistrado ponderou que:
A resolução, que regulamenta a possibilidade de o médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, realmente não ofende o ordenamento jurídico posto.
O Código Penal Brasileiro em seu artigo 135 tipifica o crime de omissão de socorro, e este não pode ser confundido com a eutanásia passiva. Conforme os ensinamentos da professora Maria Helena Diniz, a distinção reside no fato de que: “Na omissão de socorro o agente deixa de prestar assistência quando é possível fazê-lo. Na suspensão do tratamento, deixa-se de usar aparelho que prolonga a vida sem condição de reversão.”
Há também a chamada eutanásia duplo-efeito, que geralmente é vista em pacientes acometidos de dores intensas e frequentes, onde lhes são aplicadas doses de morfina ou outras drogas capazes de promover o alívio, por vezes gerando até a perda da consciência. Tem-se como efeito negativo dessa medida a possibilidade de o paciente vir a falecer em virtude da medicação ofertada. Salienta-se que este mal previsível não teria sido diretamente almejado pelo aplicador para sua configuração.
1.3.1.1 Distanásia
A distanásia, obstinação terapêutica ou futilidade médica, consiste no uso desenfreado de modernos e sofisticados aparatos tecnológicos a fim de estender inutilmente o processo de morte, que se mostra inevitável. Os tratamentos oferecidos, quase sempre dolorosos, não trazem benefício algum para o paciente, ao contrário, acarretam ainda mais agonia e sofrimento.
Por vezes os tratamentos experimentados tem seu foco direcionado na tecnociência aplicada, e não na pessoa que padece. O Conselho Federal de Medicina reprova a distanásia, pois deixa-se de lado o bem-estar do paciente e parte-se numa busca desenfreada pela cura de uma enfermidade.
1.3.1.1.1 Mistanásia
A mistanásia, morte infeliz ou eutanásia social, é morte que ocorre fora e antes de seu tempo. Leonardo Martin tece as seguintes considerações sobre a mistanásia:
Dentro da grande categoria de mistanásia quero focalizar três situações: primeiro, a grande massa de doentes e deficientes que, por motivos políticos, sociais e econômicos, não chegam a ser pacientes, pois não conseguem ingressar efetivamente no sistema de atendimento médico; segundo os doentes que conseguem ser pacientes para, em seguida, se tornar vítimas de erro médico e, terceiro, os pacientes que acabam sendo vítimas de má-prática por motivos econômicos, científicos ou sociopolíticos. A mistanásia é uma categoria que nos permite levar a sério o fenômeno da maldade humana.
Com forte incidência principalmente em países subdesenvolvidos, a mistanásia é destaque quase que diariamente nos mais diversos meios jornalísticos brasileiros, em razão de que o SUS – Sistema Único de Saúde, não consegue atender a grande demanda de pacientes que abarrotam os corredores e salas de espera dos hospitais e postos de saúde pelo país.
Parte dos escritores abordam dentro da mistanásia a eutanásia neonatal, quando se referem às crianças que nascem com problemas congênitos e que o tratamento teria custos exorbitantes além de possivelmente serem marginalizados pela sociedade. Argumenta-se nestes casos, que os recursos deveriam ser destinados àqueles que possuem mais chance de sobreviver e tornar-se produtivo para a comunidade. Ou seja, o valor de uma vida seria baseado no custo-benefício a ser observado futuramente.
No ano de 2016, no estado de Mato Grosso, cerca de quarenta e sete pessoas morreram aguardando decisões liminares em processos judiciais para serem atendidas na saúde pública. Ou seja, a morosidade do poder judiciário pode contribuir indiretamente para o aumento dos casos de mistanásia.
1.3.1.1.2 Suicídio assistido
O suicídio assistido é verificado na “hipótese em que a morte advém de ato praticado pelo próprio paciente, orientado ou auxiliado por terceiro ou por médico.” Assim, por exemplo, o médico prescreve a combinação de medicamentos que deve ser ingerido, mas é o paciente que deve consumi-los por seus próprios meios.
A Holanda foi a pioneira na descriminalização do suicídio assistido, em abril de 2002. O direito à assistência não é absoluto, cada país impõe suas condições. Algumas das condições é que não pode ser por motivo egoístico e o solicitante deve residir permanente no país, a exceção fica por conta da Suíça, único lugar no mundo onde um estrangeiro pode optar pelo suicídio assistido.
Atualmente, além da Holanda e Suíça, o suicídio assistido é permitido nos seguintes locais: Bélgica, Luxemburgo, Canadá, Estados Unidos (Oregon, Washington, Vermont, Califórnia).
O suicídio assistido é considerado crime no Brasil, encaixando-se no tipo penal previsto no artigo n. 122 do Código Penal:
Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio
Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:
Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave. Parágrafo único - A pena é duplicada:
Aumento de pena
I - se o crime é praticado por motivo egoístico;
II - se a vítima é menor ou tem diminuída, por qualquer causa, a capacidade de resistência.
Dessa maneira, a depender das circunstancias no caso concreto, o suicídio assistido pode ter aplicação de três espécies penais.
1.4 A Eutanásia no Brasil
O Código Penal Brasileiro não prevê especificamente o crime de eutanásia. De acordo com os acontecimentos, “esta pode se encaixar na previsão de homicídio, do auxílio ao suicídio, ou pode ser atípica.”
Se, após verificado, tratar da prática da eutanásia no seu sentido atual, mesmo que praticada por um médico, será punida a título de homicídio privilegiado e aplicada a causa de diminuição de pena prevista no § 1° do artigo 121 do CP:
Homicídio simples
Art. 121. Matar alguém:
Pena - reclusão, de seis a vinte anos.
Caso de diminuição de pena
§ 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.
O induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio também é punido pelo Código Penal:
Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça: Pena - reclusão, de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.
Desta maneira, também é repreendida a participação material, quando se oferece ou facilita que a vítima venha a retirar a própria vida. Assim, se um médico, sabendo das intenções da pessoa, assina uma receita para que ela adquira barbitúricos e cometa o suicídio, vindo a ocorrer, incorrerá nas penas do auxílio ao suicídio.
2. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA
2.1 Definição de princípio
É corriqueiro que se utilize “princípio” e “valor” como sinônimos, entretanto, ambas possuem significados diferentes e é essencial tal distinção no estudo da principiologia.
Na lição do professor, escritor e jurista Luís Antônio Rizzatto Nunes: “enquanto o valor é sempre um relativo, na medida em que “vale”, isto é, aponta para uma relação, o princípio se impõe como um absoluto, como algo que não comporta qualquer espécie de relativização.” É de se concluir, por oportuno, que o princípio é inerente a todo o ordenamento jurídico, e que o processo legislativo e os aplicadores da lei não podem dele se desviar.
Já o valor é algo que sofre constantes modificações ao longo do tempo, pelas revoluções sociais e intervenção humana e, por isso, não é eficazmente apto a promover segurança jurídica para a maioria.
2.2 A Dignidade da pessoa humana
A dignidade humana tem bases fundadas na filosofia, onde pensadores como Cícero, Pico dela Mirandola e Immanuel Kant constituíram teorias como a do antropocentrismo (corrente filosófica que confere aos seres humanos o papel central e mais significativo no mundo), o valor intrínseco de cada pessoa e a capacidade de ter acesso à razão, de fazer escolhas morais e estabelecer o seu próprio destino.
Grande parte dos estudiosos consideram inestimáveis as contribuições de Imannuel Kant em seu livro “A metafísica dos costumes”, publicado pela primeira vez no ano de 1797. Quanto à dignidade, Kant indica:
A humanidade é ela própria uma dignidade, pois o homem não pode ser usado por nenhum homem (nem pelos outros nem sequer por si mesmo) apenas como meio, mas tem sempre de ser ao mesmo tempo usado como fim, e nisto (a personalidade) consiste propriamente sua dignidade, por meio da qual ele se eleva sobre todos os outros seres do mundo que não são homens e que podem certamente ser usados; e eleva-se, portanto, sobre todas as coisas. Logo, assim como ele não pode alienar-se a si próprio por preço algum (o que seria contrário ao dever de autoestima), do mesmo modo ele não pode agir contra a autoestima igualmente necessária dos outros enquanto homens, isto é, o homem é obrigado a reconhecer praticamente a dignidade da humanidade em todos os outros homens, portanto, radica nele um dever que se refere ao respeito que se tem necessariamente de mostrar por todo outro homem.
O jurista brasileiro e um dos atuais ministros do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso, diante da dificuldade em abarcar toda a variedade das circunstâncias religiosas, históricas e políticas de diversos países, propõe um conteúdo mínimo para a ideia de dignidade humana:
A dignidade humana identifica: 1. O valor intrínseco de todos os seres humanos; assim como 2. A autonomia de cada indivíduo; e 3. Limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário).
De acordo com Barroso o valor intrínseco corresponde às características comuns dos seres humanos que os tornam únicos e especiais, ligados a natureza do ser, e que lhes difere das demais espécies (como inteligência e sensibilidade). Não é dependente de qualquer evento e até mesmo da própria razão “estando presente em bebês recém-nascidos e em pessoas senis ou com qualquer grau de deficiência mental”. No plano jurídico, a dignidade se desdobra numa série de direitos fundamentais, como o direito à vida, a integridade física e psíquica e ao devido processo legal (igualdade perante a lei e na lei).
Quanto à autonomia, Barroso indica ser ela o elemento ético da dignidade. É o fundamento que garante às pessoas o livre exercício para escolher quais regras irão reger suas vidas, seguindo sua autodeterminação conforme os critérios que também lhe sejam convenientes. No entanto, no contexto social, a vontade dos indivíduos sofre inúmeras limitações pelas normas e costumes de cada nação. O autor conclui que certas liberdades de escolhas não podem sofrer interferência, a exemplo de qual profissão se busca seguir.
O terceiro item, valor comunitário, representa o valor social da dignidade, representa que o indivíduo “vive dentro de si mesmo, de uma comunidade e de um Estado.” Portanto, não pode satisfazer tudo o que lhe permite o seu poder de arbítrio. O Estado restringe coercitivamente sua autonomia pessoal tendo em consideração costumes, valores e direitos de outras pessoas tão livres e iguais a ele, com o escopo de possibilitar os mesmos direitos a todos, vivendo harmonicamente.
Na concepção do jusnaturalismo ou direito natural advém a constatação de que uma ordem constitucional que incorpora a ideia da dignidade da pessoa humana parte da premissa de que o homem é detentor de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por todos, inclusive pelo Estado, pela sua simples condição humana.
A religião, durante muitos anos, exerceu massiva influência na construção do pensamento sobre a dignidade humana, especialmente através do frade italiano São Tomás de Aquino, com fundamento no fato do homem ter sido feito à imagem e semelhança de Deus (Bíblia Sagrada - Gênesis 1:26- 27). Entretanto, ao ponto em que foi crescendo a laicização estatal, cada vez mais se questionou esta influência, sob a alegação de que o Estado não deve possuir nenhum tipo de crença, para que assim possa garantir a equidade entre as pessoas. Destarte, várias outras teorias, com enfoque mais jurídico, foram sendo criadas para justificar a utilização de tal princípio, independentemente de cultura e/ou credo.
No Brasil, somente no ano de 1988, com a promulgação de sua sétima Constituição Federal, também chamada de Constituição Cidadã, que a dignidade da pessoa humana foi citada expressamente, sendo um dos fundamentos que norteiam todo o sistema jurisdicional brasileiro, adquirindo, portanto, eficácia, status formal e material, conforme se visualiza no seu artigo 1°, inciso III:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania III -a dignidade da pessoa humana; [..];
A dignidade é um atributo inerente e indissociável de todo ser humano, sem distinções, tornando-o receptor de garantias e proteção do estado, não só contra situações humilhantes ou degradantes, mas também por através do auxílio para que se tenha uma existência honesta.
Conforme o jurista Celso Antonio Pacheco Fiorillo apud Rizzatto Nunes, a dignidade da pessoa humana inicialmente é observada quando assegurados os direitos sociais delineados no art. 6° da Constituição Federal, como saúde e educação.
Destarte, para que o princípio da dignidade da pessoa humana se concretize, faz-se necessário um trabalho de subsunção para adaptá-la ao caso concreto. Tal subsunção é exigida, pois cada ser humano possui características e estão envolvidos em contextos fáticos únicos. O que serve para um, pode não ser aplicável a outro.
Apesar da evidente importância deste fundamento, é necessário que se crie mecanismos para que ele seja efetivado, à razão de que há aqueles que pensam ser a dignidade uma “espécie de enfeite, um valor abstrato de difícil captação”. Se não fosse assim não seria assiduamente noticiado que a fome mata dezenas de milhares de pessoas ao redor do mundo; que, pasme, são realizados leilões de escravos; que pessoas morrem nos corredores de hospitais e postos de saúde, etc.
Por fim, o ministro Luís Roberto Barroso, acerca do modo de interpretação dos princípios, conclui que:
Princípios jurídicos são normas que possuem maior ou menor peso de acordo com as circunstâncias. Mas, em qualquer caso, eles fornecem argumentos que devem ser considerados pelos juízes, e todo princípio exige um compromisso de boa-fé para com a sua realização, na medida em que essa realização seja possível.
Logo, não pode o magistrado desviar-se da utilização dos princípios, buscando sempre aplicá-los de acordo com a possibilidade.
2.3 Princípio da autonomia da vontade
Etimologicamente, a palavra autonomia deriva do vernáculo grego autós (por si mesmo) e nomos (lei), e significa dar lei a si próprio. A definição de autonomia se assemelha ao da liberdade, traduzindo “na qualidade de um indivíduo de tomar suas as próprias decisões, com base na razão”.
O princípio da autonomia da vontade é um dos pilares do direito privado e está presente em diversos ramos do direito, como o direito civil, direito do consumidor, etc.
A Constituição Federal elege como direito fundamental o direito de escolha dos indivíduos no artigo 5°, inciso II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”
Contudo, percebe-se que a autonomia da vontade é limitada, ou seja, a pessoa não pode fazer tudo o que acha conveniente. Por isso, o estado criou limites para que não seja prejudicado o bem-estar social e o convívio harmônico entre os indivíduos da sociedade.
Na lição de Luís Roberto Barroso:
A autonomia é o elemento ético da dignidade humana. É o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. A noção central aqui é a de autodeterminação: uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua vida. Em seção anterior, foi apresentada a concepção kantiana de autonomia, entendida como a vontade orientada pela lei moral (autonomia moral). Nesse tópico, o foco volta -se para a autonomia pessoal, que é valorativamente neutra e significa o livre exercício da vontade por cada pessoa, segundo seus próprios valores, interesses e desejos. A autonomia pressupõe o preenchimento de determinadas condições, como a razão (a capacidade mental de tomar decisões informadas), a independência (a ausência de coerção, de manipulação e de privações essenciais) e a escolha (a existência real de alternativas).
Portanto, a autonomia da vontade significa o ser humano se autogovernar, se autodeterminar, escolher aquilo que deseja ou não fazer ou ser submetido. E, por ser um direito fundamental intrinsecamente previsto em nossa Constituição, merece toda atenção e respeito, bem como amparo de todo o arcabouço jurídico para sua efetivação.
Desse modo: “A escolha pela morte é, na verdade, o próprio exercício do direito à vida. Direito de morrer ou autonomia para morrer, na verdade integram o exercício do direito à vida.” O ser humano tem direito a decidir, por exemplo, a não se submeter a um determinado tratamento ou intervenção cirúrgica. Há um instituto que lhe assegura essa prerrogativa, chamada de testamento vital, que passa-se a analisar a seguir.
2.3.1 Testamento Vital
O testamento, em sua acepção baseada no vigente Código Civil, diz respeito à sucessão, no caso da morte de uma pessoa, que registra um documento indicando como deverá ser distribuído o seu patrimônio, respeitando às exigências legais.
Já o testamento vital tem origem nos Estados Unidos, em 1967, quando Luis Kutner, um advogado de Chicago, propôs um modelo de documento denominado living will no qual o próprio indivíduo protegeria o seu direito individual à morte digna. De acordo com Kutner, tal documento garante que o paciente:
[...] tem o direito de se recusar a ser submetido a tratamento médico cujo objetivo seja, estritamente, prolongar-lhe a vida, quando seu estado clínico for irreversível ou estiver em estado vegetativo sem possibilidade de recobrar suas faculdades, conhecido atualmente como estado vegetativo persistente.
O testamento vital já possui disposições que regulam a matéria em países como Estados Unidos, Portugal, Bélgica, Alemanha, Áustria, Argentina, Espanha, México, Uruguai, além de outros.
O Conselho Federal de Medicina através da Resolução n. 1.995, de 31 de agosto de 2012, que versa sobre diretivas antecipadas de vontade dos pacientes, regulamentou o testamento vital. É um documento em que a pessoa atesta que não deseja se submeter a algum tipo de tratamento que apenas tenha a função de prolongar numericamente a vida caso surja essa eventualidade, e ela não possa de alguma forma manifestar livremente a sua vontade. Assim descreve o artigo 2° da referida resolução:
Art. 2º Nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade.
§ 1º Caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão levadas em consideração pelo médico.
§ 2º O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
§ 3º As diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos dos familiares.
§ 4º O médico registrará, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente.
§ 5º Não sendo conhecidas as diretivas antecipadas de vontade do paciente, nem havendo representante designado, familiares disponíveis ou falta de consenso entre estes, o médico recorrerá ao Comitê de Bioética da instituição, caso exista, ou, na falta deste, à Comissão de Ética Médica do hospital ou ao Conselho Regional e Federal de Medicina para fundamentar sua decisão sobre conflitos éticos, quando entender esta medida necessária e conveniente.
A relação médico e paciente é assim, lastreada por este documento, que, nesse sentido, Maria Helena Diniz nos ensina:
Nas relações médico-paciente, a conduta médica deverá ajustar-se às normas éticas e jurídicas e aos princípios norteadores daquelas relações, que requerem uma tomada de decisão no que atina aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados. Tais princípios são da beneficência e não maleficência, o do respeito à autonomia e ao consentimento livre e esclarecido e o da justiça. Todos eles deverão ser seguidos pelo bom profissional da saúde, para que possa tratar seus pacientes com dignidade, respeitando seus valores, crenças e desejos ao fazer juízos terapêuticos, diagnósticos e prognósticos. Dentro dos princípios bioéticos, o médico deverá desempenhar, na relação com seus pacientes, o papel de consultor, conselheiro e amigo, aplicando os recursos que forem mais adequados.
Por apenas estar previsto através de uma Resolução de um conselho de classe, o testamento vital traz certa insegurança jurídica, visto que não há legislação específica sobre esse instituto, não se sabe ao certo como deve ser elaborado este documento; quem pode fazê-lo; se necessita de testemunhas, se precisa de registro em cartório. Entretanto, o ordenamento jurídico tem atribuído validade a este documento.
A jurisprudência ainda é rasa quanto ao testamento vital no Brasil, contudo, é possível encontrar decisões que asseguraram a eficácia deste documento, conforme abaixo:
APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de pres ervar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013).
(TJ-RS - AC: 70054988266 RS, Relator: Irineu Mariani, Data de Julgamento: 20/11/2013, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/11/2013)
Esta decisão, como se percebe, assegurou a autonomia da vontade do indivíduo quando obedeceu ao requerimento expresso do testamento vital, impedindo a realização de tratamento médico que o paciente negara querer ser submetido.
3. OS PROJETOS DE LEI SOBRE A EUTANÁSIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E OS MOTIVOS PARA DESPENALIZÁ-LA
Conforme abordado anteriormente no capítulo I deste trabalho, o Brasil não possui legislação específica acerca da eutanásia e, com isso, tem-se verificado várias situações do problema que acarreta esta omissão.
Não abordar esta temática só aumenta a insegurança jurídica e abre espaço para decisões esparsas que não promovem a justiça para aqueles que a procuram. É de suma importância que a terminalidade da vida seja debatida, a fim de que ela seja a menos penosa possível, e para isso, a discussão requer ampla participação da sociedade, regada de argumentos que cheguem a um equilíbrio.
3.1 Projeto de Lei do Senado n° 125, de 1996
De autoria do senador à época Gilvam Borges, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) do Amapá, o referido projeto de lei teve como ementa a autorização da prática da eutanásia sem dor em casos específicos.
Em seu pronunciamento no plenário, dia 10 de julho de 1997, o senador reconheceu que o tema é polêmico, mas que se fazia necessário abordar o assunto, visto que tal tema ia ao encontro dos interesses de vários cidadãos.
Na oportunidade, Gilvam Borges apresentou os artigos do projeto, que autorizava a eutanásia nos seguintes termos dispostos nos artigos 2°, 3°, 7° e 8°:
Art. 2º Será permitido o desligamento dos aparelhos que mantenham alguns dos sinais vitais do paciente, caso seja constatada a sua morte cerebral, desde que haja manifestação de vontade deste.
§ 1º A manifestação de vontade do paciente deve ser expressa e obedecerá às normas aplicáveis à manifestação de última vontade.
§ 2º A constatação da morte cerebral deverá ser firmada por Junta Médica, formada por, no mínimo, três profissionais habilitados, sendo que pelo menos um deles deterá o título de especialista em Neurologia ou seu equivalente.
Art. 3º. Será permitido o desligamento dos aparelhos que mantêm alguns dos sinais vitais do paciente, caso seja constatada a sua morte cerebral, desde que haja prévia e expressa manifestação de seus familiares.
§ 1º Para efeito dessa lei, consideram-se familiares os cônjuges, os descendentes, os ascendentes, os colaterais consanguíneos ou não até o terceiro grau.
§ 2º Na ausência de familiares, o juiz poderá, a pedido de médico ou de pessoas que comprovadamente mantêm laços de afetividade com o paciente, suprir a autorização deste.
Art. 7º Será permitida a morte sem dor do paciente em circunstâncias que acarretem sofrimentos físicos ou psíquicos, que, por sua natureza, intensidade e precariedade de prognóstico da evolução da doença não justifiquem a continuidade da assistência médica destinada à conservação de sua existência. § 1º Na hipótese disciplinada por este artigo, a morte sem dor somente poderá ser autorizada por Junta médica formada por, no mínimo, 5 (cinco) médicos, sendo que pelo menos 2 (dois) deles deterão os títulos de especialista ou seu equivalente, na moléstia que acomete o paciente, desde que haja o consentimento prévio e expresso deste.
§ 2º O consentimento prévio e expresso do paciente obedecerá à forma prevista no § 1º do art. 2º.
§ 3º - Caso o paciente esteja impossibilitado de expressar-se, ou não tenha expressado seu consentimento prévio, seus familiares ou pessoas que comprovadamente mantenham laços de afetividade com este, poderão requerer ao Poder Judiciário autorização para consecução da morte sem dor.
Art. 8º Seja no caso de paciente com morte cerebral constatada, seja na hipótese do § 3º do art. 7º, em não havendo a concordância de todos os familiares, qualquer um deles poderá instaurar processo judicial que autorizará ou não a morte sem dor.
Percebe-se que o projeto abarcava somente a prática da eutanásia passiva (desligamento dos aparelhos), e que era necessária a prévia manifestação de vontade do paciente, e não podendo esta existir, a de seus familiares ou com quem mantinha comprovado vínculo afetivo, com a ressalva de que na hipótese de algum familiar discordar do pedido, este poderia instaurar processo judicial.
Apesar do engajamento do Senador Gilvam Borges em explorar o assunto, os doze artigos do PLS n. 125/1996 não prosperaram, tendo sido arquivados pouco tempo depois de sua propositura, no ano de 1999.
Segundo José Roberto Goldim o aludido projeto foi falho em alguns tópicos, tais como: “o estabelecimento de prazos para que o paciente reflita sobre sua decisão, sobre quem será o médico responsável pela realização do procedimento que irá causar a morte do paciente, entre outros itens.”
3.2 O anteprojeto do Código Penal de 1999
O então Ministro da Justiça Iris Rezende nomeou uma comissão com o escopo de criar um anteprojeto para modificação da parte especial do Código Penal.
O anteprojeto acrescentava ao artigo n. 121 normas que versavam sobre a eutanásia ativa e a eutanásia passiva (ortotanásia), a seguir transcritos, respectivamente:
Art. 121 [...] § 3º - Se o autor do crime é cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente, irmão ou pessoa ligada por estreitos laços de afeição à vítima, e agiu por compaixão a pedido desta, imputável e maior de dezoito anos, para abreviar-lhe o sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave e em estado terminal, devidamente diagnosticados. Pena – reclusão de 2 a 5 anos. § 4º- Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial se previamente atestado por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que, haja o consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, do cônjuge, companheiro, ascendente ou irmão.
Da análise do parágrafo 3° do artigo 121, percebe-se que a eutanásia ativa não deixaria de ser considerada crime, apenas teria uma previsão de pena menor que a do homicídio simples (de 6 a 20 anos). A compaixão ou o motivo humanitário do sujeito ativo seriam abrandados por uma causa de redução de pena.
Além disso, só foi definido o caso do paciente que previamente solicitou a eutanásia. Aqueles que não poderiam expressar sua vontade continuariam sendo submetidos a tratamentos até que a morte lhe sobreviesse, já que ninguém poderia tomar esta decisão por ele.
Já o parágrafo 4° trataria de explicitamente descriminalizar a ortotánasia – até então punida como homicídio privilegiado. Essa proposta foi deveras criticada porque além de não definir a prática não estabeleceu critérios mais aprofundados de quando poderia ser utilizada, e por isso, poderia vir a ser manuseada para a consecução de fins egoísticos ou por um motivo torpe, como adiantar o recebimento de uma herança.
3.3 Projeto de Lei do Senado n° 116, de 2000
O senador Gerson Camata, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) do Espírito Santo, apresentou em 25 de Abril de 2000 o citado projeto de lei que pretendia acrescentar dois parágrafos ao art. 121 do Código Penal (Decreto-lei na 2.848, de 7 de dezembro de 1940), com a seguinte redação:
Exclusão de ilicitude
§ 6° Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade, de cônjuge, companheiro, ascendente, descendente ou irmão.
§ 7° A exclusão de ilicitude a que se refere o parágrafo anterior faz referência à renúncia ao excesso terapêutico, e não se aplica se houver omissão de meios terapêuticos ordinários ou dos cuidados normais devidos a um doente, com o fim de causar-lhe a morte.
Assim, a eutanásia passiva ou ortotanásia seria despenalizada em virtude da exclusão de ilicitude proposta.
O projeto transcorreu 05 anos com poucas manifestações, quando por requerimento do Senador José Maranhão, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) da Paraíba, foi deferida a realização de uma Audiência Pública.
Ao assumir cargo no executivo para exercer por seis meses o posto de secretário de Transportes e Obras Públicas do Espírito, houve o término da legislatura de Gerson Camata, e conforme determinava o Regimento Interno do Senado Federal, foram arquivadas todas as proposições em tramitação, exceto as elencadas pelo Regulamento, e o PLS 116 não encontrava-se neste rol. Após retornar ao cargo de Senador, Gerson reuniu a assinatura de 1/3 dos membros da Casa Legislativa e solicitou a reabertura do trâmite de do PLS 116, assim deferido.
Passados quase 04 anos da autorização para realização da Audiência Pública, ela foi então realizada, nos dias 16 e 17 de setembro de 2009, contando com a presença de especialistas em áreas afins à questão para análise da proposta, sendo formada por um advogado, pelo Presidente do Conselho Federal de Medicina, pelo Presidente da União dos Juristas católicos do Rio de Janeiro e por um professor de bioética da Universidade Nacional de Brasília.
Todos os depoimentos dos especialistas mostraram-se favoráveis ao Projeto de Lei e acrescentou o Presidente da União dos Juristas católicos do Rio de Janeiro que não se pode falar em crime nesta hipótese, visto não se figurar ação ou omissão que possa acelerar ou antecipar a morte, e sim evitar o uso de tratamentos ou medicamentos dispendiosos que só prolonguem artificialmente a vida. Ele também sugeriu que o local mais adequado de ser tratado essa proposta seria no capítulo do Código Penal que versa sobre a periclitação da vida e da saúde.
Escolhido pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) para emitir o relatório da Audiência e decisão terminativa sobre a matéria posta sob pauta, o Senador Augusto Botelho, do Partido Democrático Trabalhista (PDT) de Roraima, votou pela constitucionalidade do PLS 116/2000 e salientou que é imprescindível que o Congresso Nacional efetivamente explore e decida sobre a matéria. No mérito, ele acolheu a sugestão de transferir a alteração proposta do Capitulo do Código Penal que trata dos crimes contra a vida para o Capítulo que trata dos crimes de periclitação da vida e da saúde, e que a lei, após aprovada teria vacatio legis de 180 dias, para que os hospitais e profissionais de saúde tomassem conhecimento da norma.
O relatório legislativo foi remetido à CCJC com as emendas suscitadas, e a turma da comissão formada pelos senadores José Maranhão, Bernardo Cabral e Pedro Simon rejeitou o projeto de lei, tendo como argumentos lições de doutrinadores como Nelson Hungria e Renato Flávio Marcão. Alegaram que devido a falibilidade do preciso diagnóstico da morte pode-se aumentar a ocorrência de erros de diagnósticos ou prognósticos; e que o projeto não especifica o sujeito ativo, o que abre espaço que seja feito por qualquer pessoa, e que seria irracional a vida de uma pessoa ser disposta assim desta maneira.
Em face da rejeição pela CCJC e ausência de recurso para a apreciação do plenário, o projeto teve sua tramitação encerrada.
3.4 Projeto de Lei n. 5058/2005
De autoria do Deputado Federal Osmânio Pereira de Oliveira, do Partido Trabalhista Brasileiro de Minas Gerais, em 13 de abril de 2005 foi protocolado o Projeto de Lei n. 5.058, que pretendia regulamentar o art. 226, § 7º, da Constituição Federal, dispondo sobre a inviolabilidade do direito à vida, definindo a eutanásia e a interrupção voluntária da gravidez como crimes hediondos, em qualquer caso.
Na justificação, o Deputado argumentou que o direito à vida deve ser garantido qualquer seja o estágio em que se encontre, e que os idosos e doentes – fragilizados física e mentalmente, por vezes acabam concordando com a antecipação de sua morte para se livrar do sofrimento. Dessa forma aderem a chamada “cultura de morte”, que vem tentando disseminar outros países.
O Deputado cometeu um despautério ao inferir que: “Este Projeto visa a impedir a interferência de países e entidades estrangeiras e internacionais em questões como a defesa da vida [...]”. Se assim fosse, a Organização das Nações Unidas, por exemplo, ao longo dos anos faz campanha para que seus países signatários extingam a pena capital, não teria êxito. Recentemente, a ONU divulgou que 170 das 193 nações que a integram aboliram a prática.
O projeto não prosperou pela falta de apoio e foi remetido ao arquivo no dia 22 de fevereiro de 2008, também devido ao fim da legislatura do Deputado, conforme prescreve o Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
3.5 Projeto de Lei do Senado n. 236/2012 – Anteprojeto do novo Código Penal
De autoria do Senador José Sarney, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) do Amapá, foi apresentado em 09 de julho de 2012 na Casa do Poder Legislativo Federal o Projeto de Lei n. 236 que almejava a reforma do Código Penal.
O senador José Sarney designou a um seleto grupo de juristas, magistrados e procuradores presidido pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, a incumbência de elaborar o anteprojeto do novo Código Penal. Vigente por quase 80 anos, o atual Código não teve grandes inovações em seu conteúdo, inovando a matéria na maior parte por meio de leis específicas, com a Lei de Drogas e Lei Maria da Penha.
O anteprojeto está organizado em mais de 500 artigos, ante os 361 do atual Código Penal. Conforme o relator, grande parte dos artigos decorre da incorporação ao texto de aproximadamente 130 leis que abordam temas penais de forma autônoma. Na prática, quase toda a chamada legislação extravagante foi transposta para o anteprojeto. Também foi absorvida a parte de crimes de leis abrangentes, como Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e dos Adolescentes.
O senador Pedro Taques, do Partido Democrático Trabalhista (PDT) de Mato Grosso, que requereu a criação da comissão de juristas, justificou que:
Nosso código (penal) de 1940 faz parte da anatomia do Estado de 1937, que veio ao mundo por meio de Constituição não democrática. Hoje vivemos em novo Estado. A Constituição cidadã de 1988 não pode conviver com um código de 1940.
O projeto traz várias propostas polêmicas e encontra resistência por parte da bancada evangélica no Congresso Nacional. Uma das maiores novidades é o tratamento específico que normatiza a eutanásia ativa e passiva (ortotanásia):
Eutanásia
Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável e maior, a seu pedido, para abreviar - lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave: Pena - Prisão, de dois a quatro anos.
§1º. O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.
§ 2º. "Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge ou irmão.
Desta maneira, a proposta indica que preenchidos os requisitos exigidos: a) matar por piedade ou compaixão; b) que a pessoa esteja em pleno uso de suas faculdades mentais e seja maior de 18 anos; c) que haja requerimento anterior; d) em razão de sofrimento ocasionado por doença grave, a pena prevista é menor que a do homicídio simples (de 6 a 12 anos). A eutanásia ativa não deixa de ser tida como crime, permanece como fato típico, ilícito e culpável.
O parágrafo 1° ensina que a pena poderá deixar de ser aplicada sob as circunstâncias do caso e a relação de parentesco. A inaplicabilidade da pena revela-se verdadeira anistia, prevista no art. 107, II, do Código Penal como uma das causas de extinção da punibilidade. Na conceituação do professor Fernando Capez anistia é “lei penal de efeito retroativo que retira as consequências de alguns crimes já praticados, promovendo o seu esquecimento jurídico.”
Já o parágrafo 2º, assim como o PLS 125/1996, opina pela exclusão de tipicidade da eutanásia passiva, que como dito anteriormente, é aquela em que se deixa de utilizar terapias recomendadas e interrompe quaisquer ações que objetivam tão somente prolongar a vida. A proposta novamente é criticada porque não indica quem poderá interromper o uso dos meios artificiais, só apresenta que dois médicos atestem previamente a irreversibilidade da doença e a morte iminente, deixando assim por dizer que qualquer pessoa poderá fazê-lo.
Como se percebe esta proposta do anteprojeto do Novo Código Penal referente à eutanásia é inovadora, além de que coloca no centro do debate até quando a vida, como bem juridicamente tutelado, deve ser prolongada sem ferir a dignidade. A morte, como evento indissociável a todo ser humano, não pode ser desprezada em relação ao conceito absoluto do direito à vida quando se depara com situações de enfermidades graves ou incuráveis que trazem consigo sofrimento físico e mental incalculáveis.
3.6 O conflito entre direitos fundamentais e o superprincípio da dignidade da pessoa humana
É sabido que a Carta Magna consagra em seu artigo 60, § 4°, IV, que não será objeto de deliberação a proposta de emenda à Constituição tendente a abolir os direitos e garantias individuais, inscritos no artigo 5° do mesmo diploma, além de em outros artigos esparsos.
De posse desse preceito, há correntes interpretativas do direito que entendem que a garantia da inviolabilidade do direito à vida implica na absoluta indisponibilidade desse direito, inclusive por parte do seu titular, ou de seus representantes legais. E com isso, qualquer ideia que versa sobre a eutanásia seria sumariamente inconstitucional.
Por outro lado, a mesma Constituição Federal, conforme abordado no capítulo I deste trabalho, atribui especial hierarquia a dignidade da pessoa humana em seu artigo 1º, inciso III, instituindo-a como fundamento de todo o seu ordenamento jurídico. Mais do que um fundamento, grande parte da doutrina a considera como um “superprincípio”. Nas palavras de Flávia Piovesan:
Assim, seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz do Direito Constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade. A dignidade humana simboliza, desse modo, verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido.
Diante disso, normatizar a eutanásia assim como fez a Holanda em lei específica não pode ser confundido com violar o direito à vida, pois o que se busca é dialogar sobre a morte, para que esta aconteça da forma menos dolorosa e degradante possível àquele paciente em estado terminal que sofre de doença grave ou incurável. Da mesma forma que a pessoa tem direito a dignidade durante a vida, esta não pode ser negada no seu processo de morte. Corrobora nesse sentido o posicionamento do professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
A inabolibilidade, todavia, não deve ser igualada a intocabilidade (intangibilidade). Ou seja, a inabolibilidade proíbe que se suprima o direito, ou seu conteúdo essencial, não veda que seu regime (ou seja, suas condições de exercício, limites etc.) seja modificado (por emenda constitucional). Realmente, abolir é suprimir, eliminar, nunca significa nada mudar.
Destarte, a garantia do direito a uma morte digna não significa limitar o direito à vida, mas permitir que a pessoa tenha o direito de escolha.
3.7 Exemplo prático: caso de José Humberto Pires de Campos Filho
No final de novembro de 2017 foi noticiado em diversas plataformas de comunicação o caso do jovem José Humberto Pires de Campos Filho, que acometido de uma doença renal crônica, recusa-se a continuar com as sessões de hemodiálise.
A mãe de José Humberto, discordando da decisão do filho, solicitou ao Tribunal de Justiça de Goiás e foi parcialmente atendida para interditá-lo e nomeá-la como sua curadora, a fim de que pudesse levá-lo às sessões de hemodiálise, não sendo permitido o uso da força ou de sedativos.
Em entrevista de vídeo o jovem afirma saber acerca do tratamento renal disponível e do transplante de rim, mas veemente infere que não quer seguir com as sessões de hemodiálise, por serem muito doloridas, e que, tomando essa decisão, tem ciência de que a morte lhe será iminente.
O impasse que se vislumbra é que o livre arbítrio de José está sendo cerceado. O depoimento do jovem retrata como ele se sentia em relação aos procedimentos a que foi submetido:
É um tratamento insuportável, contínuo. E não tem cura, será pelo resto da vida. Sinto muita dor, passo muito mal, saio da máquina super debilitado. Não quero isso para minha vida. Não compensa viver assim. É melhor que seja do meu jeito. Vou brigar por esse direito.
Depreende-se que José não deseja a sua morte, apenas foi acometido de uma doença por razão que lhe foge o alcance, e não quer sujeitar-se ao tratamento médico paliativo doloroso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A eutanásia, apesar de já ser praticada há alguns séculos, ainda não possui um consenso doutrinário e positivo da matéria no mundo. Por envolver um direito tão importante - a vida, e a depender da ótica utilizada, receber diferente tratamento e valoração, essa discussão ainda está longe de terminar.
As nações consideradas desenvolvidas, como Holanda e Bélgica, já deram passos significativos nessa questão. Conforme a humanidade evolui, cada vez mais rápido, surgem novas hipóteses, situações a serem abrangidas e o debate, que não deixa de ser polêmico, precisa fluir com mais naturalidade e encontrar soluções.
O Brasil, conforme exposto, apresenta avanços tímidos nesta seara. Atualmente, pune-se a morte por eutanásia ativa como homicídio privilegiado; aplica à ortotanásia as penas de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, à exceção dos poucos que tomam conhecimento e se beneficiam da Resolução n.1.805/2006, do Conselho Federal de Medicina. E apesar da existência do testamento vital por meio de outra resolução do Conselho Federal de Medicina (n. 1995/2012), ainda não há sua disciplina legal, o que não garante a sua total eficácia e exigibilidade.
Isso pode se dar porque a classe política é dividida em conservadores, religiosos, moralistas, positivistas, empresários etc., e tratar sobre o tema da eutanásia pode comprometer sua relação com os demais políticos, eleitores ou correligionários.
O Anteprojeto do Código Penal é sim um avanço, mas ainda não despenalizará a eutanásia – como fez a Holanda, caso respeitados os requisitos exigidos em lei, pois deixa a critério do juiz aplicar ou não a reprimenda dependendo do caso. O paciente que dela necessitar, ainda ficará ciente de que a pessoa que lhe ajudou a ter uma morte digna poderá ser processada, julgada, condenada e presa. Não há segurança jurídica.
Pode-se afirmar que o estudo desse tema exigiu muita reflexão e dedicação, entretanto, muito proveitoso e enriquecedor, possibilitando novas descobertas e motivações para continuidade e aprofundamento do tema, pois ainda existem muitas questões que não foram abordadas. Não se pretende de forma alguma encerrar o debate, mas sim suscitá-lo cada vez mais, para que quem sabe a sua onipresença e o tempo possam torná-lo não um tabu ou algo a se evitar, mas sim em um diálogo repleto de ideias e argumentos que venham a contribuir para o homem a lidar com sua inevitável finitude, especialmente nos casos em que seja sua vontade antecipá-la.
REFERÊNCIAS
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ALMEIDA, Cleomar. À espera de uma morte 'digna', jovem decide abandonar 'dor' do tratamento. Disponível em: http:// www1.folha.uol. com. br/ cotidiano/ 2017/ 11/ 1939409 - a-espera- de-uma-morte-digna-jovem- decide- abandonar- dor-do-tratamento. shtml. Acesso em 04 de setembro de 2023.
ASFOR, Ana Paula. Do início da personalidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518- 4862, Teresina, ano18, n.3629, 8 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/ artigos/ 24650/do-inicio-da- personalidade-civil.
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BERNARDO, André. O tabu do suicídio assistido no Brasil: morte digna ou crime contra a vida? Disponível em: http://www.bbc. com/portuguese/brasil- 38988772. Acesso em 04 de setembro de 2023.
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Bacharel em Direito pelo Centro Universitário da Grande Dourados. Pós-graduada em Direitos Humanos pela Faculdade CERS. Assessora jurídica na Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Cinthia de Oliveira. A eutanásia pela ótica do princípio da dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 set 2023, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63164/a-eutansia-pela-tica-do-princpio-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 23 dez 2024.
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