Resumo: Este artigo busca, inicialmente, analisar se o direito ao acesso à justiça, previsto no artigo 5°, inciso XXXV, da Constituição Federal, integra o conceito de direito ao mínimo existencial. A motivação para este estudo surge da observação de que, mesmo com a Defensoria Pública sendo reconhecida como instrumento garantidor do acesso à justiça, a efetividade desse direito é comprometida diante de um Poder Judiciário que nem sempre age em consonância com os princípios desse direito fundamental. No cotidiano, é comum encontrar exigências formais excessivas por parte de juízes, o que compromete a concretização do acesso à justiça. A pesquisa aborda a evolução do conteúdo do direito ao acesso à justiça até os dias atuais, bem como as obrigações do Poder Público para assegurar um acesso à justiça gratuito e integral. Para além da visão que enfatiza o fortalecimento das Defensorias Públicas, o texto destaca a importância de uma formação apropriada para os magistrados, de modo que o processo judicial seja visto como uma ferramenta a serviço das pessoas mais vulneráveis que buscam a reparação de seus direitos, especialmente os fundamentais. Assim, considera-se o acesso à justiça como parte integrante do mínimo existencial. Nessa linha, o artigo visa contribuir para o debate sobre a inadmissibilidade de que formalismos ou a falta de certos documentos de identificação sejam utilizados como empecilhos, por quaisquer agentes do sistema de justiça, tanto para a apresentação de demandas quanto para a garantia de uma tutela jurisdicional eficaz. A ideia central é ressaltar a necessidade de uma atuação coordenada para assegurar, em última análise, o direito ao acesso à justiça.
Palavras-chave: Acesso à justiça. Direito ao mínimo existência. Tutela jurisdicional efetiva.
Abstract: This article initially seeks to analyze whether the right to access to justice, provided for in Article 5, item XXXV, of the Federal Constitution, integrates the concept of the right to the existential minimum. The motivation for this study arises from the observation that, even with the Public Defender's Office recognized as a guaranteeing instrument of access to justice, the effectiveness of this right is compromised in the face of a Judiciary that does not always act in line with the principles of this fundamental right. In everyday life, it is common to encounter excessive formal demands by judges, which hinders the realization of access to justice. The research addresses the evolution of the content of the right to access to justice up to the present day, as well as the obligations of the Public Power to ensure free and comprehensive access to justice. Beyond the view that emphasizes the strengthening of the Public Defender's Offices, the text highlights the importance of appropriate training for judges, so that the judicial process is seen as a tool at the service of the most vulnerable people seeking to assert their rights, especially the fundamental ones. Thus, access to justice is considered an integral part of the existential minimum. In this regard, the article aims to contribute to the debate on the inadmissibility of formalisms or the lack of certain identification documents being used as obstacles, by any agents of the justice system, both for presenting demands and for ensuring effective judicial protection. The central idea is to emphasize the need for coordinated action to ensure, ultimately, the right to access to justice.
Keywords: Access to justice. Right to the existential minimum. Effective judicial protection.
1. Introdução
Uma situação frequentemente encontrada no atendimento aos usuários da Defensoria Pública é a ausência de documentos civis de identificação, de certidões registrais atualizadas, de correspondências postais em seu nome, de contas bancárias que atestem sua movimentação financeira, dentre outros documentos frequentemente solicitados para o ajuizamento de ações. A perspectiva de alguns juízes é que a ausência desses documentos configura um obstáculo instransponível, levando ao indeferimento da petição inicial se tais documentos não forem providenciados durante a emenda à exordial. Embora essa postura possa encontrar amparo no art. 321 do Código de Processo Civil, é preciso considerar que o art. 319, §2°, do mesmo diploma, estabelece que a falta de certas informações ou dados pessoais não deve justificar o indeferimento da inicial se a obtenção destes se mostrou impossível ou excessivamente onerosa.
Certamente, os motivos para não possuir tais documentos são diversos e, muitas vezes, não podem ser solucionados pelos próprios demandantes. Nesse cenário, o exercício da jurisdição demanda muito mais que simples conhecimentos processuais. Requer, sim, uma maior consciência pelos magistrados da realidade social desses cidadãos.
A título de exemplo, a falta de comprovante de residência é, frequentemente, consequência da precariedade do próprio direito à moradia. É bastante comum a existência de pessoas que alugam “barracos de fundo” sem a formalização de contrato de locação. Há famílias que residem em assentamentos que não são servidos pelo serviço postal. Existem pessoas desempregadas que nem sequer possuem residência fixa, passando temporadas em situação de rua.
Assim, indivíduos em situação de extrema vulnerabilidade muitas vezes são preteridos e não conseguem obter a tutela jurisdicional em decorrência da própria situação de vulnerabilidade social e econômica em que se encontram.
Este trabalho foca na indiferença com que se portam alguns magistrados diante da realidade social e material das pessoas que buscam justiça, exigindo formalismos excessivos que culminam por obstar a efetivação do direito ao acesso à justiça.
Desse modo, apesar do papel crucial da Defensoria Pública em garantir o acesso à justiça para pessoas que são vítimas de diversas situações de vulnerabilidade, a instituição frequentemente enfrenta exigências excessivas e formalidades por parte de magistrados, que se tornam obstáculos intransponíveis para muitos, circunstância incompatível com a atual concepção acerca do direito ao acesso à justiça.
Neste trabalho, devido ao próprio desconforto com tal situação, buscar-se-á evidenciar como a indiferença dos magistrados à realidade social e material das pessoas que demandam naquela jurisdição tem impedido a efetivação do direito ao acesso à justiça, circunstância essa incompatível com a atual concepção sobre o direito ao acesso à justiça.
Nesse contexto, reconhece-se o papel da Defensoria Pública como instrumento capaz de garantir o acesso à justiça para pessoas vítimas de diversas situações de vulnerabilidade, ao prestar o serviço público de assistência jurídica integral e gratuita. Contudo, essa instituição enfrenta como obstáculo diário, na efetivação do direito ao acesso à justiça das pessoas vulneráveis, exigências e formalismos pelos magistrados, que se mostram intransponíveis para esses indivíduos, impedindo-os de exercerem seu direito de acesso à justiça.
Assim, no decorrer deste trabalho, desenvolve-se a ideia de que, ainda que seja garantido o direito à assistência jurídica integral e gratuita com o fortalecimento das Defensoria Públicas, enquanto os magistrados se apresentarem indiferentes às realidades e diferenças materiais e sociais dos litigantes que buscam o Poder Judiciário, o direito o acesso à justiça sempre estará prejudicado. Em outros termos, magistrados que impedem o prosseguimento de uma demanda por excessos de formalidades, em vez de estarem atuando na efetivação de direito fundamentais, estarão violando-os.
Em verdade, formalismos e exigências pelo Poder judiciário (e aqui, refere-se a magistrado no âmbito da primeira instância) se apresentam como a violação sistemática ao direito de acesso à justiça. Como uma alternativa, defender-se-á que o direito ao acesso à justiça é um componente do mínimo existencial, razão pela qual os magistrados devem necessariamente compreender que pessoas em situação de vulnerabilidade não devem encontrar óbices à tutela jurisdicional simplesmente pela sua própria situação, seja de exclusão digital, ausência de documentos civis, documentos públicos atualizados, ausência de residência fixa ou comprovante de residência.
À luz dessa premissa, neste trabalho, a partir do entendimento de que o acesso à justiça integra o conteúdo do mínimo existencial, demonstrar-se-á que a situação acima se apresenta como ilegítima e não podem prejudicar o exercício do direito à justiça, sendo certo que é conteúdo do direito ao acesso à justiça a obtenção de uma tutela jurisdicional efetiva, célere e justa. Nas palavras da professora Maria Tereza Aina Sadek, “o direito de acesso à justiça só se efetiva quando a porta de entrada permite que se vislumbre e se alcança a porta de saída em um período de tempo razoável” [1].
Para tanto, inicialmente, tratar-se-á da evolução do conceito do direito ao acesso à justiça, em seguida do como o conteúdo do mínimo existencial e sua capacidade de impedir negativas ilegítimas no direito de todo cidadão de buscar à justiça ante uma violação ou lesão a um direito; e, por fim, o papel dos magistrados na garantia desse direito, especialmente das pessoas vulneráveis.
2. O direito fundamental ao acesso à justiça
Ao final da década de 70, uma concepção instrumentalista do processo ganha força a ensejar que, ao lado dos estudos formalistas de institutos, procedimentos e os provimentos judiciais, surja uma análise do processo como instrumento capaz de garantir a efetivação dos direitos.
Com paradigmas métodos da sociológica, Mauro Cappelletti, da Universitá degli Studi di Firenze e do Instituto Universitário Europeu, é um percussor desse modelo de pesquisa e movimento global, cujo principal objetivo foi examinar a instrumentalidade do processo com vistas a garantir o acesso à justiça. Nesse contexto, surge o processo Projeto Florença, que, sob a presidência do aludido professor, examinou o acesso à justiça em cinco continentes e, ao final, produziu o Relatório Geral, intitulado Acesso à Justiça[2].
Os estudos, partindo da concepção de que, apesar das dificuldades de conceituar o direito ao aceso à justiça, estabelecem que a sua efetivação não pode ser meramente simbólica devido às transformações que sofrem em relação ao seu conteúdo. Por essa razão, exige-se necessariamente uma reforma nas instituições jurídicas e nos procedimentos judiciais. Assim, Mauro Cappelletti e Bryan Garth defendem que o acesso à justiça possui duas finalidades: a primeira, o sistema deve ser acessível a todos e, segunda, o sistema deve produzir resultados que sejam individual e socialmente justos[3].
Os autores fazem uma vinculação direta entre a transformação do conceito de acesso à justiça com a consolidação de direitos sociais, que exigem necessariamente uma atuação instrumental do processo. Ou seja, o processo tem funções e impactos sociais[4]. Nesse sentido, afirmam:
O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretende garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística.[5]
Nessa linha, o Projeto Florença desenvolvido pelos autores evidenciou que a efetivação desse direito encontra barreiras de várias ordens, tendo, assim, delineadas em ondas que devem ser superadas. Em breves linhas gerais, a primeira onda consiste na garantia de assistência jurídica para os pobres; a segunda onda caracteriza-se pela tutela dos interesses difusos; e, por fim, a terceira onda manifesta-se na consolidação de mecanismos de alternativos de solução de conflitos. Acrescente-se ainda que os autores chamaram atenção para a existência de uma inter-relação entre essas barreiras na efetivação do direito ao acesso à justiça[6].
Na busca de tentar compreender o direito ao acesso à justiça a partir da sua conceituação, diversos autores brasileiros têm explorado as suas dimensões, sobretudo ressaltando a sua amplitude. A título de exemplo, o professor de Direito Processual brasileiro Kazuo Watanabe propõe uma visão ampliada do acesso à justiça que inclui também a prevenção de litígios. Para Watanabe, o acesso à justiça não se limita à resolução de conflitos, mas também à sua prevenção e à promoção de uma cultura de paz e cooperação[7].
Nessa mesma linha, a professora Ada Pellegrini Grinover ensina que o acesso à justiça deve ser entendido em um sentido amplo, abrangendo não apenas o acesso ao Judiciário, mas também aos mecanismos alternativos de resolução de conflitos, como a mediação e a arbitragem[8].
Luis Roberto Barroso afirma que o direito ao acesso à justiça não envolve apenas o acesso aos tribunais, mas também a garantia de que os direitos sejam efetivamente respeitados e assegurados. Isso inclui o direito a um julgamento justo, a um processo eficaz e a uma decisão em tempo razoável[9].
Interessante destacar, ainda, a concepção do jurista Fábio Konder Comparato ao defender que o acesso à justiça deve ser visto como um direito social básico, relacionado diretamente com a dignidade da pessoa humana. Para ele, a efetivação do acesso à justiça depende de um sistema de justiça acessível, eficiente e que assegure a igualdade das partes[10].
De igual modo, é também possível extrair a sua dimensão de direito instrumental, no sentido de que é por meio dele que pessoas excluídas socialmente e economicamente podem reivindicar direitos perante o Poder Judiciário, exigindo-se a dimensão positiva[11] dos direitos fundamentais.
Nesse sentido, expõe Sadek que “o acesso à justiça é um direito primordial. Sem ele nenhum dos demais direitos se realiza. Assim qualquer ameaça ao acesso à justiça impõe sérios danos aos preceitos da igualdade e à prevalência da lei”.[12]
A Suprema Corte tem enfatizado a importância do acesso à justiça em suas decisões, dando interpretações extensivas a esse conceito, a fim de garantir sua efetividade. O STF tem reconhecido que o acesso à justiça não se limita apenas ao ingresso em juízo, mas inclui também a garantia de um procedimento efetivo e justo.
Nesse sentido, no RE 581.947[13], o STF decidiu que as taxas judiciárias elevadas podem ser consideradas como uma violação ao direito de acesso à justiça. O Tribunal concluiu que as taxas judiciárias devem ser razoáveis, para que não se tornem um obstáculo ao acesso ao sistema judiciário.
O Supremo Tribunal Federal, em consonância com o processo civil do Estado Constitucional, tem o compromisso da Suprema Corte em garantir a efetivação do direito de acesso à justiça, interpretando de maneira ampla e robusta os preceitos constitucionais que possuem vinculação direta ao direito ao acesso à justiça.
O principal artigo que comprova que o direito ao acesso à justiça é um direito fundamental explícito na Constituição Federal é o art. 5°, inciso LXXIV, ao preceituar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, denominado também como princípio da inafastabilidade de jurisdição. A principal consequência desse direito é a possibilidade de qualquer questão ser levada para a apreciação do Poder Judiciário[14].
Já o art. 5°, inciso LXXIV, da CF, ao dizer que o Estado prestará assistência jurídica e integral aos hipossuficientes econômicos, também possui vinculação direita com o direito ao acesso à justiça, na medida em que, em um Estado Democrático de Direito, os cidadãos menos favorecidos economicamente (muitas estando nessa situação decorrente de uma decisão política) não podem ser impedidos da prestação jurisdicional, razão pela qual também pode-se afirmar que o direito à assistência jurídica e integral também é um consectário do direito ao acesso à justiça.
2.1. Uma defesa à substancialidade do direito ao acesso à justiça
Não obstante a relevância desse enfoque instrumental do direito ao acesso à justiça (direito-meio), essa concepção, ao mesmo tempo que mostra a capacidade desse direito ser utilizado como instrumento para efetivação de outros direitos fundamentais, também apresenta a limitação de considerá-lo apenas como a porta de entrada ao Poder Judiciário, desconsiderando o fato de que o próprio Poder Judiciário, muitas vezes, não está preparado para lidar com as demandas cujos demandantes pertencem a estratos sociais em situação de vulnerabilidade social.
Defende-se, assim, que o acesso à justiça, além dessa dimensão instrumental de efetivação de outros direitos, deve ser considerado como um direito substancial. Essa concepção substancial do direito ao acesso à justiça demanda um debate acerca das reformas necessárias no próprio Poder Judiciário para que este esteja apto a lidar com as demandas dessas pessoas mais vulneráveis. Tal adaptação implica humanização nos atendimentos, sensibilidade e reconhecimento das realidades e situações vivenciadas por esses jurisdicionados.
A substancialidade do direito ao acesso à justiça requer práticas de desburocratização dos procedimentos, simplificação na resolução de conflitos que prescindem de dilação probatória, a obrigação de utilizar uma linguagem acessível, clara e simples e uma postura proativa ao fornecer explicações ao jurisdicionado sobre o procedimento em curso ou o sentido de determinado pronunciamento. Não é raro que as pessoas com baixas escolaridade participem de audiências sem compreender completamente sua liturgia e as decisões tomadas.
Em essência, a dimensão substancial visa eliminar a exclusão e a marginalização dos estratos sociais mais desfavorecidos, assegurando-lhes a condição de sujeitos de direitos, ao facilitar tanto a sua compreensão quanto a chance de serem compreendidos no contexto do Judiciário. Dessa forma, torna-se possível oferecer um espaço democrático e plural para todas as classes sociais na afirmação de seus direitos fundamentais.
A propósito, afirma Watanabe, ao tratar dos elementos que compõem o acesso à justiça:
São seus elementos constitutivos: a) o direito de acesso à Justiça é fundamentalmente, direito de acesso à ordem jurídica justa; b) são dados elementares desse direito: (1) o direito à informação e perfeito conhecimento do direito substancial e à organização de pesquisa permanente a cargo de especialistas e ostentada à aferição constante da adequação entre a ordem jurídica e a realidade socioeconômica do país; (2) direito de acesso à justiça adequadamente organizada e formada por juízes inseridos na realidade social e comprometidos com o objetivo de realização da ordem jurídica justa; (3) direito à preordenação dos instrumentos processuais capazes de promover a efetiva tutela de direitos; (4) direito à remoção de todos os obstáculos que se anteponham ao acesso efetivo à Justiça com tais características[15].
Portanto, não é suficiente que o acesso à justiça seja apenas um instrumento para a efetivação de outros direitos fundamentais, permitindo a apreciação de controvérsias pelo Poder Judiciário. Deve-se também compreendê-lo como um direito que, intrinsecamente, molda o Poder Judiciário para torná-lo mais apto ao atendimento das pessoas mais vulneráveis.
3. A dignidade da pessoa humana
A Constituição Federal trouxe a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil no art. 3°, inciso III.
André Ramos Tavares aponta, citando outros autores, as razões para que a dignidade não tenha sido inserida no rol exemplificativo dos direitos fundamentais do art. 5° da Constituição Federal:
Parece que o objetivo principal da inserção do princípio em tela na Constituição foi fazer com que a pessoa seja, como bem anota JORGE MIRANDA, “fundamento e fim da sociedade”, porque não pode sê-lo o Estado, que nas palavras de ATALIBA NOGUEIRA é “um meio e não um fim”, e um meio que deve ter como finalidade, dentre outras, a preservação da dignidade do Homem. Nesse sentido também FERNANDO FERREIRA DOS SANTOS, ao acentuar que ‘importa concluir que o Estado existe em função de todas as pessoas e não estas em função do Estado. Não só o Estado, mas, consectário lógico, o próprio Direito’”.[16]
Quando tratamos de dignidade, uma das fundamentações que embasa seu entendimento contemporâneo está nas reflexões de Kant. Ele defendia que o valor do ser humano deriva de sua dignidade inerente, diferentemente dos objetos, que têm um preço e podem ser substituídos por algo equivalente:
Ora digo eu: - O homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe como um fim em si mesmo, não só como meio para uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. (...) Os seres cuja existência depende, não em verdade da nossa vontade, mas da natureza tem contudo, se são seres irracionais, apenas um valor relativo como meios e se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer como algo que não pode empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita todo o arbítrio (e é um objeto do respeito). Estes não são, portanto, meros fins subjetivo cuja existência tenha para nós um valor como efeito da nossa ação, mas sim fins objetivos, quer dizer cuja existência é em si mesma um fim, e um fim tal que não se pode pôr nenhum outro em relação ao qual essas coisas servissem apenas como meios; porque de outro modo nada em parte alguma se encontraria que tivesse valor absoluto; mas se todo o valor fosse condicional, e por conseguinte contingente, em parte alguma poderia encontrar um princípio prático supremo para a razão[17].
No Brasil, apesar das dificuldades em definir a dignidade humana, diversos autores têm se debruçado sobre o conteúdo da dignidade humana. Ingo Wolfgang Sarlet, por exemplo, desenvolveu uma importante definição para a dignidade da pessoa humana:
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.[18]
Para Virgílio Afonso da Silva[19], a dignidade da pessoa humana é o núcleo de todos os direitos fundamentais e impõe restrições ao poder estatal. Já, Daniel Sarmento[20] argumenta que a dignidade humana possui um conteúdo material que se expressa, entre outras formas, na proteção de um mínimo existencial e no reconhecimento e promoção da autonomia individual.
Por fim, em relação aos doutrinadores brasileiro, cabe destacar a concepção de Flávia Piovesan que diz que a dignidade da pessoa humana é o fundamento e o fim dos direitos humanos[21].
Nessa mesma linha, o Supremo Tribunal Federal, em diversos precedentes históricos, se valeu da dignidade humana, utilizando-a como base interpretativa e de efetivação de direitos e garantias constitucionais. Vale a pena citar alguns desses precedentes mais relevantes:
Em 2008, na ADI 3.510, em que a Corte declarou a constitucionalidade da Lei de Biossegurança, que permite a pesquisa e a utilização de célula-tronco, o princípio da dignidade da pessoa humana foi utilizado para argumentar no sentido que as pesquisas significam, ao contrário de violação ao direito à vida, a celebração solidária da vida, na medida em que beneficiam milhares de pessoas que sofrem de doenças graves, ao ter a possibilidade de exercer concretamente os direitos à felicidade e do viver com dignidade[22].
No julgamento da ADI 4.277 e da ADPF 132 em 2011, que tratava acerca do reconhecimento da união estável para casais do mesmo sexo, o STF reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, ampliando a definição tradicional de família e reforçando o princípio da dignidade da pessoa humana. A decisão baseou-se na ideia de que a proibição do reconhecimento de tais uniões violaria os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da não discriminação[23].
Na mesma linha, em 2012, ao julgar a ADPF 186/DF acerca da constitucionalidade das cotas para o acesso à universidade, lançou mão do princípio da dignidade humana para depreender que as políticas afirmativas são imprescindíveis para corrigir desigualdades históricas[24].
Como se pode observar, o princípio da dignidade é o vetor interpretativo central da Constituição Federal, assim como de toda a ordem jurídica, desempenhando um papel crucial na efetivação de direitos fundamentais.
Entretanto, além dessa perspectiva, a dignidade humana apresenta também um viés positivo. Luis Roberto Barroso[25] destaca essa multidimensionalidade, assinalando que o conceito não se limita à proibição de tratamento degradante. Ele impõe ao Estado o dever de adotar medidas que assegurem condições de vida adequadas. Para Barroso, a dignidade da pessoa humana está no cerne de todos os direitos fundamentais e é o pilar central do sistema constitucional. Nesse contexto, insere-se o direito ao mínimo existencial, que será explorado no próximo tópico.
3.1. O direito ao mínimo existencial como consectário da dignidade da pessoa humana
Considerando que a dignidade humana é um valor intangível, o mínimo existencial, enquanto manifestação concreta desse princípio, deve igualmente ser reconhecido como um direito fundamental. Isso se justifica pelo entendimento de que, sem um patamar básico de sobrevivência e inserção social, a dignidade da pessoa humana fica comprometida.
A valorização do mínimo existencial como um postulado fundamental, oriundo da dignidade da pessoa humana, fundamenta-se na ideia de que, para serem reconhecidos como membros plenos, iguais e livres da sociedade, todos os indivíduos devem ter garantidas suas necessidades essenciais. Ademais, o mínimo existencial configura-se como condição sine qua non para a concretização de outros direitos fundamentais e para a consagração da justiça social.
Nesse sentido, André Tavares afirma que:
O mínimo existencial consiste no conjunto de direitos cuja concretização é imprescindível para promover condições adequadas de existência digna, assegurando o direito geral de liberdade e os direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à saúde, o direito à previdência e assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação, entre outros. [26]
Para Robert Alexy[27], o mínimo existencial é um direito fundamental inviolável, diretamente vinculado ao princípio da dignidade humana. Em sua visão, o mínimo existencial se refere às condições básicas de uma vida digna e autônoma, incluindo alimentação, abrigo, cuidados de saúde e educação.
Ingo Wolfgang Sarlet[28] entende que o mínimo existencial é um direito derivado da dignidade humana e deve ser garantido pelo Estado. No entanto, ele adverte que o conceito de mínimo existencial não deve ser usado para justificar a redução de direitos sociais e econômicos a um nível básico e insuficiente.
Por sua vez, o Luís Roberto Barroso[29] defende que o mínimo existencial é um direito fundamental e uma condição prévia para o exercício de outros direitos fundamentais. Para Barroso, o mínimo existencial inclui o acesso a condições básicas de sobrevivência, mas também a serviços públicos essenciais, como educação e saúde.
Celso Antônio Bandeira de Mello[30] argumenta que o mínimo existencial é um núcleo indissociável e intangível dos direitos sociais. Ele postula que este mínimo existencial deve ser garantido a todos, independentemente de condições econômicas, como um pré-requisito para a efetivação da dignidade humana.
Para Daniel Sarmento[31], o mínimo existencial se trata de um conceito multifacetado que abrange não apenas necessidades físicas básicas, mas também o acesso a direitos culturais e educacionais. Ele defende que as necessidades humanas básicas vão além da mera sobrevivência física, englobando também aspectos psicológicos e sociais.
Como se observa, todos os autores acima referidos concordam que o mínimo existencial é um direito fundamental vinculado à dignidade humana. No entanto, a há interpretações variadas relativas ao conteúdo do mínimo existencial e em como ele deve ser garantido. Essas diferenças refletem o debate mais amplo na doutrina jurídica sobre a natureza e o alcance dos direitos sociais e econômicos
Não obstante essa discussão, é correto afirmar que a defesa do mínimo existencial como princípio fundamental alinha-se ao propósito de promover a justiça social. Isso se justifica no entendimento de que todo cidadão deve ter direito a uma vida digna, independentemente de sua condição econômica.
No entanto, deve-se considerar que, mesmo diante das discussões doutrinárias, determinar precisamente quais direitos integram o mínimo existencial não deveria ser o foco central deste instituto. Isso porque as variáveis sociais e políticas que influenciam o cenário prático onde o debate ocorre orientam fortemente a atuação do Judiciário.
Além disso, qualquer tentativa de estipulação prévia limita a adaptabilidade do sistema, impedindo que outros direitos, que eventualmente precisem ser reconhecidos como parte do mínimo existencial, sejam incorporados.
De todo modo, o que é certo é que o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a importância do princípio do mínimo existencial em vários de seus julgamentos. Um exemplo emblemático foi o julgamento do RE 858075/RJ, em que o Tribunal afirmou que o direito à saúde (art. 196 da Constituição Federal), integrante do "mínimo existencial", não pode ser limitado em face de restrições orçamentárias do Estado. Na decisão, o STF sustentou que a concretização do mínimo existencial, incluindo o acesso à saúde, constitui elemento irredutível a ser preservado em favor de todos os cidadãos, destacando que o direito à saúde representa consequência constitucional indissociável do direito à vida[32].
De igual modo, no RE 607.381, o Supremo, ao discutir a respeito da responsabilidade solidária dos entes federativos no fornecimento de medicamento, reafirmou a que, quando estiver em risco o mínimo existencial do indivíduo, não é possível falar em reserva do possível, sob pena de comprometer a própria dignidade da pessoa humana[33].
Por fim, para concluir a referência aos julgados do STF, na ACO 1472, ficou estabelecido que a efetivação de direitos sociais, tais como saúde e educação, não pode ocorrer de maneira a comprometer seu núcleo essencial. Tal entendimento evidencia a ideia de que, mesmo em situações de restrição de recursos, o Estado tem o dever de assegurar o mínimo indispensável para a preservação da dignidade humana[34].
A partir dos julgados mencionados, pode-se deduzir que uma característica primordial para um direito integrar o mínimo existencial é que o Estado não pode alegar falta de recursos orçamentários como justificativa para não concretizar tanto direitos fundamentais quanto políticas públicas essenciais à garantia desses mesmos direitos.
Percebe-se, assim, que o conceito de mínimo existencial também representa uma mudança de paradigma na postura do Poder Judiciário ao abordar a judicialização dos direitos fundamentais sociais e das políticas públicas. Tal mudança questiona o princípio da separação dos poderes com o objetivo de assegurar a efetivação dos direitos fundamentais.
A propósito, Daniel Sarmento afirma que:
“Até então, o discurso predominante na nossa doutrina e jurisprudência era o de que os direitos sociais constitucionalmente consagrados não passavam de normas programáticas, o que impedia que servissem de fundamento para a exigência em juízo de prestações positivas do Estado. As intervenções judiciais neste campo eram raríssimas, prevalecendo uma leitura mais ortodoxa do princípio da separação de poderes, que via como intromissões indevidas do Judiciário na seara própria do Legislativo e do Executivo as decisões que implicassem controle sobre as políticas públicas voltadas à efetivação dos direitos sociais. Hoje, no entanto, este panorama se inverteu. Em todo o país, tornaram-se frequentes as decisões judiciais determinando a entrega de prestações materiais aos jurisdicionados relacionadas a direitos sociais constitucionalmente positivados. Trata-se de uma mudança altamente positiva, que deve ser celebrada. Atualmente, pode-se dizer que o Poder Judiciário brasileiro ‘leva a sério’ os direitos sociais, tratando-os como autênticos direitos fundamentais, e a via judicial parece ter sido definitivamente incorporada ao arsenal dos instrumentos à disposição dos cidadãos para a luta em prol da inclusão social e da garantia da vida digna.[35]
Em síntese, os direitos fundamentais abarcados pelo conceito de mínimo existencial não podem ser preteridos com base em justificativas estritamente orçamentárias, como a invocação da reserva do possível. Da mesma forma, não se deve recorrer a outros princípios jurídicos apenas com a intenção de manter-se inativo, abstendo-se de garantir ou consolidar um direito fundamental. Contudo, é essencial não negligenciar as inerentes dificuldades e desafios na realização dos direitos sociais e na execução de políticas públicas.
Sob essa ótica, será demonstrado a seguir que, assim como muitas vezes os Poderes Executivo e Judiciário são compelidos a agir em face de uma infração a algum direito fundamental inerente ao mínimo existencial, o próprio Poder Judiciário deve superar obstáculos formais para assegurar o acesso à justiça, uma vez que este também é parte integrante do mínimo existencial.
3.2. O acesso à justiça como componente do mínimo existencial
Nesse último tópico, pretende-se delinear que, embora o acesso à justiça possa ser conceituado como um direito-meio ou um direito-garantia, ele é intrínseco ao mínimo existencial. O principal objetivo dessa argumentação é evidenciar que o Poder Judiciário necessita estar alinhado e reestruturado com magistrados que tenham profunda consciência social acerca das adversidades enfrentadas pelas populações mais vulneráveis e desfavorecidas da sociedade.
Para tanto, inicialmente, cite-se a seguinte afirmação do professor Mauro Cappelletti no livro, “Processo, Ideologias e Sociedade”:
(...) L’egalité (igualdade) tal como nos figurou até o surgimento, em nosso século, do Estado Social, significa essencialmente a abolição de diferenças jurídico-formais de status: “igualdade de todos perante a lei". Mas como observava, agudamente, há vários decênios, um insigne sociólogo, ‘quanto mais o rico e o pobre são retratados sobre a base das mesmas regras jurídicas, tanto mais se acentua a vantagem do rico’. Aquela concepção de igualdade, se contemplado o aspecto jurídico-formal, de nenhuma maneira referia-se, em troca, ao aspecto econômico-social e, ‘de fato’, à própria igualdade; quer dizer que dita concepção descuidava o fato de que sobre o caminho do acesso à lei – e às instituições, aos benefícios, aos direitos pela mesma regulados – encontram, usualmente, barreira de índole diversas, que são mais ou menos graves na medida das diferentes capacidades econômicas sociais dos distintos indivíduos e grupos. Por exemplo, se é certo que as portas dos tribunais estão formalmente abertas igualmente para todos, não é menos certo que tal acesso é bem diverso para quem tenha uma informação suficiente sobre os seus direitos, que possa fazer-se representar por um bom advogado, e tenha a possibilidade de esperar os resultados a miúdos tardios dos processos jurisdicionais, do quem para quem careça de tais requisitos econômicos -culturais”. [36]
Assim sendo, é possível argumentar que, mesmo após os progressos pós-Constituição de 1988 no que concerne à oferta de assistência jurídica integral e gratuita, as pessoas em situação de vulnerabilidade ainda enfrentam obstáculos significativos para acessar plenamente a justiça.
Tal situação se deve, em parte, ao fato de que todo o sistema judiciário e as normas jurídicas, conforme elucidado pelo Projeto Florença, foram concebidos e adaptados para proteger os interesses das classes economicamente dominantes. Simultaneamente, como Marcelo Neves destaca ao discutir o conceito de "cidadania inexistente", existem indivíduos que, embora sejam excluídos do acesso aos direitos, encontram-se incorporados no ordenamento jurídico devido a processos repressivos, fenômeno este que ele denomina de subintegração e sobreintegração[37].
Diante desse contexto e partindo da premissa de que uma característica distintiva do direito ao mínimo existencial é demandar uma postura proativa dos demais Poderes, rejeitando acomodações baseadas em argumentações meramente retóricas e procrastinatórias, entende-se que certas atitudes de magistrados devem ser refutadas por estarem em desacordo com o direito fundamental ao acesso à justiça, que é intrínseco ao mínimo existencial.
Esta afirmação destaca, acima de tudo, que o acesso à justiça, enquanto componente do mínimo existencial, não deve ser visto meramente como um direito-garantia ou um direito-meio, cujo único propósito é possibilitar o acesso ao Poder Judiciário. Em vez disso, deve-se enfatizar sua capacidade de inspirar mudanças nas atitudes e padrões comportamentais dos membros do Poder Judiciário, especialmente quando estão diante de demandas envolvendo pessoas em situação de vulnerabilidade.
Para que o acesso à justiça das pessoas vulneráveis seja efetivado, é essencial que o Poder Judiciário adote práticas humanistas, demonstrando consciência social e um entendimento profundo da realidade vivida por essas pessoas. Em termos simples, é necessário que o Poder Judiciário atue com empatia. Contudo, na prática, frequentemente observa-se que muitos magistrados, por estarem excessivamente apegados às formalidades, não reconhecem que o processo, o procedimento e até a decisão final podem não ser suficientes para aliviar o sofrimento de alguém decorrente de uma violação de direitos. Para tais magistrados, o caso pode ser apenas mais um na contabilidade de seu cartório, uma prestação jurisdicional que, no final das contas, não cumpre seu propósito primordial.
Nesse sentido, como bem pontuam Dinamarco e Lopes:
Do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (Const., art. 5°, inc. XXV ) era tradicionalmente extraído um mero direito de ingresso em juízo, um direito de demandar sem qualquer referência a predicados da tutela jurisdicional ou a eventuais óbices ilegítimos a sua concessão – ou, em outras palavras, nesse princípio costumavam os processualistas brasileiros identificar a garantia constitucional da ação. A consciência instrumentalista, a caracterização do processo como um instrumento ético e a necessidade de visualizar a atividade jurisdicional pela ótica dos consumidores dos serviços jurisdicionais (processo civil de resultados – supra n. 5) etc. vieram porém a determinar uma substancial alteração na identificação do conteúdo e do modo de ser desse princípio.
Atualmente, além de uma garantia de mero ingresso no Poder Judiciário com suas pretensões em busca de reconhecimento e satisfação, aquele dispositivo constitucional representa a garantia de outorga, a quem tiver razão, de uma tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva (Kazuo Watanabe), além de impedir a imposição de óbices ilegítimos à concessão da tutela eventualmente devida (...). (grifos no original)[38]
Tomando como exemplo ações de alimentos ligadas ao poder familiar, em certas ocasiões, o magistrado exige insistentemente que o comprovante de residência do representante legal (muitas vezes, a mãe) esteja em seu nome. Nesses casos, não se aceita uma declaração de residência escrita de próprio punho, resultando no indeferimento da petição inicial.
O que se observa aqui é um magistrado desconectado da realidade social e econômica da área onde atua. Tal postura ignora que em áreas mais precárias, como favelas, muitas mães solteiras não possuem imóveis em seu nome. Muitas vivem em alugueis, ou em pequenas construções providas por familiares nos fundos de terrenos. Muitas dessas mulheres não têm vínculos jurídicos formais, como contratos de telefonia pós-paga ou cartões de crédito, que poderiam lhes fornecer um comprovante de residência. A realidade diária delas é focada na sobrevivência juntamente com seus filhos.
Tais obstáculos, ao invés de assegurar o direito de muitas crianças receberem alimentos de forma rápida e eficaz, principalmente quando suas vidas estão em risco, apenas demonstram que o Poder Judiciário falha em fornecer uma tutela jurisdicional adequada. É evidente que empecilhos procedimentais e excessos de formalismos estão distantes de representar um verdadeiro acesso à justiça.
Por isso, a concepção do mínimo existencial, frequentemente evocada pelo Poder Judiciário para influenciar e moldar a conduta da Administração Pública, deve também ser internalizada pelo sistema judiciário como um todo. Este princípio serve como base para assegurar o direito fundamental ao acesso à justiça.
Nesse contexto, vale ressaltar os esforços do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para enfrentar os desafios de tornar o Poder Judiciário mais acessível às populações vulneráveis. Em 2021, o CNJ estabeleceu, por meio da Resolução n. 425, a Política Nacional de Atenção às Pessoas em Situação de Rua e suas Interseccionalidades.
Em conclusão, mesmo com a presença da Defensoria Pública como mecanismo para assegurar que todas as pessoas vulneráveis tenham acesso à prestação jurisdicional, se as instâncias do Poder Judiciário não estiverem sintonizadas com a realidade social destes grupos, o acesso à justiça dessas pessoas continuará sendo constantemente comprometido.
4. Conclusão
O conceito de acesso à justiça é fundamental para a concretização de um sistema de justiça genuinamente equitativo e inclusivo. Nesse contexto, é possível utilizar os princípios do direito ao mínimo existencial para assegurar não apenas o acesso ao Poder Judiciário por parte das pessoas vulneráveis – por meio da oferta de assistência jurídica integral e gratuita e de Defensorias Públicas bem estruturadas –, mas também para promover um Poder Judiciário sensível à realidade e às demandas desses indivíduos. Em outras palavras, é imperativo um Judiciário que esteja atento às necessidades daqueles setores da sociedade que não têm condições de cumprir com formalidades excessivas para alcançar uma tutela jurídica efetiva.
Referências
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[1] SADEK, Maria T. A. Acesso à justiça: um direito e seus obstáculos. In: Revista USP, São Paulo, n. 101, p. 55-56, março a maio de 2014. Disponível em: https://www.direitorp.usp.br/wp-content/uploads/2021/04/Maria-Tereza-Sadek.pdf.
[2] PAULA, Leandro W. de. Governança judicial e acesso à justiça. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação. Universidade de São Paulo. São Paulo, p. 37-40
[3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Nortfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio, Fabris, 1988, p. 8.
[4] Ibidem, p. 10.
[5] Ibidem, p. 12.
[6] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Nortfleet. Porto Alegre: Sérgio Antônio, Fabris, 1988.
[7] WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.
[8] GRINOVER, Ada P. Os princípios constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
[9] BARROSO, Luís R. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2016.
[10] COMPARATO, Fábio K. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2001.
[11] Nesse sentido, o Ministro Celso de Mello consigna que: “STF, considerada a dimensão política da jurisdição constitucional outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais, que se identificam – enquanto direitos de segunda geração – com as liberdades positivas, reais ou concretas (RTJ 164/158-161, rel. min. Celso de Mello). É que, se assim não for, restarão comprometidas a integridade e a eficácia da própria Constituição, por efeito de violação negativa do estatuto constitucional motivada por inaceitável inércia governamental no adimplemento de prestações positivas impostas ao poder público” (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário n°482.611, Relator Min. Celso de Mello, decisão monocrática, DJe 07/04/2010)
[12] SADEK, Maria T. A. Acesso à justiça: um direito e seus obstáculos. In: Revista USP, São Paulo, n. 101, p. 55-56, março a maior de 2014. Disponível em: https://www.direitorp.usp.br/wp-content/uploads/2021/04/Maria-Tereza-Sadek.pdf.
[13] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n.º 581.947/RO. Relator Min. Eros Grau. Tribunal Pleno, DJe 27/08/2010.
[14] A propósito, José Afonso da Silva diz que: “A primeira garantia que o texto revela é a de que cabe ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição, pois sequer se admite mais o contencioso administrativo que estava previsto na Constituição revogada. A segunda garantia consiste no direito de invocar a atividade jurisdicional sempre que se tenha como lesado ou simplesmente ameaçado um direito, individual ou não, pois a Constituição já não mais o qualifica de individual, no que andou bem, porquanto a interpretação sempre fora a de que o texto anterior já amparava direitos, p. ex., de pessoas jurídicas ou de outras instituições ou entidades não individuais, e agora hão de levar-se em conta os direitos coletivos também. (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. ed., rev. e atualizada. São Paulo: Malheiros, 2016).
[15] WATANABE, Kazuo. Acesso à Justiça e Sociedade Moderna. In: GRINOVER, Ada Pelegrini. Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.
[16] TAVARES, André R. Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 441.
[17] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafisica e costumes. Edições 70, 2005, p. 68
[18] SARLET, Ingo. W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 60.
[19] SILVA, Virgílio. A. Direitos Fundamentais: Conteúdo Essencial, Restrições e Efetividade. 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.
[20] SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: Conteúdo, Trajetórias e Metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[21] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
[22] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n.º 3.510/DF. Relator Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. DJe 28/05/2010.
[23] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade n.º 4.277/DF. Relator Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. DJe 14/10/2011; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 132/RJ. Relator Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. DJe 14/10/2011.
[24] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186, Relator Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno. DJe 20/10/2014;
[25] BARROSO, Luís R. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
[26] TAVARES, André R. Curso de Direitos Humanos. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p 80.
[27] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
[28] SARLET, Ingo. W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011
[29] Barroso, Luís R. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012.
[30] BANDEIRA DE MELLO, Celso A. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 33ª ed. 2017.
[31] SARMENTO, Daniel. Dignidade da Pessoa Humana: Conteúdo, Trajetórias e Metodologia. 2. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2017.
[32] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 858075/RJ, Relator Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 25/08/2021.
[33] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 607.381/SC, Relator Min. Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 17/06/2011.
[34] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Civil Originário 1.472/PA, Relator Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, DJe 18/09/2017.
[35] SARMENTO, Daniel. Reserva do possível e Mínimo existencial. In: Comentários à Constituição Federal de 1988, coord. Paulo Bonavides, Jorge Miranda e Walber de Moura. GenForense: 2009, p. 371.
[36] CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, Ed., 2008, p. 386.
[37] Marcelo Neves pontua que os subintegrados na sociedade, apesar de não terem acesso aos benefícios do ordenamento jurídico, estão sumetidos radicamente à estrutura punitiva estatal, de modo que os direitos fundamentais não moldam a sua forma de viver, além de verificar que as principais ofensas aos direitos fundamentais são praticadas pelos aparelhos estatais repressivos. Do outro lado, há os sobreintegrados que utilizará a Constituição “como uma oferta que, conforme a eventual constelação de interesses, será usada e desusada ou abusada”, tendo como principal traço a impunidade. Cf. NEVES, Marcelo. Entre Subintegração e Sobreintegração: a cidadania inexistente. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, p. 253-276, 1994.
[38] DINAMARCO, Cândido Rangel; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do novo processo civil. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 54-55.
Pós-graduanda em Direito Processual Civil pela Faculdade Cers, graduada em Direito pela Universidade de Brasília e Analista da Defensoria Pública do Distrito Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ROCHA, LAURIANE MATOS DA. O acesso à justiça como componente do mínimo existencial Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 out 2023, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63491/o-acesso-justia-como-componente-do-mnimo-existencial. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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