Resumo: Em que pese a expressa previsão legal acerca da irrevogabilidade da adoção, o presente trabalho aborda os entendimentos recentes proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça, nos quais se flexibilizou a regra em prol das especificidades do caso concreto. A avaliação destas hipóteses, perpassa pela análise do conceito contemporâneo de família e das previsões contidas no Estatuto da Criança e do Adolescente sobre o instituto da adoção.
Palavras-chave: adoção – desistência – irrevogabilidade – exceção.
keyword: Despite the express legal provision regarding the irrevocability of adoption, this work addresses the recent understandings given by the Superior Court of Justice, in which the rule was made more flexible in favor of the specificities of the specific case. The evaluation of these hypotheses involves the analysis of the contemporary concept of family and the predictions contained in the Statute of Children and Adolescents regarding the institution of adoption.
Keywords: adoption – withdrawal – irrevocability – exception.
Sumário: Introdução; 1. Contexto histórico; 2. A concepção contemporânea da família. 3. Da adoção: 3.1. Conceito; 3.2. Efeitos. 4. Da irrevogabilidade da adoção. 5. Hipóteses em que o STJ admitiu a revogabilidade da adoção. 5.1. Adoção unilateral, no interesse do adotado. 5.2. Rescisão da sentença fundamentada em vício de consentimento do adotado. 5.3. Desistência de adoção, durante o estágio de convivência, por motivo de foro íntimo. Conclusão. 7. Referências bibliográficas.
Introdução
O presente artigo visa analisar recentes decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) que adotaram a possibilidade de revogabilidade do instituto da adoção, indo de encontro à regra legal de irrevogabilidade.
1. Contexto histórico
Para compreender a interpretação realizada pelo Superior Tribunal de Justiça, é relevante um breve apanhado do contexto histórico do instituto da adoção.
Inicialmente prevista pelo Código Civil de 1916[1] como faculdade aos adotantes que não tivessem filhos, o vínculo de parentesco era meramente civil e criado apenas entre o adotante e o adotado, mediante escritura pública. Intitulada de “adoção simples”, permitia a adoção de maiores ou menores de idade, assim como admitia a sua revogação:
Art. 373. O adotado, quando menor, ou interdito, poderá desligar-se da adoção no ano imediato ao em que cessar a interdição, ou a menoridade.
Art. 374. Também se dissolve o vínculo da adoção:
I - quando as duas partes convierem;
II - quando o adotado cometer ingratidão contra o adotante
A judicialização foi introduzida pela figura da “legitimação adotiva”, prevista na Lei n.º 4.655/1965[2], na qual se dispôs sobre a sua irrevogabilidade e a cessação do vínculo de parentesco com a família natural. Ainda, ampliou o vínculo de parentesco, condicionou-o ao consentimento dos ascendentes.
Art. 7º A legitimação adotiva é irrevogável, ainda que aos adotantes venham a nascer filhos legítimos, aos quais estão equiparados os legitimados adotivos, com os mesmos direitos e deveres estabelecidos em lei.
(...)
Art. 9º O legitimado adotivo tem os mesmos direitos e deveres do filho legítimo, salvo no caso de sucessão, se concorrer com filho legítimo superveniente à adoção (Cód. Civ. § 2º do art. 1.605).
§ 1º O vínculo da adoção se estende à família dos legitimantes, quando os seus ascendentes derem adesão ao ato que o consagrou.
§ 2º Com a adoção, cessam os direitos e obrigações oriundos da relação de parentesco do adotado com a família de origem. (grifo nosso)
Posteriormente, foi substituída pelo Código de Menores (Lei n.º 6.697/1979[3]) que passou a prever a “adoção plena”, responsável por ampliar o parentesco à família dos adotantes, abrangendo o parentesco dos avós, de forma automática, independentemente de consentimento[4].
Art. 37. A adoção plena é irrevogável, ainda que aos adotantes venham a nascer filhos, as quais estão equiparados os adotados, com os mesmos direitos e deveres.
Alterando profundamente a perspectiva da ação, a Constituição Federal de 1988, consagrou o princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, prevendo no artigo 227, § 6º, da CR, iguais direitos e qualificações aos filhos, proibindo quaisquer designações discriminatórias.
Seguindo as lições de Maria Berenice Dias:
Inverteu-se o enfoque dado à infância e à adolescência, rompendo a ideologia do assistencialismo e da institucionalização, que privilegiava o interesse e a vontade dos adultos. A adoção significa muito mais a busca de uma família para uma criança do que a busca de uma criança para uma família.
A adoção não é uma paternidade de segunda classe, mas se prefigura como a paternidade do futuro, enraizada no exercício da liberdade. A filiação não é um dado da natureza, mas uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem[5].
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em adequação à doutrina da proteção integral, passou a disciplinar a adoção em face das crianças e dos adolescentes (arts. 39 e seguintes, da Lei nº 8.069/1990), determinando o rompimento de todos os laços familiares anteriores.
Ademais, conforme previsão do art. 1.619 do Código Civil de 2002, a adoção de maiores de dezoito anos, assim como em relação aos incapazes, passou a depender de decisão judicial, aplicando-se, no que couber, as regras gerais do ECA.
Em controle de convencionalidade, destacam-se a Convenção de Haia (Convenção Relativa à Proteção das Crianças e à Cooperação em Matéria de Adoção Internacional), internalizada no ordenamento brasileiro por meio do Decreto n.º 3.087/1999, e a Convenção sobre os Direitos da Criança.
2. A concepção contemporânea da família.
A família deve ser compreendida como o espaço de realização da afetividade e da solidariedade.
A família antes vista como instituição, passou a ser compreendida, mormente em face do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da solidariedade, como decorrência da afetividade. O afeto ganhou lugar de relevo e passou a ser o núcleo fundante a reger as relações jurídicos no âmbito do Direito de Família.
A Constituição Federal de 1988 trouxe novos paradigmas, rompendo com o clássico conceito de família consagrada pelo casamento, admitindo outras modalidades de núcleos familiares (monoparental, informal e afetivo), de forma a assegurar as garantias de liberdade, pluralidade e fraternidade.
Entre as características não formais da família contemporânea, pode-se citar a afinidade e a afetividade, que aproximou os conceitos de socioafetividade (relações sociais baseadas no afeto) e eudemonismo (o conceito de busca pela felicidade).
O caráter eudemonista significa que a família é um meio ao desenvolvimento livre e feliz de seus membros. O conceito de família como fins estatais foi substituído para a realização de fins da pessoa humana. A família exista para a sua própria felicidade.
São oportunas as lições de Maria Berenice Dias sobre a família eudemonista:
“A busca da felicidade, a supremacia do amor, a vitória da solidariedade ensejam o reconhecimento do afeto como único modo eficaz de definição da família e de preservação da vida. As relações afetivas são elementos constitutivos dos vínculos interpessoais. A possibilidade de buscar formas de realização pessoal e gratificação profissional é a maneira de as pessoas se converterem em seres socialmente úteis.
Para essa nova tendência de identificar a família pelo seu envolvimento afetivo surgiu um novo nome: família eudemonista, que busca a felicidade individual, por meio da emancipação de seus membros.
O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido da busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento legal altera o sentido da proteção jurídica da família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8.º do art. 226 da CR: o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram.”[6]
O princípio da solidariedade, por sua vez, com assento no art. 3º, I, da CR/88, estabelece que a dignidade de cada um apenas se realiza quando os deveres recíprocos de solidariedade são observados ou aplicados. No âmbito do Direito de Família, o princípio da solidariedade implica consideração e respeitos mútuos, não apenas para fins patrimoniais.
Partindo desta premissa, leciona Paulo Lóbo:
A solidariedade do núcleo familiar compreende a solidariedade recíproca dos cônjuges e companheiros, principalmente quanto à assistência moral e material. O lar é por excelência um lugar de colaboração, de cooperação, de assistência, de cuidado; em uma palavra, de solidariedade civil. O casamento, por exemplo, transformou-se de instituição autoritária e rígida em pacto solidário. A solidariedade em relação aos filhos responde à exigência da pessoa de ser cuidada até atingir a idade adulta, isto é, de ser mantida, instruída e educada para sua plena formação social. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança inclui a solidariedade entre os princípios a serem observados, o que se reproduz no ECA (art. 4º).
Com fundamento explícito ou implícito no princípio da solidariedade, os tribunais brasileiros avançam no sentido de assegurar aos avós, aos tios, aos ex-companheiros homossexuais, aos padrastos e madrastas o direito de contato, ou de visita, ou de convivência com as crianças e adolescentes, uma vez que, no melhor interesse destas e da realização afetiva daqueles, os laços de parentesco ou os construídos na convivência familiar não devem ser rompidos ou dificultados.
Desenvolve-se no âmbito do direito de família estudos relativos ao “cuidado como valor jurídico”, notadamente quanto à convivência intergeracional como transmissora de valores e cultura[7].
A solidariedade, portanto, pressupõe o respeito recíproco e os deveres de cooperação entre os seus membros, mas vai além, devendo ser observada também nas relações do grupo familiar com a comunidade (como o dever de defender o meio ambiente, inclusive para as futuras gerações, conforme art. 225 da CR/88).
3.Da adoção:
O instituto da adoção é a modalidade de filiação por excelência que, sustentada pela relação afetiva, cria relações de paternidade e/ou maternidade entre pessoas distintas da figura de pai ou mãe biológicos do adotado.
Segundo Orlando Gomes:
Adoção é o ato jurídico pelo qual se estabelece, independentemente do fato natural da procriação, o vínculo da filiação. Trata-se da ficção legal, que permite a constituição, entre duas pessoas, do laço de parentesco do primeiro grau na linha reta[8].
Maria Berenice Dias, conceitua como “modalidade de filiação construída no amor, na feliz expressão de Luiz Edson Fachin, gerando vínculo de parentesco por opção.” A autora reforça:
A adoção consagra a paternidade socioafetiva, baseando-se não em fator biológico, mas em fator sociológico. A verdadeira paternidade funda-se no desejo de amar e ser amado. É nesse sentido que o instituto da ação se apropria da palavra afeto.
É no amor paterno-filial entre pessoas mais velhas e mais novas, que imita a vida, que a adoção se baseia. São filhos que resultam de uma opção, e não do acaso, que são adotivos.
Nesse sentido, Cristiano Chaves de Farias esclarece:
Contemporaneamente, a adoção está assentada na ideia de se oportunizar a uma pessoa humana a inserção em núcleo familiar, com a sua integração efetiva e plena, de modo a assegurar a sua dignidade, atendendo às suas necessidades de desenvolvimento da personalidade, inclusive pelo prisma psíquico, educacional e afetivo.
Trata-se de mecanismo de determinação de uma relação jurídica filiatória, através do critério socioafetivo, fundamentado no afeto, na ética e na dignidade das pessoas envolvidas, inserindo uma pessoa humana em família substituta, de acordo com o seu melhor interesse e a sua proteção integral, com a chancela do Poder Judiciário[9].
A adoção, segundo regulamenta o nosso ordenamento jurídico, trata-se de um ato jurídico em sentido estrito, dependente de uma decisão judicial constitutiva, por meio da qual se cria um vínculo jurídico irrevogável entre adotante e adotado, com efeitos semelhantes aos decorrentes de uma filiação biológica.
Com a Carta Política de 1988 e a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção passou a ter o objetivo precípuo de oferecer um ambiente familiar favorável ao desenvolvimento da criança e do adolescente que, por algum motivo, ficaram privados da sua família biológica.
Trata-se de mecanismo de determinação de uma relação jurídica-filiatória, através do critério socioafetivo, fundamentado no afeto, na ética e na dignidade das pessoas envolvidas, inserindo uma pessoa humana em família substituta, de acordo com o seu melhor interesse e a sua proteção integral, com a chancela do Poder Judiciário.
Em síntese, as características da adoção podem ser assim resumidas em: a) ato personalíssimo; b) excepcional; c) irrevogável; d) incaducável; e) plena; f) constituída por sentença judicial.
Fato é que, independentemente da definição que lhe é conferida, o instituto da adoção contemporâneo tem por escopo atender às reais necessidades do adotando, dando-lhe uma família, onde ele se sinta acolhido, protegido e amado[10].
A orientação dos princípios norteadores da adoção após a Constituição de 1988, com ênfase ao princípio do melhor interesse do menor, demonstra que em termos de função social o encargo do instituto tem por primazia proporcionar uma vida digna ao menor.
A adoção ocorre exclusivamente na via judicial, por intermédio do trânsito em julgado de uma sentença constitutiva julgada procedente. A partir deste momento, é que o novo vínculo familiar entre adotante e adotado é considerado válido pela sociedade, produzindo, por consequência, seus efeitos.
Cria-se, por uma ficção jurídica, uma nova relação de paternidade e filiação, ficando o adotado vinculado ao adotante definitivamente, sendo desconsideradas as informações obsoletas contidas no registro civil anterior.
Nestes termos, dispõe o artigo 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.
§ 1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes.
§ 2º O mandado judicial, que será arquivado, cancelará o registro original do adotado.
§ 3º A pedido do adotante, o novo registro poderá ser lavrado no Cartório do Registro Civil do Município de sua residência.
§ 4º Nenhuma observação sobre a origem do ato poderá constar nas certidões do registro.
§ 5º A sentença conferirá ao adotado o nome do adotante e, a pedido de qualquer deles, poderá determinar a modificação do prenome.
§ 6º Caso a modificação de prenome seja requerida pelo adotante, é obrigatória a oitiva do adotando, observado o disposto nos §§ 1o e 2o do art. 28 desta Lei.
§ 7 º A adoção produz seus efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença constitutiva, exceto na hipótese prevista no § 6o do art. 42 desta Lei, caso em que terá força retroativa à data do óbito.
§ 8º O processo relativo à adoção assim como outros a ele relacionados serão mantidos em arquivo, admitindo-se seu armazenamento em microfilme ou por outros meios, garantida a sua conservação para consulta a qualquer tempo
§ 9º Terão prioridade de tramitação os processos de adoção em que o adotando for criança ou adolescente com deficiência ou com doença crônica.
§ 10. O prazo máximo para conclusão da ação de adoção será de 120 (cento e vinte) dias, prorrogável uma única vez por igual período, mediante decisão fundamentada da autoridade judiciária.
Deste modo, partindo da esfera teórica para o campo prático, a doutrina elucida, dentre várias causas da consumação do vínculo adotivo, alguns efeitos marcantes após a efetivação do instituto, dividindo-os em efeitos pessoais e patrimoniais. Trataremos de algumas das principais decorrências do instituto após a sua efetivação.
Registre-se que todos os efeitos jurídicos da sentença de adoção, existenciais ou patrimoniais, iniciam-se com o seu trânsito em julgado, com exceção da hipótese de adoção póstuma, quando ocorre a morte do adotante durante o procedimento.
Quanto aos efeitos pessoais, prolatada a sentença pelo magistrado com o deferimento do pedido do autor da ação, ocorre, por imediato, a ruptura dos vínculos jurídicos entre o adotado e a sua família original.
A adoção, portanto, implica na completa extinção da relação familiar mantida pelo adotando com o seu núcleo anterior, com exceção dos impedimentos matrimoniais.
Outra decorrência da adoção, é a constituição do poder familiar por parte dos pais adotivos, consubstanciando-se em encargo dos pais de exercerem a paternidade responsável, dirigindo-lhes a criação e a educação, tendo-os em sua companhia e guarda, além dos deveres enumerados no art. 1634 do Código Civil.
A doutrinadora Maria Helena Diniz, ao comentar o atual Código Civil, realça a importância e a necessidade da existência desse poder familiar, in verbis:
Esse poder conferido simultânea e igualmente a ambos os genitores, e, excepcionalmente, a um deles, na falta do outro (CC, art. 1.690, 1ª parte), exercido no proveito, interesse e proteção dos filhos menores, advém de uma necessidade natural, uma vez que todo ser humano, durante sua infância, precisa de alguém que o crie, eduque, ampare, defenda, guarde e cuide de seus interesses, regendo sua pessoa e seus bens[11].
Ao inserir em uma nova família, o adotado passa a constituir, além de um novo vínculo, com subordinação do poder familiar dos adotantes, impedimentos que lhe são impostos da mesma maneira como se filho de sangue fosse.
Assim, o código civil estabeleceu que a adoção atribui a condição de filho e adotado, com os mesmo direitos e deveres, salvo os impedimentos matrimonias. Logo, conserva o adotado uma dupla ordem de impedimentos matrimoniais relacionados à sua família funcional e de origem.[12]
Art. 1.521. Não podem casar:
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
[...]
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
[...]
V - o adotado com o filho do adotante;
Atribuindo ao adotado a condição de filho, também é uma consequência pessoal e lógica que este adquira o nome de família dos adotantes, assim como de seus ascendentes, como uma garantia de obtenção da plena desvinculação do vínculo deste com a sua família anterior.
Desse modo, explica Arthur Marques da Silva Filhos:
A assunção do nome dos adotantes como pais, bem como o nome de seus ascendentes (art. 47, §1º, ECA), permitindo-se, ainda, a modificação do prenome (art. 47, §5º, ECA), é um dos efeitos típicos da sentença constitutiva da adoção. Guarda plena compatibilidade na linha de consideração de que a adoção tem por finalidade estabelecer uma relação de filiação, no intuito de proteger integralmente o adotado, rompendo-se os vínculos de parentesco com a família anterior, o que conflitaria com o princípio adoptio imitatur. Por outras palavras, a conservação do nome não se coaduna com a desvinculação total do adotado da sua família anterior[13].
Com relação aos efeitos patrimoniais, de caráter material, pode-se listar duas espécies, quais sejam, o direito a alimentos e o direito à sucessão.
Eunice Ferreira Rodrigues Granato esclarece que, por alimentos, não se deve entender apenas a comida, fato que é costumeiramente confundido por quem tem o dever de arcar com este ônus, mas tudo aquilo que é indispensável ao sustento, como a instrução e a educação, citando assim, a lição de Yussef Said Cahali[14]:
O ser humano, por natureza, é carente desde a sua concepção; como tal, segue o seu fadário até o momento que lhe foi reservado como derradeiro; nessa dilação temporal – maios ou menos prolongada – a sua dependência dos alimentos é uma constante, posta como condição de vida. Daí a expressividade da palavra “alimentos” no seu significado vulgar, ou, no dizer de Pontes de Miranda, “o que serva à subsistência animal”. Em linguagem técnica, bastaria acrescentar a esse conceito a ideia de obrigação que é imposta a alguém, em função de uma causa jurídica prevista em lei, de prestá-los a quem deles necessite. Adotada no direito para designar o conteúdo de uma pretensão ou de uma obrigação, a palavra “alimentos” vem a significar tudo o que é necessário para satisfazer os reclamos da vida, são as prestações com as quais podem ser satisfeitas as necessidades vitais de quem não pode provê-las por si; mais amplamente, é a contribuição periódica assegurada a alguém, por um título de direito, para exigi-la de outrem, como necessário à sua manutenção[15].
Assim, o direito alimentício do adotado tem por respaldo não somente a necessidade dos bens materiais, mas também o afeto, elementar da relação entre adotante e adotado, sendo resultado da influência do princípio constitucional da igualdade entre as filiações (art.227, §6º, CF) e da obrigação constitucional de que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores” (art.229, CF)[16].
Art. 227, § 6º. Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.
Ainda, como efeito patrimonial, tem-se o direito à sucessão hereditária do adotante e demais parentes sucessíveis, na qualidade de herdeiro legítimo necessário, nos moldes do artigo 1.845 do Código Civil.
Conforme prevê a redação do Estatuto da Criança e do Adolescente[17]:
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
§ 1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes.
§ 2º É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4º grau, observada a ordem de vocação hereditária.
Importante registrar que na hipótese da adoção unilateral, prevista no § 1º do art. 41 do ECA, que pode ocorrer quando um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, permanecem os vínculos de filiação entre adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e seus parentes. Nesta situação, o adotado será chamado à vocação hereditária de ambas as partes, quando um ou outro falecerem. É o caso, por exemplo, de uma mulher que teve seu filho, sendo mãe solteira e posteriormente se casa ou vive concubinato com um homem, que resolve adotar essa criança. O adotado mantém os vínculos de filiação com a sua mãe biológica e o parentesco com a família de sua genitora; ao mesmo tempo está vinculado ao adotante e seus parentes, pela adoção[18].
4.Da irrevogabilidade da adoção.
O parágrafo 1º do artigo 39 do ECA dispõe que “a adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa”.
E o parágrafo 3º do artigo 39 do ECA, por sua vez, estabelece que “em caso de conflito entre direitos e interesses do adotando e de outras pessoas, inclusive seus pais biológicos, devem prevalecer os direitos e os interesses do adotando”.
Conforme Luciano Alves Rossato: “não se admite a ‘devolução’ de crianças e adolescentes adotados. Uma vez firmado o vínculo de filiação só pode haver a extinção via procedimento judicial específico, da mesma forma que ocorreria com os pais biológicos”[19]. Ou seja, via ação de destituição de poder familiar.
Rossato traz dois exemplos envolvendo a “devolução”, esclarecendo que, com fulcro no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a desistência dos adotantes tem acarretado no dever de indenizar por danos morais e materiais, na forma de alimentos
Infelizmente já se teve notícia do julgamento de casos envolvendo a “devolução” de crianças e adolescentes adotados. Na Apelação Cível 1.0702.09.568648-2, julgada em 10.11.2011, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais afirmou, com fulcro no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que os pais que “desistem” da adoção tem o dever de indenizar por dano moral e também por dano material, na forma de alimentos. Em 2014, nos autos da Apelação 0006658-72.2010.8.26.0266, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo condenou pais adotivos que desistiram de criar os filhos ao pagamento de indenização por danos morais, mas não reconheceu a obrigação de pagar alimentos sob o argumento de que a destituição do poder familiar decorrente da devolução do infante teria feito cessar o dever de sustento[20].
Nesse aspecto, de acordo com o princípio da proteção integral delineado no art. 100, parágrafo único, II, do ECA: “a interpretação e aplicação de toda e qualquer norma contida nesta Lei deve ser voltada à proteção integral e prioritária dos direitos de que crianças e adolescentes são titulares”. E, por sua vez, o princípio do superior interesse (art. 100, parágrafo único, IV) preceitua que “a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do adolescente, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.
Dessa forma, em que pese a irrevogabilidade e a irretratabilidade da adoção, a complexidade das relações jurídicas tem proporcionado decisões que relativizam a regra e, assim, em casos pontuais, tem-se admitido o cancelamento da adoção e o restabelecimento do poder familiar com a intenção de resguardar interesses existenciais e a dignidade do adotado.
Nesse sentido, em situações excepcionais, recorrem-se ao uso da teoria da derrotabilidade das normas, permanecendo-se a vigência da regra, entretanto, à luz das especificidades do caso concreto, afasta-se, episódica e casuisticamente, a regra geral. Conforme esclarece a doutrina:
Cuida-se, a mais não poder, de uso da teoria da derrotabilidade das normas-regras (também chamada de defeseability), superando-se, episódica e casuisticamente, a regra geral do sistema (que continuará sendo - e não poderia ser diferente - a irrevogabilidade e irretratabilidade da adoção). Apenas excepcionou-se a regra em um caso justificável (um caso extremado ou extreme case), no qual o respeito aos princípios fundamentais do ordenamento, em especial à dignidade humana, impunha um afastamento da regra ao caso concreto[21].
5. Hipóteses em que o STJ admitiu a revogabilidade da adoção.
Embora irrevogável, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem admitido a revogação da adoção em algumas situações especiais, entre as quais o presente artigo selecionou três decisões e passará a analisá-las a seguir.
A interpretação da vedação legal contida no artigo 39, § 3º, do ECA, não deve se ater apenas a sua literalidade, exigindo-se uma interpretação sistemática e teleológica da norma.
Com isso, o enfoque é comprovar que a regra da irrevogabilidade não tem caráter absoluto, mas poderá ensejar na responsabilização civil dos adotantes.
5.1 Adoção unilateral, no interesse do adotado.
A Terceira Turma do STJ afastou a perpetuidade do vínculo adotivo, em um caso envolvendo a adoção unilateral (adoção por cônjuge).
A adoção unilateral foge à regra da habilitação obrigatória e encontra-se prevista no art. 50, § 13º, do ECA. Esse tipo de adoção, também chamada de “adoção semiplena”, ocorre quando um dos ascendentes biológicos faleceu, foi destituído do poder familiar ou é desconhecido.
Geralmente postulada pelo padrasto ou madrasta, a adoção unilateral rompe o vínculo de filiação com um dos pais, para que seja criado um vínculo novo com o pai adotivo.
No caso em tela, a adoção unilateral foi feita após o óbito do pai biológico, quando a parte contava com 14 anos. Posteriormente, embora tenha consentido expressamente com a adoção, aos 31 anos, ajuizou ação pleiteando a sua revogação, sob alegação de que, após um ano da adoção, retornou à cidade de origem de seu pai biológico, já falecido, passando a conviver com sua avó e com o meio social do genitor, circunstâncias que fulminaram o vínculo afetivo com o adotante[22].
Nesse contexto, concluiu a Terceira Turma do STJ pela preservação dos laços criados, ponderando pelo peso principiológico do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, tornando por cancelar a adoção unilateral anteriormente estabelecida.
Nesse diapasão, segue a ementa da decisão:
PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. ADOÇÃO UNILATERAL. REVOGAÇÃO. POSSIBILIDADE.
1. A adoção unilateral, ou adoção por cônjuge, é espécie do gênero adoção, que se distingue das demais, principalmente pela ausência de ruptura total entre o adotado e os pais biológicos, porquanto um deles permanece exercendo o Poder Familiar sobre o menor, que será, após a adoção, compartilhado com o cônjuge adotante.
2. Nesse tipo de adoção, que ocorre quando um dos ascendentes biológicos faleceu, foi destituído do Poder Familiar, ou é desconhecido, não há consulta ao grupo familiar estendido do ascendente ausente, cabendo tão-só ao cônjuge supérstite decidir sobre a conveniência, ou não, da adoção do filho pelo seu novo cônjuge/companheiro.
3. Embora não se olvide haver inúmeras adoções dessa natureza positivas, mormente quando há ascendente - usualmente o pai - desconhecidos, a adoção unilateral feita após o óbito de ascendente, com o consequente rompimento formal entre o adotado e parte de seu ramo biológico, por vezes, impõe demasiado sacrifício ao adotado.
4. Diante desse cenário, e sabendo-se que a norma que proíbe a revogação da adoção é, indisfarçavelmente, de proteção ao menor adotado, não pode esse comando legal ser usado em descompasso com seus fins teleológicos, devendo se ponderar sobre o acerto de sua utilização, quando reconhecidamente prejudique o adotado. 5. Na hipótese sob exame, a desvinculação legal entre o adotado e o ramo familiar de seu pai biológico, não teve o condão de romper os laços familiares preexistentes, colocando o adotado em um limbo familiar, no qual convivia intimamente com os parentes de seu pai biológico, mas estava atado, legalmente, ao núcleo familiar de seu pai adotivo.
6. Nessas circunstâncias, e em outras correlatas, deve preponderar o melhor interesse da criança e do adolescente, que tem o peso principiológico necessário para impedir a aplicação de regramento claramente desfavorável ao adotado - in casu, a vedação da revogação da adoção - cancelando-se, assim, a adoção unilateral anteriormente estabelecida.
7. Recurso provido para para, desde já permitir ao recorrente o restabelecimento do seu vínculo paterno-biológico, cancelando-se, para todos os efeitos legais, o deferimento do pedido de adoção feito em relação ao recorrente. (REsp 1545959/SC, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/06/2017, DJe 01/08/2017) [g.n.]
5.2 Rescisão da sentença fundamentada em vício de consentimento do adotado.
Instado a se manifestar sobre a irrevogabilidade da adoção em nome do melhor interesse de adolescente, o STJ, por meio da 3ª Turma, decidiu-se pela possibilidade de rescindir a sentença de adoção, determinando-se a retificação do registro civil do jovem adotado, em um caso concreto em que o próprio adotado se arrependeu do processo e fugiu do convívio com a nova família.[23]
No caso, a Relatora, Ministra Nancy Andrighi, reforçou que a interpretação do parágrafo 1º do artigo 39 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) conduz à conclusão de que a irrevogabilidade da adoção não é regra absoluta, podendo ser afastada sempre que se verificar que a manutenção da medida não apresenta reais vantagens para o adotado e não satisfaz os princípios da proteção integral e do melhor interesse.
Não se pode perder de vista que a norma do § 1º do art. 39 do ECA possui nítida finalidade protetiva, o seu escopo é de resguardar os direitos fundamentais dos adotandos.
Embora tenha havido o consentimento do adolescente, durante o procedimento judicial de adoção, posteriormente ele se demonstrou falso, razão pela qual amolda-se ao consectário do art. 966, VI, do Código de Processo Civil, que admite a rescisão da sentença quando ela se basear em prova cuja falsidade seja demonstrada na própria rescisória.
A Ministra aduziu que "Não se trata de vedada alegação de fato novo, mas sim de prova pericial nova que se refere à existência ou inexistência de ato jurídico anterior à sentença, qual seja, o consentimento do adolescente". Logo, com fulcro no art. 966, VI, do Código de Processo Civil, concluiu pela rescisão da sentença. Veja que o consentimento do adolescente apenas se mostrou viciado em momento posterior.
O falso nesse caso está consubstanciado no conteúdo do consentimento manifestamente divorciado da realidade.
Por fim, no sentido de que nem sempre as presunções estabelecidas pelo legislador suportam o crivo da realidade, declarou a relatora:
"a manutenção dos laços de filiação com os recorrentes representaria, para o adotado, verdadeiro obstáculo ao pleno desenvolvimento de sua personalidade" – especialmente porque poderia prejudicar o aprofundamento das relações estabelecidas com a nova família na qual foi inserido –, "representando interpretação do parágrafo 1º do artigo 39 do ECA descolada de sua finalidade protetiva".
Para melhor compreensão, segue a ementa do relevante julgado:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. INFÂNCIA E JUVENTUDE. OMISSÃO AUSÊNCIA. IRREVOGABILIDADE DA ADOÇÃO. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA E TEOLÓGICA. FINALIDADE PROTETIVA. PRINCÍPIOS DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. SENTENÇA CONCESSIVA DA ADOÇÃO. AÇÃO RESCISÓRIA. POSSIBILIDADE. PROVA NOVA. CARACTERIZAÇÃO. PROVA FALSA. CARACTERIZAÇÃO.
1- Ação ajuizada em 27/11/2014. Recurso especial interposto em 13/5/2020 e concluso ao gabinete em 20/10/2020.
2- O propósito recursal consiste em definir: a) se houve omissão da Corte de origem ao apreciar a tese relativa à caracterização de falsidade ideológica, notadamente a própria declaração do adotado no sentido de que não desejava a adoção; e b) se é possível, ante a regra da irrevogabilidade da adoção, a rescisão de sentença concessiva dessa espécie de colocação em família substitua ao fundamento de que o adotado, à época da adoção, não a desejava verdadeiramente e de que, após atingir a maioridade, manifestou-se pela procedência do pedido.
3- No que diz respeito à apontada omissão, verifica-se que os recorrentes não indicam quais os dispositivos legais teriam sido violados pelo acórdão hostilizado, tornando patente a falta de fundamentação do apelo especial, circunstância que atrai a incidência, por analogia, do Enunciado de Súmula nº 284 do Supremo Tribunal Federal. Ademais, não houve negativa de prestação jurisdicional, porquanto a Corte de origem analisou a questão deduzida pelos recorrentes.
4- A interpretação sistemática e teleológica do disposto no § 1º do art. 39 do ECA conduz à conclusão de que a irrevogabilidade da adoção não é regra absoluta, podendo ser afastada sempre que, no caso concreto, verificar-se que a manutenção da medida não apresenta reais vantagens para o adotado, tampouco é apta a satisfazer os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente.
5- A sentença concessiva de adoção, ainda quando proferida em procedimento de jurisdição voluntária, pode ser encoberta pelo manto protetor da coisa julgada material e, como consectário lógico, figurar como objeto de ação rescisória. Precedentes.
6- Está caracterizada a “prova nova” apta justificar a sentença concessiva de adoção, porquanto se extrai do Relatório Psicológico que não houve, de fato, consentimento do adotando com relação à adoção, conforme exige o § 2º do art. 45 do ECA. Não se trata de vedada alegação de fato novo, mas sim de prova pericial nova que se refere à existência ou inexistência de ato jurídico anterior à sentença, qual seja, o consentimento do adolescente.
7- Subsume-se a hipótese ao previsto no inciso VI do art. 966 do CPC, porquanto admitiu o magistrado singular, ao deferir a adoção, que houve o consentimento do adotando, conforme exigido pelo § 2º do art. 45 do ECA, o que, posteriormente, revelou-se falso.
8- Passando ao largo de qualquer objetivo de estimular a revogabilidade das adoções, situações como a vivenciada pelos adotantes e pelo adotado demonstram que nem sempre as presunções estabelecidas dogmaticamente, suportam o crivo da realidade, razão pela qual, em caráter excepcional, é dado ao julgador demover entraves legais à plena aplicação do direito e à tutela da dignidade da pessoa humana.
9- A hipótese dos autos representa situação sui generis na qual inexiste qualquer utilidade prática ou reais vantagens ao adotado na manutenção da adoção, medida que sequer atende ao seu melhor interesse. Ao revés, a manutenção dos laços de filiação com os recorrentes representaria, para o adotado, verdadeiro obstáculo ao pleno desenvolvimento de sua personalidade, notadamente porque impediria o evolver e o aprofundamento das relações estabelecidas com os atuais guardiões, representando interpretação do § 1º do art. 39 do ECA descolada de sua finalidade protetiva.
10- Levando-se em consideração (a) os princípios da proteção integral e do melhor interesse da criança e do adolescente, (b) a inexistência de contestação ao pleito dos adotantes e (c) que a regra da irrevogabilidade da adoção não possui caráter absoluto, mas sim protetivo, devem, excepcionalmente, ser julgados procedentes os pedidos formulados na presente ação rescisória com a consequente rescisão da sentença concessiva da adoção e retificação do registro civil do adotado.
11- Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido. RECURSO ESPECIAL Nº 1.892.782 – PR. STJ. 3ª TURMA. RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI – J. 06/04/2021. DJe: 15/04/2021
5.3 Desistência de adoção, durante o estágio de convivência, por motivo de foro íntimo.
Por fim, destaca-se uma recente decisão proferida pela 4ª Turma do STJ, oportunidade em que a Turma afastou a responsabilidade civil por danos morais e materiais, em um caso de desistência de adoção, durante estágio de convivência, por motivo de foro íntimo.
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. DESISTÊNCIA DE ADOÇÃO DE CRIANÇA NA FASE DO ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA. GENITORA BIOLÓGICA QUE CONTESTOU A ADOÇÃO E INSISTIU NO DIREITO DE VISITAÇÃO DO MENOR. DOENÇA NEUROLÓGICA CONSTATADA NA CRIANÇA. PAIS ADOTIVOS LAVRADORES SEM CONDIÇÕES FINANCEIRAS. DESISTÊNCIA JUSTIFICADA. ABUSO DE DIREITO NÃO CONFIGURADO.
1. A desistência da adoção durante o estágio de convivência não configura ato ilícito, não impondo o Estatuto da Criança e do Adolescente nenhuma sanção aos pretendentes habilitados em virtude disso.
2. Embora o fato de a criança ter recebido diagnóstico de doença grave e incurável possa ter contribuído para a desistência da adoção, haja vista que os candidatos a pais eram pessoas extremamente simples e sem condições financeiras, o fato de a genitora biológica ter contestado o processo de adoção e ter requerido, sucessivamente, que a criança lhe fosse devolvida ou que lhe fosse deferido o direito de visitação, não pode ser desprezado nesse processo decisório.
3. A desistência da adoção nesse contexto está devidamente justificada, não havendo que se falar, em situações assim, em abuso de direito, especialmente, quando, durante todo o estágio de convivência, a criança foi bem tratada, não havendo nada que desabone a conduta daqueles que se candidataram no processo.
4. Recurso especial a que se nega provimento.
(RECURSO ESPECIAL Nº 1.842.749 – MG. STJ. QUARTA TURMA. RELATORA MINISTRA MARIA ISABEL GALLOTTI. J. 24/11/2023. DJe: 03/11/2023)
A ação de indenização foi ajuizada pelo Ministério Público de Minas Gerais, com fundamento em suposta desistência imotivada de adoção durante o estágio de convivência, após significativo lapso temporal, por motivo de doença constatada na criança, em afronto aos arts. 1º, 15, 33, § 3º, 35, 46, 47 e 199-A do ECA, além dos arts. 186, 187 e 927, do Código Civil.
A Turma concluiu que não houve ato ilícito nem abuso de direito, pontuou-se que o convívio teve início três dias após o nascimento da criança e, três meses após, constataram a gravidade da doença, sem cura, decorrente de má formação do seu sistema nervoso central. Decorridos três anos da guarda inicial, postularam a desistência por motivo de foro íntimo.
Importante pontuar, como constou na fundamentação do acórdão, que a redação atual do artigo 46 do ECA passou a prever o prazo máximo de 90 (noventa) dias para o estágio de convivência, mas à época dos fatos, tal prazo era fixado a critério da autoridade judiciária. À época não havia sanção por desistência no curso do processo.
Não obstante a doença acometida e os parcos recursos dos adotantes (lavradores), a mãe biológica da criança demonstrou o interesse em tê-la de volta.
Conclusão
Por meio da abordagem do contexto histórico do instituto da adoção, identificou-se que referido instituto ganhou nova leitura com a consagração do princípio da proteção integral à criança e ao adolescente, conforme art. 227, § 6º, da CR/88.
A família contemporânea deve ser compreendida pelo viés da afinidade e afetividade, que aproximou os conceitos de socioafetividade (relações sociais baseadas no afeto) e de eudemonismo (o conceito de busca pela felicidade).
A proteção jurídica da família ganhou novos contornos, enfatizando o sentido da busca pelo sujeito de sua felicidade e com lastro no dever constitucional de solidariedade, calcado no afeto.
Embora haja a previsão normativa peremptória de que a adoção é irrevogável e irretratável, o Superior Tribunal de Justiça, por diversas vezes, reforça que o escopo da previsão contida no art. 39, § 3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, é a proteção dos interesses do menor adotado.
Com isso, o STJ admitiu a revogabilidade da adoção, desfazendo a adoção unilateral, privilegiando, no caso concreto, o interesse do adotado que, após um ano da conclusão do processo de adoção, retomou os laços afetivos com a família de seu pai biológico falecido e, concomitantemente, perdeu o vínculo afetivo com o padrasto.
No mesmo contexto, o STJ concluiu ser possível a rescisão da sentença fundamentada em vício de consentimento do adotado, uma vez que, no caso concreto, restou evidenciado que o consentimento dado pelo adotado foi falso, não era a sua real intenção ser adotado pelo casal de adotantes, garantindo-se, assim, a primazia do interesse do adotando.
Por fim, o STJ entendeu pela possibilidade de desistência de adoção, durante estágio de convivência lastreada em motivo de foro íntimo, não havendo que se falar na responsabilidade civil por danos materiais e morais do casal de adotantes. O caso trouxe a existência de uma doença neurológica, mas a Corte entendeu que havia outros elementos que, aliados à existência da doença, justificaram a recusa.
Dessa forma, conquanto o ordenamento jurídico brasileiro consagre a irrevogabilidade e a irretratabilidade da adoção, o seu afastamento, conforme o Superior Tribunal de Justiça, é fruto de uma interpretação sistemática e teleológica, excepcionalmente realizada em casos específicos, notadamente quando em foco o melhor interesse do adotando.
Referências bibliográficas
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[1] Câmara dos Deputados, LEI Nº 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1910-1919/lei-3071-1-janeiro-1916-397989-publicacaooriginal-1-pl.html
[2] Câmara dos Deputados. Lei nº 4.655/1965. https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4655-2-junho-1965-377680-publicacaooriginal-45829-pl.html#:~:text=Disp%C3%B5e%20sobre%20a%20legitimidade%20adotiva.
[3]Câmara dos Deputados. Lei nº 6.697/1979. Código de Menores. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6697-10-outubro-1979-365840-publicacaooriginal-1-pl.html
[4]DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 14ª ed. rev. ampl. e atual – Salvador: Editora JusPodivm, 2021. P. 331..
[5] DIAS, Maria Berenice. Ob. Cit. P. 332.
[6] DIAS, Maria Berenice. Ob. Cit. p. 461).
[7] LÔBO, Paulo. Princípio da Solidariedade Familiar. Disponível em: https://ibdfam.org.br/assets/upload/anais/78.pdf#:~:text=A%20solidariedade%20do%20n%C3%BAcleo%20familiar,uma%20palavra%2C%20de%20solidariedade%20civil.
[8] GOMES, Orlando. Direito de Família. 14. Ed. Rio de Janeiro: Forense. 2001, p. 369.
[9] FARIAS, Cristiano Chaves de. Manual de Direito Civil - Volume Único / Cristiano Chaves de Farias, Felipe Braga Netto, Nelson Rosenvald. - 7. ed. rev, ampl. e atual. - São Paulo: Ed. JusPodivm, 2022. p. 1337.
[10] GRANATO, Eunice Ferreira Rodrigues, Adoção: doutrina e prática. Curitiba: Juruá, 2009. p. 26.
[11] DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, V.5: direito de família. 18.ed.. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 448
[12] SILVA FILHO, Artur Marques da. Adoção: regime jurídico, requisitos, efeitos, inexistência, anulação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.Op. Cit., p. 198.
[13] SILVA FILHO, Artur Marques. Op. Cit., p. 191.
[14] GRANATO, Eunice Ferreira Rodrigues. Op. Cit. p. 93-94.
[15] CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 1993, p. 177.
[16] SILVA FILHO, Artur Marques. Op. Cit., p. 205.
[17] GRANATO, Eunice Ferreira Rodrigues. Op. Cit. p. 91.
[18] GRANATO, Eunice Ferreira Rodrigues. Op. Cit. p. 92.
[19] ROSSATO, Luciano Alves. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069/90 – comentado artigo por artigo / Luciano Alves Rossato, Paulo Eduardo Lépore, Rogério Sanches Cunha. – 11. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019.Ob. cit. p. 161
[20] ROSSATO, Luciano Alves. Ob. cit. p. 161
[21] FARIAS, Cristiano Chaves de. Ob. Cit. p. 1345.
[22] Informações extraídas do site do STJ. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201200079032&dt_publicacao=01/08/2017 Acesso em 13/11/2023.
[23] Terceira Turma admite rescisão de adoção após prova de que o adolescente adotado não a desejava. Notícias. Data 07/06/2021 07:30. Extraída do site do STJ. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/07062021-Terceira-Turma-admite-rescisao-de-adocao-apos-prova-de-que-o-adolescente-adotado-nao-a-desejava-.aspx#:~:text=Para%20a%20Terceira%20Turma%20do,desejava%20verdadeiramente%20participar%20do%20procedimento. Acesso em 13/11/2023.
Artigo publicado em 21/11/2021 e republicado em 17/04/2024.
Advogada (OAB/SP nº 309.249). Formada pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pós-graduada em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera – UNIDERP. Pós-graduada em Direitos Difusos e Coletivos pela Faculdade CERS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Renata Corrêa da. O Superior Tribunal de Justiça e a irrevogabilidade da adoção: uma análise sobre a sua excepcionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 abr 2024, 04:35. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/63874/o-superior-tribunal-de-justia-e-a-irrevogabilidade-da-adoo-uma-anlise-sobre-a-sua-excepcionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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