O presente artigo é uma adaptação do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado pelo autor para conclusão do curso de Especialização em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, o qual contou com orientação da Professora Fernanda Teodoro Arantes.
Em março de 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Recurso Extraordinário número 718.874, ao qual foi reconhecido Repercussão Geral, sendo objeto do Tema n° 669, que está assim intitulado: “Validade da contribuição a ser recolhida pelo empregador rural pessoa física sobre a receita bruta proveniente da comercialização de sua produção, nos termos do art. 1º da Lei 10.256/2001”.
Esse artigo 1° da Lei Federal Ordinária n° 10.256/2001 foi o que introduziu ao ordenamento jurídico a atual redação do caput do artigo 25 da Lei Federal Ordinária n° 8.212/1991, que estabelece o Funrural devido pelo produtor e empregador rural pessoa física.
Na oportunidade, a Corte entendeu pela constitucionalidade do artigo 1° e, consequentemente, pela constitucionalidade do artigo 25, concluindo que: “É constitucional, formal e materialmente a contribuição social do empregador rural pessoa física, instituída pela Lei 10.256/01, incidente sobre a receita bruta obtida com a comercialização de sua produção”.
Ocorre que, em 2010, em sede do Recurso Extraordinário 363.852, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei 8.540/1992, que deu nova redação aos artigos 12, incisos V e VII; 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com redação atualizada até a Lei 9.528/1997, que a alterou. Trata-se do famoso caso do “Frigorífico Mataboi”.
Essa decisão foi ratificada no julgamento com Repercussão Geral do Recurso Extraordinário 596.177/RS.
A partir de então, passou a ser inconstitucional os incisos I e II do artigo 25, da Lei n°8.212/1991 que são justamente os que preveem as alíquotas do Funrural ao produtor rural pessoa física. Assim, inexistindo alíquota, o tributo foi afastado.
Em suma: para um mesmo dispositivo legal, o STF entendeu pela inconstitucionalidade dos incisos e pela constitucionalidade do caput.
Então, visando sanar esse conflito, o Senado publicou, em setembro de 2017, a Resolução n° 15, que suspendeu a eficácia dos aludidos incisos, sob argumento de que são inconstitucionais pelo julgamento daquele Recurso Extraordinário de 2010.
Diante disso, tinha-se uma verdadeira insegurança jurídica quanto a este tributo: se, por um lado, tem-se a Resolução do Senado afastando o tributo; por outro, temos a decisão do STF, que, a princípio, somente reconheceu a constitucionalidade do caput do artigo 25 (e não dos incisos), mas nada impede que haja uma interpretação extensiva de que essa constitucionalidade se aplica ao dispositivo como um todo, o que permitiria a sua cobrança.
No entanto, o próprio STF já sustentou pela mutação constitucional do art. 52, X, CF, que autoriza a edição de Resolução pelo STF nessas circunstâncias e, inclusive, admitiu a abstrativização do controle difuso de constitucionalidade.
Então, a fim de resolver esse conflito, foi editada a Lei 13.606/2018, que instituiu o Programa de Regularização Tributária Rural, o qual autorizou o parcelamento pelo produtor rural pessoa física com desconto integral de juros, multa e honorários.
Contudo, a mesma sorte não foi oferecida ao segurado especial, que, inclusive, apresenta, em geral, maior grau de vulnerabilidade em relação ao empregador rural individual, posto que pratica agricultura familiar, sem empregado fixo.
Ocorre que, em abril de 2020, ao apreciar o Tema 723 (RE 761.263), a Suprema Corte fixou a seguinte tese: "É constitucional, formal e materialmente, a contribuição social do segurado especial prevista no art. 25 da Lei 8.212/1991".
A diferença entre os Temas 669 e 723 se refere ao sujeito passivo: o primeiro é relativo ao empregador rural pessoa física, enquanto o segundo é relativo ao segurado especial.
Diante disso, o objetivo do presente Trabalho é o de relatar a insegurança jurídica que esse imbróglio institucional proporciona aos contribuintes pessoas físicas de Funrural e também a falta de isonomia ao considerar o segurado especial.
Para tanto, far-se-á uma conceituação do aludido tributo. Em seguida, discorrerá sobre o controle de constitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário. Então, far-se-á uma análise crítica das decisões proferidas pelo Corte Suprema acerca do Funrural, levando-se em consideração a conjuntura política e econômica que influenciaram na decisão, bem como a sua abrangência e os seus impactos para com os produtores rurais e as agroindústrias, seguindo-se, finalmente, para a conclusão do Trabalho.
1 - FUNRURAL: CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA
Prima facie, vale destacar que há certa discussão quanto à classificação das contribuições previstas nos artigos 149 e 149-A da Constituição Federal como espécie tributária.
De acordo com o artigo 3° do Código Tributário Nacional (Lei Federal Ordinária n° 5.172/1966) “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
Partindo desse conceito, há diversas teorias acerca da classificação das espécies tributárias: há quem defenda que são apenas duas (Teoria Bipartite), três (Teoria Tripartite), quatro (Teoria Quadripartite), cinco (Teoria Pentapartite) e até mesmo quem defenda pela existência de seis espécies tributárias (Teoria Hexapartite), embora esta seja pouco aceita pela doutrina.
A Teoria Bipartite defende que existem apenas duas espécies tributárias, quais sejam: tributos vinculados e os não vinculados. A vinculação, por sua vez, baseia-se no fato gerador: se este consistir numa atuação estatal, está vinculado, caso não, não há vinculação. Assim, essa teoria se baseia no vínculo do serviço.
A Teoria Tripartite, por sua vez, é a adotada pelo Código Tributário Nacional (CTN, art. 5°), que define os impostos, as taxas e a contribuição de melhoria como tributos. A Constituição Federal também adota tal critério (CF, art. 145), havendo os seguintes tributos: impostos (tributo não vinculado a um fim específico), taxas (em razão do exercício do poder de polícia ou por uso de serviço público específico e divisível – trata-se de um tributo vinculado), contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas (vinculado). Essa teoria é adotada por grandes doutrinadores, como Paulo de Barros Carvalho, sendo que com a classificação de contribuições e empréstimo compulsório como tributos, a inserção deles nessa teoria se dá com base na vinculação, podendo ora ser impostos (não vinculado), ora taxa.
Nesse sentido, o autor Paulo de Barros Carvalho (2014, p. 66) assim defendeu:
A conclusão parece-nos irrefutável: as contribuições são tributos que, como tais, podem assumir a feição de impostos ou de taxas. Excluímos, de indústria, a possibilidade de aparecerem com os caracteres de contribuição de melhoria, posto que esta espécie foi concebida em termos de estreito relacionamento com a valorização do imóvel, traço que não só prejudica como até impede seu aproveitamento como forma de exigência e cobrança das contribuições.
[...]
Três, portanto, são as espécies de contribuição: (i) social, (ii) interventiva e (iii) corporativa, tendo o constituinte empregado, como critério classificatório, a finalidade de cada uma delas, representada pela destinação legal do produto arrecadado. As contribuições sociais, por sua vez, são subdivididas em duas categorias: (i) genéricas, voltadas aos diversos setores compreendidos no conjunto da ordem social, como educação, habitação etc. (art. 149, caput); e (ii) destinadas ao custeio da seguridade social, compreendendo a saúde, previdência e assistência social (art. 149, caput, e §1°, conjugados com o art. 195).
A Teoria Quadripartite acrescenta o empréstimo compulsório, previsto no artigo 148 da Constituição Federal, à classificação anterior. Entretanto, há alguns doutrinadores que utilizam a seguinte classificação: impostos, taxas, contribuições (em geral) e empréstimo compulsório.
A Teoria Pentapartite, por sua vez, acrescenta à teoria tripartite o empréstimo compulsório e as contribuições, estando estas previstas nos artigos 149 e 195 da Constituição. Essa teoria é adotada pelo Supremo Tribunal Federal e também pela maior parte da doutrina.
Por fim, tem-se a Teoria Hexapartite, que surgira após a Emenda Constitucional n° 39, de 2002, a qual criou a Contribuição para Custeio da Iluminação Pública (COSIP), positivada no artigo 149-A da Constituição.
Tal tributo não se trata de um imposto, pois está vinculado a um serviço. Entretanto, também não é divisível, o que o desenquadra de taxa. Contribuição de melhoria é decorrente de obra pública, então não há como vincular e isso nem com empréstimo compulsório (regime de exceção), restando apenas as contribuições. Para os defensores da Teoria Pentapartite, a COSIP é uma contribuição especial, já para os defensores da Hexapartite, por se tratar de um tributo não divisível, trata-se de uma nova espécie tributária. Vale destacar que essa Teoria foi muito pouco defendida pela atual doutrina.
Há ainda quem defenda, como é o caso do autor Edvaldo Brito, em sua obra “Direito Tributário: imposto, tributos sinalagmáticos, contribuições, preços e tarifas, empréstimo compulsório” (São Paulo. Ed. Atlas, 2015), que as contribuições podem ser dívidas em “contribuições de natureza tributária (contribuição de melhoria” e de “natureza não tributária (sociais e econômicas)” (p. 155).
Com a devida vênia aos demais entendimentos, para o presente trabalho, adotaremos a Teoria Pentapartite, partindo do pressuposto, portanto, de que as contribuições são espécies tributárias, tendo natureza de tributo, portanto.
Nesse diapasão, tem-se que a Constituição Federal, por meio do conjunto dos artigos 146, III, 149, 149-A, 150, I e III, 195 e seu §6°, instituiu quatro espécies de contribuições classificadas pela finalidade: i) contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDE); ii) contribuições de interesse de categorias profissionais ou econômicas (corporativa); iii) contribuições sociais de seguridade social; e iv) contribuições para o custeio do serviço de iluminação pública (COSIP).
Necessário destacar, também, que a Constituição Federal concedeu ao legislador uma grande margem de liberalidade para instituir contribuições, permitindo a sua criação desde que haja justificativa e que sejam respeitados os critérios estabelecidos por outros artigos da Carta Magna, permitindo-se, inclusive, que a base de cálculo e fato gerador coincidam com as de impostos. Nesse caso, exclui-se a COSIP, que se trata de uma contribuição cuja finalidade é extremamente vinculada.
Fato é que as contribuições (com exceção da contribuição de melhoria) possuem um caráter parafiscal. Por isso que havia diversas discussões acerca desse assunto.
Isso se deve ao fato de que as contribuições, de forma genérica, estão vinculadas a uma atividade estatal, o que a afastaria do conceito de tributo. Mas, a doutrina criou o conceito da parafiscalidade, que é caracterizada, de acordo com Bernardo Ribeiro de Moraes (In: LIPPERT. Franz August Gernot. “As Contribuições Parafiscais no Direito Brasileiro”. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, v. 12, p. 121-126, 1996), pelos seguintes elementos:
1) o caráter compulsório da exigência, à semelhança do imposto ou da taxa;
2) a não-integração da respectiva receita no orçamento do Estado;
3) a destinação do produto de sua arrecadação ao custo de certos grupos, setores ou categorias sociais;
4) a administração de sua receita por entidades descentralizadas e até não-estatais por delegação do Estado (p. 123)
Assim sendo, caracteriza-se a contribuição (com exceção da de melhoria) por possuir um pressuposto de fato, definido em lei de forma típica, consistindo numa atividade estatal dirigida à coletividade, que atinge determinado grupo de pessoas, que se beneficiam de certa forma (Idem, p. 125).
Mas não é por ter caráter parafiscal que se pode negar a sua natureza tributária, afinal, os requisitos previstos pelo artigo 3° do Código Tributário Nacional são facilmente identificados.
Ainda, uma característica intrínseca às contribuições (o que inclui até mesmo a de melhoria nesse caso) é que elas são vinculadas à finalidade que motivaram a sua instituição. Esse fenômeno o autor Edvaldo Brito (Idem, p. 153) denomina como “natureza sinalagmática”, entendendo que “O vínculo que nasceu assim e que não tem a possibilidade de romper-se, por exemplo, mediante a exigência da prestação pecuniária compulsória, sem o oferecimento da utilidade ou sem a efetiva intervenção, sob pena de desnaturar-se, adentra o campo da funcionalidade (sinalagma funcional), mas sem resultar, portanto, alterado”.
Nesse mesmo sentido, o doutrinador Kiyoshi Harada (HARADA, Kiyoshi. Contribuições sociais: doutrina e prática. São Paulo. Atlas, 2015) compreende. Para ele, “A contribuição social é uma exação tributária vinculada à atuação indireta do Estado, mediatamente referida ao sujeito passivo. Funda-se no fato de que o Estado, no desenvolvimento de determinada atividade administrativa genérica, efetua despesas maiores em relação a determinadas pessoas ou grupos de pessoas (contribuintes) que passam a usufruir de benefícios diferenciados dos demais (não contribuintes). Sem o benefício específico, a ser auferido pelo contribuinte, não há que se falar em contribuição social” (p. 8).
Em outras palavras, as contribuições sociais estão intrinsecamente ligadas à finalidade que motivou a sua criação. E mais: esse vínculo é requisito indispensável para a sua instituição, o que as aproxima das taxas.
Contudo, ao contrário destas, não há como defender que as contribuições são divisíveis. Ou seja, apesar de estarem vinculadas a um fim específico, a divisão daquilo que está sendo custeado fica comprometida, o que não ocorre no caso das taxas, em que se custeia um serviço específico e pontual. Ora, a vinculação da contribuição não presume uma contraprestação direta, como é o caso das taxas.
Verifica-se, portanto, que as contribuições são vinculadas a uma finalidade, sendo esta essencial para a sua instituição. Mas, tal vinculação não presume uma contraprestação direta. E, inclusive, admite-se um caráter parafiscal às contribuições, sobretudo às sociais (exclui-se a COSIP), o que se decorre do intervencionismo estatal.
1.1 Natureza Jurídica do Funrural
Primeiramente, convém destacar que o Funrural, abreviação de Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural, criado em 1967, por meio do Decreto-Lei n° 276, ao alterar o artigo 158 da Lei Federal Ordinária n° 4.214/1963, foi extinto com o advento da Lei Federal Ordinária n° 7.787/89, sendo tecnicamente incorreto utilizar o aludido termo (TAMARINDO. PIGATTO, 2018).
Contudo, como esse nome está consolidado, apesar de exterminado, o termo é utilizado até hoje pelos produtores rurais, pela doutrina e até mesmo pela jurisprudência, razão pela qual também se utilizará no presente trabalho.
Pois bem. Em 1988, foi promulgada a atual Constituição Federal, que criou, por meio do artigo 195, o Regime Geral de Previdência Social, que abarcou os recursos destinados ao Funrural, sendo custeado por toda a sociedade, como segue abaixo:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
Inicialmente, interpretando-se o artigo 195 e o seu §8°[1], a doutrina entende que “a intenção do legislador constitucional era que apenas o produtor rural familiar que exercesse suas atividades em regime de economia familiar deveria contribuir para a seguridade social” (TAMARINDO. PIGATTO, 2018, p. 276). Ocorre que, logo em seguida, sobreveio a Lei Federal Ordinária n° 8.212/1991, que “dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui Plano de Custeio, e dá outras providências”[2], além de regulamentar a contribuição para o meio rural.
Originalmente, o artigo 25 da Lei n° 8.212 previa que “o segurado especial referido no inciso VII do art. 12[3]” deveria contribuir com “3% (três por cento) da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção[4]”, redação condizente com o quanto estabelecido pelo artigo 195 caput e §8°.
A redação original da Lei n° 8.212 assim definia o segurado especial:
Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: o produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o garimpeiro, o pescador artesanal e o assemelhado, que exerçam essas atividades, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros, bem como seus respectivos cônjuges ou companheiros e filhos maiores de 14 anos ou a eles equiparados, desde que trabalhem, comprovadamente, com o grupo familiar respectivo.[5]
Até então, portanto, tudo dentro dos conformes.
Pois bem. O início das polêmicas que circundam a contribuição para o custeio do meio rural (denominada de forma equivocada como Funrural, como exposto acima), deu-se com o advento da Lei Federal Ordinária n° 8.540/1992, que alterou a redação do artigo 25 da Lei n° 8.212, do ano anterior, ficando assim disposta:
Art. 25. A contribuição da pessoa física e do segurado especial referidos, respectivamente, na alínea a do inciso V e no inciso VII do art. 12 desta lei, destinada à Seguridade Social, é de:
I dois por cento da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção;
II um décimo por cento da receita bruta proveniente da comercialização da sua produção para financiamento de complementação das prestações por acidente de trabalho.
[...]
Percebe-se, portanto, que a alteração trouxe um novo grupo de contribuintes além do segurado especial: a pessoa física definida no inciso V do artigo 12 da Lei n° 8.212, que também teve sua redação alterada pela mesma Lei n° 8.540, passando a ter a seguinte redação (que prevalece até hoje), destacando-se o trecho que impacta no presente trabalho:
Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:
V - como equiparado a trabalhador autônomo, além dos casos previstos em legislação específica:
a) a pessoa física, proprietária ou não, que explora atividade agropecuária ou pesqueira, em caráter permanente ou temporário, diretamente ou por intermédio de prepostos e com auxílio de empregados, utilizados a qualquer título, ainda que de forma não contínua;
[...]
(Grifamos)
De forma sucinta, a Lei n° 8.540/1992 alterou a alíquota do tributo e ampliou a sua incidência por meio do aumento da sujeição passiva, o que motivou Loubet (2017 apud TAMARINDO. PIGATTO, 2018, p. 278/279) a denunciar:
[...] ao determinar no art. 25, I, que não só os segurados especiais (pequenos produtores), como os contribuintes individuais (grandes e médios produtores) deveriam contribuir à Seguridade Social com 2% sobre o valor da comercialização de sua produção, além de 0,1% para fins de SAT, a Lei n° 8.212/91 extrapolou os limites delineados na Carta da República, pois dispensou a ambas as categorias idêntico tratamento jurídico, quando não é isso que a Constituição ordena.
Ocorre que não há autorização constitucional para se tributar o empregador rural pessoa física adotando-se como base de cálculo o resultado de sua produção. Noutras palavras, a norma do art. 195, §8°, da Constituição prevê a tributação sobre a produção apenas em relação ao segurado especial, justamente porque não é empregador e, pois, não tem folha de salários a pagar, e não o produtor rural pessoa física que seja empregador.
O instituto claro do enunciado constitucional é garantir que todos os contribuam à Seguridade Social, de maneira que mesmo o pequeno produtor que explore suas atividades em regime de economia familiar, sem auxílio de empregados, esteja obrigado ao custeio dos cofres públicos. A lógica desse preceito é essa, e não permitir que os médios e grandes produtores sejam gravados à luz do resultado de sua produção, ao invés da folha de salários, como se dá com os demais contribuintes.
Comparando o art. 195, I, “a”, ao art. 195, §8°, é inequívoco que a tributação sobre a produção foi adotada pelo contribuinte como exceção, e não como regra. É que no §8° a Constituição descreve com detalhes quais os contribuintes que não se sujeitam ao modelo usual, a saber, aqueles que exercem a atividade rural no bojo da economia familiar, apenas para a subsistência, e não com o intuito de lucro. Sob essa perspectiva, apesar de o art. 195, §8° da Carta Magna prever a incidência de contribuições previdenciárias sobre o resultado da produção apenas em face dos pequenos produtores e a despeito de a própria Lei Federal n° 8.212/91 distinguir essa situação dos outros produtores rurais – diferenciando-os em segurado especial e contribuinte individual, respectivamente – a verdade é que, quanto à norma que rege a tributação propriamente dita, o legislador andou mal.
Verifica-se, portanto, que o Poder Constituinte Originário, em verdade, estabeleceu uma regra específica aos produtores rurais não empregadores, que em geral são os que praticam agricultura familiar e de subsistência, justamente pelo fato de que eles seriam eximidos do tributo tendo por base o inciso I do artigo 195, da Constituição Federal. Ademais, a base de cálculo ter sido estabelecida como a receita bruta obtida com sua produção nada mais foi do que uma forma de adaptar à realidade desse grupo de contribuintes, posto que não havia como fixar por base na folha de salário, fazendo com que todos os produtores rurais contribuam com a previdência.
Ocorre que, ao ampliar a aplicação da norma aos produtores empregadores, fez-se com que uma norma constitucional que era exceção – cujo objetivo era justamente evitar que produtores ficassem eximidos de contribuir – virasse regra, o que é inconstitucional.
Em seguida, sobreveio a Lei n° 8.861/1994, que alterou as alíquotas aplicáveis ao segurado especial e à pessoa física, criando-se uma diferenciação entre esses dois grupos. Posteriormente, com a Lei Federal Ordinária n° 9.528/1997, alterou-se novamente a redação do polêmico artigo 25: substituiu-se o termo “pessoa física” por “empregador rural pessoa física”, apenas por questões formais, e as alíquotas desses dois grupos foram unificadas novamente.
No ano subsequente, foi aprovada a Emenda Constitucional de n° 20, que alterou o sistema da Previdência Social. A mudança impactou diretamente no Funrural, vez que o texto supremo “passou a permitir especificamente que a seguridade social fosse também financiada por meio da tributação sobre a receita do empregador, algo que não era possível em sua redação original” (TAMARINDO. PIGATTO, 2018, p. 280).
Em 2001 houve nova alteração da redação do artigo 25 da Lei n° 8.212/91, dessa vez pela Lei Federal Ordinária n° 10.256, que tinha como objetivo afastar, de forma clara e concisa, a contribuição de 20% sobre a folha de salário pelo empregador rural pessoa física ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), restando claro que tal contribuinte somente estaria obrigado ao recolhimento do Funrural, pela alíquota trazida pela Lei n° 9.528/1997.
Sobreveio, então, em 2018, a Lei Federal Ordinária n° 13.606, que alterou novamente a redação do artigo 25, alterando-se a alíquota do aludido tributo.
Pois bem. Como se pode denotar do quanto exposto até aqui, o Funrural foi instituído pela Constituição Federal de 1988 com a finalidade de custear a Seguridade Social. A sua natureza jurídica de tributo é inquestionável, tratando-se, pois, de uma contribuição social, nos termos do artigo 195 da Constituição Federal e do artigo 10 da Lei Federal Ordinária n° 8.212/1991[6].
Em sendo o extinto Funrural classificado como contribuição social, merece destaque a sua natureza parafiscal.
Também vale expor o quanto o Professor Paulo de Barros Carvalho (2014, p. 67) disciplinou:
Apenas as contribuições para a seguridade social encontram, na Carta Magna, disciplina exaustiva das suas hipóteses de incidência, exigindo, para criação de novas materialidades, estrita observância aos requisitos impostos ao exercício da competência residual: instituição mediante lei complementar, não cumulatividade e hipótese de incidência e base de cálculo diversos dos discriminados na Constituição (art. 195, §4°).
A conclusão a que chega Paulo de Barros Carvalho se deve ao fato de que o artigo 195, §4°[7], da Carta Magna, faz remessa ao artigo 154, I, do mesmo texto, que está assim redigido:
Art. 154. A União poderá instituir:
I - mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;
Então, trata-se o Funrural, portanto, de tributo, mais especificamente de uma contribuição especial social, com caráter parafiscal, cuja finalidade é a de custear a Seguridade Social, mais precisamente, o fundo previdenciário destinado aos trabalhadores rurais, havendo as controvérsias acima narradas acerca das distorções do texto constitucional promovidas pelas diversas alterações legislativas da Lei n° 8.212/91, como restará explorado adiante.
1.2 Regra-matriz de incidência tributária do Funrural e suas polêmicas
O professor Paulo de Barros Carvalho (2014, p. 247) assim leciona:
[...] a construção do fato jurídico nada mais é que a constituição de um fraseado normativo capaz de justapor-se como antecedente normativo de uma norma individual e concreta, dentro das regras sintáticas ditadas pela gramática do direito, assim como de acordo com os limites semânticos arquitetados pela hipótese da norma geral e abstrata.
Do trecho alhures, pode-se compreender que o doutrinador se refere ao fenômeno da subsunção do fato à norma, incidindo determinada prescrição jurídica. E, no Direito Tributário, esse fenômeno é sintetizado por uma fórmula lógica desenvolvida pelo mesmo Paulo de Barros Carvalho, que é a chamada Regra-Matriz de Incidência Tributária (RMIT), que nada mais é do que “um esquema lógico em que, preenchido semanticamente com conteúdo jurídico-tributário, informa ao intérprete do Direito Positivo qual o teor prescritivo de uma determinada norma jurídica que institui tributo” (FEITOSA FILHO. BRAGHINI. 2015).
Essa fórmula é composta pelos antecedentes e consequentes da norma, sendo os primeiros compostos pelos critérios material, temporal e espacial e os segundos pelos critérios quantitativo e pessoal.
O critério material se resume ao verbo e seu respectivo que compõe o enunciado normativo; o temporal é quando o verbo foi executado; o espaço é onde se deu essa execução; o quantitativo é o valor do tributo em si, auferido pela base de cálculo e alíquota e, por fim, o critério pessoal se refere às pessoas que compõem essa relação jurídica, estando de um lado o sujeito ativo e de outro o passivo.
Originalmente, isto é, com a Lei 8.212/1991, o Funrural devido pelo empregador rural pessoa física tinha a seguinte composição (BRAGHINI, 2015): como critério material, a comercialização da produção rural; como critério temporal, o momento dessa comercialização; como espacial, o território nacional; como quantitativo, a receita bruta (base de cálculo) e a alíquota de 1,3% (atual) e, por fim, como critério pessoal tem-se a União Federal como sujeito ativo e o empregador rural pessoa física e o segurado especial como sujeitos passivos. Nos casos em que há comercialização da produção a empresa, esta fica sub-rogada ao tributo (artigo 30, IV, da Lei 8.212/91).
Ocorre que, em decorrência das diversas alterações legislativas e das decisões do Supremo Tribunal Federal acerca do tema, a doutrina majoritária entende que a Regra-Matriz do aludido tributo foi mutilada.
Originalmente, como já narrado anteriormente, o sujeito passivo era apenas o segurado especial, que não possui empregados e pratica a agricultura de subsistência. Posteriormente, abrangeu-se a norma ao produtor rural pessoa física que tivesse empregados[8], sendo estabelecido o fenômeno da sub-rogação para quando estes comercializassem com empresas.
Ocorre que, o legislador, ao tornar o empregador rural pessoa física como contribuinte do mesmo tributo tornou a exceção como regra. E, como se não bastasse, instituiu todos os adquirentes dos bens produzidos por esses sujeitos na condição de sub-rogados do tributo, ficando, portanto, responsáveis por seu recolhimento, nos termos previstos pelo artigo 30, inciso IV, da Lei n° 8.212[9].
E não é só: o legislador, além de violar essa exclusividade, equiparou os conceitos de faturamento e receita bruta; constituiu tributo não previsto na Constituição por lei ordinária, violando o artigo 195, § 4° da Constituição Federal; ofendeu ao princípio da isonomia, afinal, o único fator que distingue empregador pessoa física rural e urbana é o critério da zona de atuação; tem-se a questão do bis in idem, em que a mesma base de cálculo comporta mais de um tributo; e, por fim, tem-se também a discussão acerca de tributo sem alíquota.
Percebe-se, portanto, que a discussão acerca da constitucionalidade (ou não) do Funrural engloba questões formais e materiais. Com relação à primeira, tem-se a questão da ausência de lei complementar, sendo todas as demais referentes ao mérito.
A atual discussão sobre a constitucionalidade material do tributo, portanto, envolve toda a cadeia da sistemática do Funrural. Não à toa que a autora Fernanda Teodoro Arantes (2018) denunciou que houve, inclusive, a retomada do debate sobre quem é o verdadeiro contribuinte do tributo, denunciando que a discussão acerca da constitucionalidade afetou, inclusive, o critério pessoal da regra-matriz de incidência, como segue:
O agronegócio tem vivido um grande dilema desde a declaração de constitucionalidade do Funrural pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no RE n° 596.177, em repercussão geral, que, ainda sem regras claras, coloca todo o setor, desde o produtor rural até o adquirente da produção, em situação delicada.
Mais recentemente, a discussão se voltou sobre quem seria o sujeito passivo da relação jurídica, ou seja, quem estaria obrigado a realizar o recolhimento do Funrural.
A verdade é que a grande discussão em torno do Funrural se refere justamente aos critérios que compõem a Regra-Matriz desse tributo, que por muitos é tido como inconstitucional, justamente por vícios (ou até mesmo omissões) nos elementos que compõe essa Regra-Matriz, viciando, portanto, toda a sistemática do aludido tributo, matéria que será abordada adiante nesse trabalho, mais precisamente no Capítulo 3, através da análise de relevantíssimas decisões do STF sobre o tema.
2 – CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE PELO PODER JUDICIÁRIO
O controle de constitucionalidade, de forma sucinta, é o procedimento para verificar a (in)compatibilidade de determinada norma para com a Constituição Federal.
Os instrumentos de controle de constitucionalidade variam conforme o sistema de controle adotado. No Brasil, predomina o controle jurisdicional da constitucionalidade dos atos estatais, embora haja controle realizado por órgãos que não integram o Poder Judiciário (Controle político de constitucionalidade).
Exemplos deste são o controle realizado pelas Casas Legislativas, pelas Comissões de Constituição e Justiça e pelo veto do chefe do Poder Executivo a projeto de lei, com fundamento em inconstitucionalidade da proposição legislativa (veto jurídico). Nesses exemplos, a atuação é preventiva.
Embora a atuação das Casas Legislativas no controle da constitucionalidade seja em regra preventivo, o artigo 52, inciso X, da CF, possibilita que o Senado Federal suspenda a eficácia de determinada lei ou dispositivo que tenha sido declarado inconstitucional pelo STF, como segue:
Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:
[...]
X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
Trata-se, portanto, de um controle jurídico-repressivo do STF e político-repressivo por parte do Senado Federal.
Com relação ao controle jurisdicional, cumpre destacar que a sua classificação varia conforme órgão julgador e objeto da lide.
Quanto ao órgão, o controle jurisdicional pode ser difuso ou concentrado.
Será difuso quando exercido por juiz ou órgão do Poder Judiciário que não seja a Suprema Corte. Vale destacar que todo e qualquer magistrado pode declarar, de maneira incidental, a inconstitucionalidade de uma norma, ocasião em que sua decisão produzirá efeitos apenas em relação ao caso concreto em análise, via de regra, devendo-se observar a Cláusula da Reserva de Plenário, prevista no art. 97, da CF, e súmula vinculante n. 10.
Por sua vez, será concentrado na hipótese em que a decisão for de competência do órgão máximo, no caso o STF.
Quanto ao objeto, o controle jurisdicional pode ser classificado em concreto ou abstrato.
É considerado concreto na ocasião em que a decisão é proferida em processo subjetivo, que possui partes e que a inconstitucionalidade da norma é causa de pedir, e não o pedido em si.
O controle em abstrato, por sua vez, refere-se aos processos objetivos, em que há um procedimento especial cujo pedido é a própria declaração da (in)constitucionalidade da norma. Em âmbito nacional, essas ações somente podem ser ajuizadas perante a Suprema Corte, coincidindo, nesse caso, o controle abstrato com o controle concentrado.
Nesses casos, discute-se a norma em tese, não havendo um caso concreto (nem interesses subjetivos específicos a serem tutelados), ou seja, discute-se a norma em abstrato. Por essa razão, a doutrina chama esses processos de processos objetivos[10].
A via abstrata pode ser instaurada exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, por meio de uma das seguintes ações direitas (instrumentos):
a) Ação direta de inconstitucionalidade genérica (ADI);
b) Ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO);
c) Ação declaratória de constitucionalidade (ADC);
d) Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF);
e) Ação direta de inconstitucionalidade interventiva (ADI interventiva);
Apenas para fins didáticos, se o objeto da lide é uma norma estadual e tem como parâmetro a Constituição do respectivo Estado, somente se admite a propositura de ADI, a ser ajuizada perante o Tribunal de Justiça local; em se tratando de norma municipal, somente se admite a propositura de ADPF junto ao STF.
Nos processos objetivos, a declaração da inconstitucionalidade da norma produzirá, via de regra, efeitos ex tunc, retroagindo ab initio da vigência normativa.
No entanto, o artigo 27 da Lei 9.868/1999[11] prevê a possibilidade de, por motivos de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, o STF restrinja os efeitos da decisão, conceda eficácia ex nunc à decisão ou fixe outro momento para o início da eficácia de sua decisão, desde que o faça por maioria de 2/3 de seus membros.
Em verdade, esse dispositivo concedeu um amplo poder à Suprema Corte: ela poderá interpretar que apenas parte de determinada lei é inconstitucional, uma hipótese de aplicação da lei, ou, até mesmo, determinada interpretação legal, podendo indicar a partir de quando surtirão os efeitos dessa decisão[12].
Mas, para que não valha a regra geral anteriormente apontada, são dois os requisitos: que haja razão de segurança jurídica ou de excepcional interesse social e que 2/3 dos Ministros assim entendam necessário.
Além das ações originárias, o STF pode realizar o controle da constitucionalidade de determinada norma mediante julgamento de Recurso Extraordinário. E, inclusive, pode reconhecer Repercussão Geral a esse Recurso.
A particularidade no controle efetuado por meio do julgamento de Recurso Extraordinário é que se trata de um controle concreto. E, como leciona Orione Dantas de Medeiros (2013):
Diferentemente do que ocorre no controle concentrado, abstrato, a decisão no controle concreto não dispõe de força vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública, nem efeito erga omnes, ainda quando proferida pelo STF, ressalvados os casos admitidos e julgados em Recursos Extraordinários com Repercussão Geral.
Percebe-se, portanto, que, em regra, o julgamento de Recurso Extraordinário não possui eficácia erga omnes, mas apenas se reconhecida repercussão geral. O artigo 1.035, § 1° do Código de Processo Civil (Lei Federal Ordinária n°13.105/2015) classifica como repercussão geral:
Art. 1.035 [...]
§ 1° Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo.
Ainda, o Código aduz que “Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional” (art. 1.035, §5°).
Além disso, a partir do momento que o CPC/15 atribui como requisito de admissibilidade o reconhecimento de repercussão geral, todo Recurso Extraordinário que for admitido terá efeito erga omnes.
Ademais, o CPC/15 trouxe ao STF a possibilidade de modular efeitos na hipótese em que há alteração de jurisprudência dessa Corte, como segue:
Art. 927 (...)
§ 3° Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
Diante disso, pode-se verificar que as decisões proferidas em recurso extraordinário poderão impactar consideravelmente na sociedade como um todo.
Não à toa que o STF, em discutível decisão, mencionou, na Reclamação 4.335/AC, que houve uma verdadeira mutação constitucional do art. 52, X, da CF, sendo admitida a chamada abstrativização do controle difuso de constitucionalidade.
Adiante, serão analisados os julgamentos dos Recursos Extraordinários n° 363.852/MG, 596.177/RS, 718.874/RS e 761.263/SC, bem como a Resolução n° 15 do Senado Federal e os impactos e discussões que geram a toda sociedade brasileira.
3 – RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS NÚMEROS 363.852/MG, 596.177/RS, 718.874/RS E 761.263/SC
Como visto no capítulo anterior, ao Supremo Tribunal Federal é possibilitado efetuar o controle de constitucionalidade de determinada norma mediante decisão em sede de Recurso Extraordinário.
Trata-se de uma situação particular, em que a Corte analisa a compatibilidade da norma frente a um caso concreto, podendo, inclusive, modular efeitos, caso decida pela sua inconstitucionalidade.
Vale destacar, ainda, que à Suprema Corte é permitido reconhecer “repercussão geral” a determinado tema que será julgado em sede de Recurso Extraordinário, permitindo-se, assim, que a análise de um caso concreto se torne um precedente aos demais com matéria e fatos similares – trata-se da adoção de um leading case.
Pois bem. Dentre os Recursos Extraordinários selecionados, tem-se que aos de n° 596.177/RS E 718.874/RS foi reconhecida repercussão geral. Portanto, nesses ambos a abrangência é erga omnes. O RE 363.852/MG não teve esse reconhecimento, porém tal serviu como leading case para o RE 596.177/RS, como será visto adiante, o que lhe confere, automaticamente, essa abrangência universal.
3.1.1. RE 363.852/MG e RE 596.177/RS
Como exposto alhures, o Recurso Extraordinário n° 363.852/MG serviu como precedente para o 596.177/RS.
O primeiro é o famoso caso do Frigorífico Mataboi, em que este, substituto tributário de Funrural em decorrência do artigo 30, IV, da Lei n° 8.212/91, que prevê o fenômeno da sub-rogação, questiona a constitucionalidade do artigo 1° da Lei Federal n° 8.540/92, que trouxe nova redação aos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II e 30, inciso IV.
Em suma, o Frigorífico questionava a constitucionalidade da nova redação trazida pelo dispositivo alhures pelo fato de ter sujeitado passivamente o produtor rural pessoa física e empregador à contribuição de Funrural, além do segurado especial, que é a pessoa física que não possui empregados – que, na verdade, é a quem a CF destina o Funrural, ficando, desta forma, a Agroindústria sujeita ao recolhimento do tributo sempre que adquirir mercadoria desse novo sujeito passivo.
Para tanto, diversos argumentos também vieram à tona, como a discussão acerca dos conceitos de faturamento, receita e resultado, bem como a violação a princípios da isonomia e da vedação ao bis in idem.
Resumidamente, o debate sobre conceitos de faturamento, receita e resultado, que na realidade são termos mais contábeis do que jurídicos, é que, antes da Emenda Constitucional de 1998, o artigo 195, em seu inciso I, previa que as contribuições sociais dos empregadores incidiriam sobre a folha de salários, lucro e faturamento.
Ocorre que o agricultor familiar sem empregado restou impossibilitado de apurar o tributo tendo essas bases, razão pela qual se criou a exceção do §8° do mesmo artigo 195, fixando-se a base com fulcro na “receita bruta proveniente da comercialização da sua produção”, nos termos do artigo 25 da Lei n° 8.212/91.
Então, o legislador, ao atribuir o Funrural ao produtor rural pessoa física, fixou a este, que antes era enquadrado como empregador em geral, uma nova base de cálculo, até então não prevista, qual seja: a receita bruta. Isso restou devidamente elucidado no Voto-Vista proferido pelo Ministro Eros Grau, ao discorrer:
Não há, na redação anterior à Emenda Constitucional n. 20/98, previsão da receita bruta como base de cálculo da contribuição para a seguridade social. A exação consubstancia nova fonte de custeio para o sistema e apenas poderia ser instituída por lei complementar [art. 195, § 4° c/c art. 154, I, da CB/88].
Quanto ao argumento de equivalência entre as expressões “receita bruta” e “resultado da comercialização de sua produção”, lembre-se o recente posicionamento do Tribunal no julgamento dos Recursos Extraordinários ns. 346.084, 358.273, 357.950 e 390.840, sessão do dia 09.11.2005, que trataram de questão análoga com relação à base de cálculo do PIS e da COFINS.
Aqui a amplitude das expressões é ainda maior, uma vez que “receita bruta” é espécie do gênero “resultado”, que por sua vez não pode ser equiparado a “faturamento”.
Com relação à violação ao princípio da isonomia, expôs o Ministro Cezar Peluso, em seu Voto-Vista, que o empregador rural pessoa física passou a ter tratamento desigual e desfavorável em relação aos não rurais[13].
Finalmente, verifica-se a duplicidade (bis in idem), o que é vedado pela Carta Magna (se não estiver nela previsto), no fato de o produtor rural contribuir para a seguridade social tomando por base a receita ou o faturamento e o resultado de sua comercialização, como segue destacado em trecho extraído do Voto do Relator Ministro Marco Aurélio:
[...] Já aqui surge duplicidade contrária à Carta da República, no que, conforme o artigo 25, incisos I e II, da Lei n° 8.212, de 24 de julho de 1991, o produtor rural passou a estar compelido a duplo recolhimento, com a mesma destinação, ou seja, o financiamento da seguridade social – recolhe, a partir do disposto no artigo 195, inciso I, alínea “b”, a COFINS e a contribuição prevista no referido artigo 25. Vale frisar que, no artigo 195, tem-se contemplada a situação única em que o produtor rural contribui para a seguridade social mediante a aplicação de alíquota sobre o resultado de comercializada da produção, ante o disposto no § 8° do citado artigo 195 – a revelar que, em se tratando de produtor, parceiro, meeiro e arrendatários rurais e pescador artesanal bem como dos respectivos cônjuges que exerçam atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, dá-se a contribuição para a seguridade social por meio de aplicação de alíquota sobre o resultado da comercialização da produção. A razão do preceito é única: não se ter, quanto aos nele referidos, a base para a contribuição estabelecida na alínea “a” do inciso I do artigo 195 da Carta, isto é, a folha de salários. Daí a cláusula contida no § 8° em análise “...sem empregados permanentes...”.
Retornando ao cerne da discussão do Extraordinário, em que o Frigorífico Mataboi questionava a constitucionalidade do artigo 1° da Lei n° 8.540/9 pelo fato de se criar um novo tributo a determinada categoria de contribuintes em inobservância da Carta Magna, o Ministro Cezar Peluso, em seu Voto-Vista, muito bem resumiu toda a discussão, como segue:
Em primeiro lugar, salta aos olhos que a contribuição social foi criada de forma teratológica: enxertou-se regra, aplicável exclusivamente às pessoas físicas produtores rurais, sem empregados permanentes (art. 195, §8°), a quaisquer produtores rurais pessoas físicas, inclusive àqueles – e este é o cerne da controvérsia – que lançam mão da colaboração de empregados.
Ora, a contribuição sobre o resultado da comercialização da produção rural do art. 195, § 8°, existe precisamente porque seu destinatário – o produtor rural sem empregados permanentes – não pode, é óbvio, contribuir sobre a folha de salários, faturamento ou receita, já que não dispõe de empregados, nem é pessoa jurídica ou entidade a ela equiparada.
Logo, é imediata a conclusão de que o sujeito passivo objeto pela parte inicial do art. 25 não se enquadra na exceção do art. 195, § 8°, reservada, em caráter exclusivo, ao segurado especial, que recebe proteção constitucional em vista de sua vulnerabilidade socioeconômica.
Não entrando na exceção do art. 195, § 8°, subsume-se o empregador rural pessoa física à regra geral do art. 195, I, que estabelece a contribuição social devida pelo empregador, sobre diferentes bases de cálculo, notadamente a folha de salários – dentre os quais não se encontra, está claro, o “resultado” ou a “receita bruta proveniente da comercialização de sua produção”.
Essa razão já bastaria ao reconhecimento da inconstitucionalidade da contribuição social. Há, contudo, outras ofensas à Constituição.
Apesar dos diversos votos-vista, o Frigorífico se sagrou vencedor por unanimidade, sendo o artigo 1° da Lei n° 8.540/91 declarado inconstitucional, por meio de controle de constitucionalidade concreto, ficando assim ementado:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO - PRESSUPOSTO ESPECÍFICO - VIOLÊNCIA À CONSTITUIÇÃO - ANÁLISE - CONCLUSÃO. Porque o Supremo, na análise da violência à Constituição, adota entendimento quanto à matéria de fundo do extraordinário, a conclusão a que chega deságua, conforme sempre sustentou a melhor doutrina - José Carlos Barbosa Moreira -, em provimento ou desprovimento do recurso, sendo impróprias as nomenclaturas conhecimento e não conhecimento. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL - COMERCIALIZAÇÃO DE BOVINOS - PRODUTORES RURAIS PESSOAS NATURAIS - SUB-ROGAÇÃO - LEI Nº 8.212/91 - ARTIGO 195, INCISO I, DA CARTA FEDERAL - PERÍODO ANTERIOR À EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20/98 - UNICIDADE DE INCIDÊNCIA - EXCEÇÕES - COFINS E CONTRIBUIÇÃO SOCIAL - PRECEDENTE - INEXISTÊNCIA DE LEI COMPLEMENTAR. Ante o texto constitucional, não subsiste a obrigação tributária sub-rogada do adquirente, presente a venda de bovinos por produtores rurais, pessoas naturais, prevista nos artigos 12, incisos V e VII, 25, incisos I e II, e 30, inciso IV, da Lei nº 8.212/91, com as redações decorrentes das Leis nº 8.540/92 e nº 9.528/97. Aplicação de leis no tempo - considerações.
O Recurso Extraordinário n° 596.177/RS, por sua vez, tratava da mesma matéria. Porém, nessa oportunidade, quem discutia a constitucionalidade do tributo era um produtor rural pessoa física em si, ou seja, o contribuinte de direito, e não mais o sub-rogado, contribuinte de fato. Embora exista essa divergência, a discussão e a conclusão entre os casos são idênticas. Tanto é que o RE 596.177/RS restou assim ementado:
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL PREVIDENCIÁRIA. EMPREGADOR RURAL PESSOA FÍSICA. INCIDÊNCIA SOBRE A COMERCIALIZAÇÃO DA PRODUÇÃO. ART. 25 DA LEI 8.212/1991, NA REDAÇÃO DADA PELO ART. 1º DA LEI 8.540/1992. INCONSTITUCIONALIDADE. I – Ofensa ao art. 150, II, da CF em virtude da exigência de dupla contribuição caso o produtor rural seja empregador. II – Necessidade de lei complementar para a instituição de nova fonte de custeio para a seguridade social. III – RE conhecido e provido para reconhecer a inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 8.540/1992, aplicando-se aos casos semelhantes o disposto no art. 543-B do CPC.
O Relator do caso, Ministro Ricardo Lewandowski, fez questão de tocar justamente na relação com o RE 363.852/MG, como segue:
Inicialmente, ressalto que ao manifestar-me pela existência de repercussão geral da matéria aqui tratada consignei que o RE 363.852/MG, da relatoria do Min. Marco Aurélio, o qual trata da mesma questão, já estava em discussão no Plenário desta Corte.
[...]
Por essas razões, conheço do recurso extraordinário e dou-lhe provimento para declarar a inconstitucionalidade do art. 1° da Lei 8.540/1992, que deu nova redação aos arts. 12, V e VII, 25, I e II, e 30, IV, da Lei 8.212/1991, e determino a aplicação desse entendimento aos demais casos, nos termos do art. 543-B do CPC.
Vale destacar que foi reconhecida repercussão geral a esse recurso, como bem concluiu o Relator, sendo o voto deste aprovado por unanimidade. Também é de se pontuar que nessa oportunidade não foi acatada a tese de duplicidade na cobrança, tampouco houve apreciação da Lei n° 10.256/01, como restou decidido em sede de Embargos de Declaração:
EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. FUNDAMENTO NÃO ADMITIDO NO DESLINDE DA CAUSA DEVE SER EXCLUÍDO DA EMENTA DO ACÓRDÃO. IMPOSSIBILIDADE DA ANÁLISE DE MATÉRIA QUE NÃO FOI ADEQUADAMENTE ALEGADA NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO NEM TEVE SUA REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. INEXISTÊNCIA DE OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO OU OMISSÃO EM DECISÃO QUE CITA EXPRESSAMENTE O DISPOSITIVO LEGAL CONSIDERADO INCONSTITUCIONAL. I – Por não ter servido de fundamento para a conclusão do acórdão embargado, exclui-se da ementa a seguinte assertiva: “Ofensa ao art. 150, II, da CF em virtude da exigência de dupla contribuição caso o produtor rural seja empregador”(fl. 260). II – A constitucionalidade da tributação com base na Lei 10.256/2001 não foi analisada nem teve repercussão geral reconhecida. III – Inexiste obscuridade, contradição ou omissão em decisão que indica expressamente os dispositivos considerados inconstitucionais. IV – Embargos parcialmente acolhidos, sem alteração do resultado.
Por consequência desses julgamentos, o Funrural devido por pessoa física empregadora e produtora rural não era mais devido, restando apenas e tão-somente o segurado especial como sujeito passivo desse tributo, como preleciona o artigo 195, § 8° da CF e a redação original do artigo 25 da Lei 8.212/91. Mas e sob a ótica da Lei Federal 10.256/01?
3.1.2. RE 718.874/RS (TEMA 669)
O Recurso Extraordinário 718.874/RS, que teve Repercussão Geral reconhecida (Tema 669), julgou justamente a constitucionalidade do artigo 1° da Lei Federal 10.256/01, que trouxe uma nova redação ao contestado artigo 25 da Lei 8.212/91.
O julgamento desse Recurso seguiu certa lógica: inicialmente, o plenário tratou de afastar os precedentes que julgaram o tributo inconstitucional – tratando da admissibilidade do Recurso, portanto. Em seguida, trataram dos pontos controvertidos em questão e, finalmente, ao julgamento em si.
O Relator (Ministro Edson Fachin) realizou o distinguishing[14], e estabeleceu os pontos controvertidos, nos seguintes termos:
A controvérsia reside na constitucionalidade da contribuição social a ser recolhida pelo empregador rural pessoa física, conforme previsão do artigo 25 da Lei 8.212/91, com a redação dada pela Lei ordinária 10.256/2001, posterior à Emenda Constitucional 20/1998.
Da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, colhe-se que o Tribunal Pleno já assentou a inconstitucionalidade formal da contribuição à seguridade social incidente sobre a comercialização da produção de empregador rural pessoa física, na redação dada pelas Leis 8.540/1992 e 9.528/97. [...]
[...] Nesse momento, torna-se cabível avaliar quatro ordens de argumentos a seguir descritas. Inicialmente, a exclusividade da base de cálculo prevista no art. 195, §8º, da Constituição Federal, dado que a norma constitucional somente prevê o segurado especial como sujeito passivo dessa contribuição social.
Após, o tributo previsto no artigo 25 da Lei 8.212, com a redação dada pelo art. 1º da Lei 10.256/2001, desborda do rol de fontes constitucionais para o financiamento da seguridade social, demandando, então, a forma de lei complementar para sua instituição, nos termos do art. 195, §4º, da Carta Constitucional.
Ademais, há uma ofensa ao princípio da isonomia, pois as disposições impugnadas promovem uma injusta diferenciação entre empregador pessoa física nas espacialidades rural e urbana.
Por fim, a alegação de violação ao ne bis in idem entre contribuições sociais relativamente ao mesmo contribuinte, haja vista que sobre a mesma base de cálculo incidiria a contribuição social para o “FUNRURAL” e a contribuição substitutiva.
Em suma, o esforço hermenêutico consiste em analisar se os vícios anteriormente apontados no art. 25 da Lei 8.212/91 foram saneados pela legislação ulterior, notadamente pelo art. 1º da Lei 10.256/01, já sob a égide do novo parâmetro constitucional. Logo, convém perquirir, uma a uma, as alegações da parte Requerente.
O relator assim julgou os quatro pontos controvertidos:
1° - Exclusividade da base de cálculo ao segurado especial:
Em primeiro lugar, resta claro que o §8º do artigo 195 não respalda normativamente a contribuição social em discussão, uma vez que a norma cinge-se a um rol taxativo de contribuintes, por razões extrafiscais. Nesse sentido, os requisitos constitucionais para a contribuição sobre o resultado da produção dos produtores rurais pessoa física são o exercício de atividade laboral em regime de economia familiar e a inexistência de empregados permanentes. Não há espaço interpretativo, portanto, para subsumir o empregador rural pessoa física a este dispositivo constitucional.
2° - Necessidade da edição de Lei Complementar para instituição de nova base de cálculo:
Em síntese, o novel diploma legislativo padece da mesma inconstitucionalidade formal, já assentada por esta Corte, pois um tributo, cuja base de cálculo é a receita bruta proveniente da comercialização da produção de empregador rural pessoa física, desborda das fontes constitucionalmente previstas para o custeio da seguridade social, por conseguinte a instituição dessa nova contribuição demandaria a forma da lei complementar.
3° - Ofensa ao princípio da isonomia:
Por outro lado, torna-se imperativo anotar que a tese da inconstitucionalidade material da norma impugnada também se reforça diante de patente violação ao princípio da isonomia, porquanto há injustificado tratamento diferenciado em relação aos empregadores pessoa física, a depender da ambiência do labor, se urbano ou rural. Há, então, a discriminação na perspectiva legal que se revela inadequada do ponto de vista constitucional.
4° - Violação ao ne bis in idem:
Em relação ao quarto e último argumento, cumpre atestar que ocorre dupla tributação inconstitucional na presente hipótese. Veja-se que para atrair a vedação ao bis in idem, deve-se previamente preencher os pressupostos justificadores desse princípio: (i) a identidade de sujeito; (ii) o bis que se traduz na existência de uma anterior imputação de relação obrigacional de natureza tributária pelo Poder Público; e (iii) o idem como hipóteses de incidência e fatos geradores substancialmente idênticos no mesmo contexto espacial e temporal.
Assim sendo, em analogia material legítima, procede a afirmação de que o empregador rural pessoa física é duplamente tributado, em razão da incidência simultânea de contribuições sociais.
Ainda, no voto do Relator, interessante destacar trecho em que ele cita que a Lei 10.256/01 reinseriu o empregador rural pessoa física como contribuinte do Funrural, mas “sem dispor expressamente sobre os demais elementos da regra-matriz de incidência tributária, “apropriando-se”, por referência, do binômio “base de cálculo/fato gerador” e da alíquota já prevista para a figura do segurado especial”, o que, nas palavras do Ministro Ricardo Lewandowski, exposta em seu voto, “a lei ficou capenga; ficou um caput, como se ficasse uma cabeça - caput em latim é cabeça - sem as pernas, que são os incisos; sem os elementos definidores da base de cálculo, das alíquotas etc.”.
Em seguida, o Relator sugeriu que ao Tema 669 fosse proferida a seguinte conclusão:
É inconstitucional a contribuição a ser recolhida pelo empregador rural pessoa natural incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização de sua produção destinada ao FUNRURAL, à luz do previsto no art. 25 da Lei 8.212/1991, com redação dada pelo art. 1° da Lei 10.256/2001.
O Ministro Alexandre de Moraes, por sua vez, apresentou divergência. Para tanto, ele explanou que o Funrural passou por quatro momentos cronologicamente sucessivos, que, em resumo, são esses:
1° Momento – Artigo 195, §8° e redação original do artigo 25 da Lei n° 8.212/91: único destinatário da norma era o segurado especial, portanto, não havia qualquer óbice à regra;
2° Momento – Edição da Lei n° 8540/92: inconstitucionalidade da nova redação trazida pela lei, vez que instituiu tributo a um novo grupo de contribuinte sem estabelecer base de cálculo prevista pelo artigo 195, inciso I da CF;
3° Momento – Edição da Emenda Constitucional n° 20/98: com a modificação da Carta Magna, passou a existir a previsão de que a contribuição dos empregadores rurais pudesse incidir sobre sua respectiva receita. A Lei n° 10.256/01, por sua vez, regulamentou essa possibilidade, como segue em trecho de seu voto:
Em relação ao empregador rural, portanto, as alterações da EC nº 20/98 e da Lei 10.256, de 9 de julho de 2001, afastaram o principal e remanescente argumento que levou o Supremo Tribunal Federal a desobrigar os empregadores rurais pessoas físicas da retenção e do recolhimento da contribuição social ou do seu recolhimento por sub-rogação sobre a receita bruta proveniente da comercialização da produção rural, qual seja, a inconstitucionalidade formal, pois a nova redação do inciso I do artigo 195 da CF passou a permitir a edição de lei ordinária para a instituição e cobrança da contribuição com base de cálculo receita. E essa nova lei foi editada.
4° Momento – Afastamento do §4°do artigo 195, da CF: com a EC 98/98, que alterou o inciso I do mesmo dispositivo, passando a prever a “receita” como base de cálculo à contribuição devida pelo empregador, afastou-se a incidência do §4°, o qual remete ao artigo 154, exigindo a edição de lei complementar para instituir contribuição sobre “outras fontes”.
Ainda, no voto divergente apresentado pelo Ministro Alexandre de Moraes, merece destaque o trecho em que ele rebate os argumentos trazidos pelo Relator (Ministro Edson Fachin) de que a nova redação do artigo 25 trazida pela Lei 10.256/01 se encontrava incompleta, posto que apenas previa o sujeito passivo, não estabelecendo base de cálculo, alíquota, etc., vez que estes elementos constam nos incisos do aludido dispositivo, incisos estes que à época do julgamento tinham redação prevista pela Lei n° 9.528/97 (a Lei 13.606/18 alterou a redação dos incisos), defendendo que a Suprema Corte, nas decisões anteriores, somente julgou inconstitucional o trecho pertinente ao produtor rural empregador, permanecendo o dispositivo vigente para o segurado especial, sendo os incisos plenamente válidos e eficazes, não acarretando qualquer prejuízo a ausência desses elementos na Lei 10.256/01, posto que já previstos por lei anterior, que nunca deixou de vigorar para o segurado especial.
Nesse diapasão, concluiu o Ministro Alexandre de Moraes pela constitucionalidade da nova redação do artigo 25 trazido pela Lei 10.256, sendo seguido pela maioria apertada do Plenário (seis votos a cinco), concluindo que “É constitucional, formal e materialmente a contribuição social do empregador rural pessoa física, instituída pela Lei 10.256/01, incidente sobre a receita bruta obtida com a comercialização de sua produção”.
Em sede de embargos de declaração, o Pleno do STF concluiu pela impossibilidade de modular efeitos tendo em vista o julgamento pelo reconhecimento da constitucionalidade do tributo.
3.1.2. RE 761.263/SC (TEMA 723)
Conforme expôs o Min. Edson Fachin em seu voto de divergência, o RE 761.263/SC, que originou o Tema de Repercussão Geral n. 723, diverge do Tema 669 por conta do sujeito passivo da relação jurídico-tributária: enquanto o Tema 669 abrange o empregador rural pessoa física, o Tema 723 se refere ao segurado especial, que é a pessoa que desempenha sua atividade em regime de economia familiar[15].
O Relator, Min. Alexandre de Moraes, fez uma síntese dos fundamentos jurídicos utilizados pelo contribuinte:
a. A inconstitucionalidade do art. 25 da Lei 8.212/1991, declarada pelo STF, em face das alterações promovidas pela Lei 8.450/1992 e 9.528/1997, com base nos julgamentos dos RREE 363.852 e 596.177.
b. A imprecisão de equiparar a previsão de “resultado da comercialização” com “receita bruta”.
c. A necessidade de edição de lei complementar, nos termos dos artigos 195, § 4º, e 154, I, da CONSTITUIÇÃO FEDERAL, para instituição de nova fonte de custeio, com base na receita bruta.
Em seu voto, o Min. Enfrenta cada um dos argumentos de maneira pormenorizada e sistematizada.
Em relação ao primeiro argumento, o Min. sustenta, em suma, que a declaração incidental da inconstitucionalidade do art. 25 da Lei 8.212/91 se restringiu ao empregador rural pessoa física, “sem, contudo, extinguir erga omnes a referida obrigação tributária, que continuou existente para os segurados especiais, com respectivas alíquotas e base de cálculo constitucionais para essas situações”[16].
No que se refere ao segundo argumento, sustentou o Min. Relator que “não dão razão ao ora recorrente. Isso porque, nos REs 363.852 e 596.177, considerou-se inconstitucional a base de cálculo prevista nos incisos I e II do art. 25 da Lei 8.212/1991 somente em relação ao empregador rural, no que houve a declaração incidental para um caso concreto e sem a aplicação do art. 52, X, da CARTA MAGNA, para fins de retirada da norma pelo Senado Federal, inexistindo a transcendência prevista para que se retirasse do ordenamento jurídico, consoante registrado nos apartes do RE 718.874”[17].
Por fim, o Min. afasta o terceiro argumento sustentando ser “(...) absolutamente legítima a previsão, em lei ordinária, da contribuição do segurado especial tendo por base a receita bruta proveniente da comercialização de sua produção. Diferentemente do que sustenta o recorrente, tal exação tem por fundamento constitucional o § 8º, e não o § 4º do art. 195 (...)”.
Essa decisão foi fruto de embargos declaratórios, os quais foram rejeitados pelo STF.
3.2. O conflito interno entre as decisões do STF e o conflito externo para com o Senado Federal, em razão da Resolução n° 15/2017.
Do quanto exposto alhures vê-se claramente que a Emenda Constitucional n° 20/98 foi um verdadeiro divisor de águas, posto que, após a sua edição, permitiu-se que aos empregadores em geral fosse fixada a receita como base de cálculo, afastando, assim, a incidência do artigo 195, §4°, da CF, e, consequentemente, a necessidade da edição de Lei Complementar para fixar a receita como base de cálculo ao empregador rural.
Ainda, a nova redação ao artigo 25 da Lei 8.212/91 trazida pelo artigo 10.256/01 foi sagaz, vez que eliminou, de uma só vez, dois pontos que eram tidos como inconstitucionais.
O legislador, ao inserir o trecho “em substituição à contribuição de que tratam os incisos I e II do art. 22”, afastou a duplicidade da contribuição, que foi decisiva no caso do “Mataboi”, bem como a incompatibilidade para com o princípio da isonomia, pois tal se dava justamente pelo fato de que o empregador rural deveria pagar a mesma contribuição que o empregador urbano e ainda o Funrural.
Contudo, o legislador não teve a mesma felicidade ao não trazer os demais elementos que compõem a regra-matriz de incidência tributária. Isso porque a Lei 10.256, nas palavras de Fábio Calcini (2017), não restituiu “a base de cálculo e alíquotas, pois os incisos foram declarados inconstitucionais formal e materialmente pelo Supremo Tribunal Federal, o que não se pode negar, pois consta expressamente da decisão (ementa) e parte dispositiva”. Em outras palavras, prevalece a tese do Lewandowski de que se trata de um tributo somente com cabeça.
Isso se deve ao fato de que, até o momento, o Supremo Tribunal Federal de fato não enfrentou os precedentes anteriores.
Embora o voto vencedor defenda que os incisos I e II, que instituem a base de cálculo e alíquota do tributo, restaram válidos e vigentes ao segurado especial, o que restou confirmado no julgamento do Tema 723, o fato é que, a partir do momento que se trata de contribuinte diverso, a regra-matriz de incidência tributária é distinta e, consequentemente, a norma jurídica também.
Ao passo que se pode defender a vigência para o outro grupo de contribuinte (segurado especial), pode-se plenamente alegar que as decisões anteriores do próprio órgão julgaram inconstitucionais os aludidos incisos com relação ao produtor rural pessoa física, logo, o legislador deveria introduzir as novas regras a esse contribuinte. E não o STF ao fazer uma análise superveniente dos julgados anteriores, enquadrando a decisão ao interesse da União, posto que a inconstitucionalidade do tributo trará severos prejuízos ao cofre público.
Não à toa que o Senado Federal, utilizando-se da prerrogativa prevista pelo artigo 52, inciso X, da CF, acima explanada, assim determinou, com a publicação da Resolução n°15/2017:
Art. 1º É suspensa, nos termos do artigo 52, inciso X, da Constituição Federal, a execução do inciso VII do artigo 12 da Leiº 8.212, de 24 de julho de 1991, e a execução do art. 1º da Leiº 8.540, de 22 de dezembro de 1992, que deu nova redação ao artigo 12, inciso V, ao art. 25, incisos I e II, e ao artigo 30, inciso IV, da Leiº 8.212, de 24 de julho de 1991, todos com a redação atualizada até a Leiº 9.528, de 10 de dezembro de 1997, declarados inconstitucionais por decisão definitiva proferida pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 363.852.
Isto é, o próprio legislativo, rebatendo uma decisão do STF, invocou outro precedente deste órgão para suspender a eficácia de lei que o próprio legislativo editou.
Quer dizer, de um lado se tem o órgão máximo instituindo um novo tributo ao firmar a tese de que os incisos I e II podem ser plenamente aplicados ao produtor rural pessoa física, posto que continuaram válidos no mundo jurídico, vez que plenamente aplicáveis ao segurado especial, confrontando com precedente anterior do mesmo Órgão; e de outro o Senado Federal que, atendendo aos interesses da bancada ruralista se utilizou de mecanismo previsto pela Constituição para confrontar o STF para com ele mesmo.
Como solução para essa insegurança jurídica motivada pelo órgão Supremo, a bancada ruralista do Congresso Nacional editou a Lei Federal Ordinária n° 13.606/2018, a qual regulamenta o Programa de Regularização Tributária Rural (PRR), que concedeu aos contribuintes e sub-rogados desconto integral de multa, de juros e até mesmo de honorários, nos casos em que há discussão judicial, ficando somente devido o tributo com correção monetária.
O projeto foi vetado pelo presidente Michel Temer. Contudo, o Congresso derrubou o veto do Chefe do Executivo, mantendo o desconto inicial.
Nesse sentido, embora o país estivesse em uma situação econômica delicada, o Congresso entendeu por bem que o contribuinte não pode ser prejudicado pela morosidade do judiciário.
Mesma sorte, no entanto, não foi conferida ao segurado especial – produtor rural familiar que não possui empregados fixos -, o qual não contou com lei favorável permitindo a adesão ao Programa de Regularização Tributária Rural posteriormente ao julgamento do Tema 723, grupo de contribuinte que possui o maior grau de vulnerabilidade.
Essa ausência de tratamento legislativo similar acaba por ferir a isonomia tributária.
Diante de tudo o que foi explanado até aqui, tem-se que o recém julgado RE 718.874/RS, que declarou a constitucionalidade do Funrural devido por produtor e empregador rural pessoa física, estabeleceu, na verdade, um cenário de grave crise institucional da Corte Suprema para com ela própria, com o Senado e até mesmo com o Congresso Nacional e com o Poder Executivo, deixando o contribuinte atordoado.
Isso porque, em 2010, quando já vigente a Lei 10.256/01, o STF declarou a inconstitucionalidade do aludido tributo nos termos da redação trazida pela Lei n° 8.540/92.
Nessa ocasião, a contribuição devida pelo empregador e produtor rural pessoa física foi extinta como um todo, inclusive suas alíquotas. Vale destacar que a norma permaneceu vigente ao segurado-especial, a quem ela originalmente se destina.
Em seguida, sobreveio a recente decisão, que declarou o tributo constitucional nos termos da redação dada pela Lei n° 10.256/01. Ocorre que esta reestabeleceu o tributo a essa categoria de contribuinte sem trazer critério quantitativo essencial para a consolidação da regra matriz de incidência (RMIT) do Funrural devido pelo empregador e produtor rural pessoa física, qual seja, a alíquota.
Ora, a ausência desse critério afasta a norma consequente da aludida contribuição, tornando-a inconclusiva. Quer dizer, a subsunção do fato à norma carece de quantificação, tornando-a inócua. Nos termos do Ministro Lewandowki, “a lei ficou capenga; ficou um caput, como se ficasse uma cabeça - caput em latim é cabeça - sem as pernas, que são os incisos; sem os elementos definidores da base de cálculo, das alíquotas etc.”.
Nesse diapasão, o STF, ao declarar o tributo inconstitucional com relação ao empregador e produtor rural pessoa física, remanescendo no que toca ao segurado-especial, maculou a norma como um todo: desde o seu antecedente até seu consequente, retirando a RMIT que havia sido introduzida pelo artigo 1° da Lei 8.540/92 do ordenamento jurídico.
Quer dizer: o tributo deixou de existir para essa categoria de contribuinte. Para o segurado-especial, que segue RMIT diversa, a contribuição remanesceu normalmente.
Mas, com a máxima e devida vênia ao STF, fala-se de duas RMIT’s diversas: uma veiculada ao segurado-especial e outra ao produtor e empregador rural pessoa física.
Nesse teor, a Lei 10.256/01, embora esteja compatível com a Constituição Federal no que toca à questão da base de cálculo e da não violação ao bis in idem, criou um tributo incompleto, vez que não estabeleceu suas alíquotas. E, justificar a sua constitucionalidade sob crivo de que a norma anteriormente declarada inconstitucional permaneceu vigente no que toca ao segurado-especial é, no mínimo, uma afronta ao princípio da legalidade e da segurança jurídica, afinal, são contribuintes e regras-matrizes diversas, o que não permite a aplicação por analogia – afinal, a alíquota vigente até hoje é a destinada ao segurado-especial.
Recentemente, com a promulgação da Lei Federal 13.606/18, resolveu-se a questão da ausência de alíquota; contudo, no período compreendido entre a Lei 8.540/92 e a 13.606, o tributo não tinha alíquota que o regulamentasse.
Ademais, vale destacar a inconstitucionalidade da ampliação do Funrural aos demais agentes do setor agropecuário, dentre eles o próprio segurado especial, a despeito da decisão exarada no Tema 723, com repercussão geral reconhecida, pelo STF.
É nítido que o Poder Constituinte Originário estabeleceu um regime de exceção aos produtores rurais que exercem atividade em caráter subsidiário, para que assim pudessem também contribuir para o custeio da Previdência Social.
Se ao princípio da isonomia prevista pela Constituição federal vale a máxima Aristotélica de “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”, o legislador, ao tornar regra norma que era excepcional, violou tal princípio.
E o pior: o único critério que distingue o empregador rural do urbano é a atividade que aquele exerce, denunciando mais uma violação a esse princípio, posto que inexistente justificativa plausível. E mais: embora a alíquota seja inferior, nem sempre é vantajosa, posto que a base de cálculo aplicável àquele empregador é bem superior do que ao urbano.
Além da questão acerca da constitucionalidade do Funrural, tem-se a postura do Poder Judiciário, sobretudo do STF, que contribuiu para a criação de um cenário de tremenda insegurança jurídica.
Isso porque o órgão demorou quase oito anos para apreciar o RE 363.852/MG, importante precedente para julgamento do RE 596.177/RS, este com repercussão geral, que ingressou no STF em novembro de 2002, sendo julgado somente em fevereiro de 2010, tendo julgado inconstitucional uma lei que não estava mais vigente desde 2001.
Em seguida, somente em março de 2017, por meio do RE 718.874/MG, é que o tributo foi apreciado sob a égide da legislação que estava vigente. Mas, vale destacar que o recurso ingressou no STF em outubro de 2012 e teve repercussão geral reconhecida em agosto de 2013.
Enquanto o Judiciário retardava o seu parecer, inúmeras ações judiciais foram ajuizadas para cessar a cobrança e o recolhimento do tributo controvertido. Anos e anos aguardando algum posicionamento concreto do Judiciário, que se esperava pela ratificação dos entendimentos anteriores, o que não ocorreu.
O STF se utilizou de uma tese completamente inovadora, utilizando alíquota “emprestada”, isto é, destinada a outra categoria de contribuinte (no caso, ao segurado-especial).
Essa mudança de entendimento acalorou o conflito do Senado para com o STF, que por sinal foi causado pelos próprios entes: isso porque o Congresso criou norma sem corpo, quando teve a oportunidade de fazê-lo (Lei 10.256/01) e porque o STF mudou de entendimento se utilizando de tese inovadora e controvertida.
Então, se a Resolução n° 15/2017 do Senado for levada em consideração, o tributo não é devido – ao menos até o início da vigência da Lei 13.606/2018. Mas qual segurança a suspensão da eficácia da norma gera ao contribuinte?
Na aludida decisão, se por um lado teve a mudança de entendimento da própria Corte sob uma justificativa inovadora e altamente contestada pela doutrina, gerando conflito até mesmo com o Senado Federal, tem-se como ponto positivo o julgamento pela impossibilidade de modular efeitos ao reconhecer a constitucionalidade de uma norma.
Tudo bem que o STF demorou a decidir, o que prejudicou severamente os contribuintes (e a própria União), mas uma vez declarado constitucional o tributo, deve-se zelar pela segurança jurídica e garantir a soberania da Constituição.
A questão levantada pelo Fachin, no julgamento dos Embargos de Declaração no RE 718.874/RS, de que o contribuinte não pode ser lesado pela demora do Judiciário, tem fundamento, mas, com a devida vênia, não deve prevalecer à Constituição. Isto é, de fato o contribuinte não pode ser prejudicado, mas tem-se que se buscar outras soluções para isso e não agravar ainda mais a insegurança jurídica ocasionada pela mudança (injustificada) de entendimento a partir da modulação de efeitos para declaração de constitucionalidade, o que seria teratológico.
Nesse sentido, discorda-se da mudança de entendimento do STF, sendo a redação dada pela Lei 10.256/01 ao artigo 25 da Lei 8.212/91 inconstitucional; mas, uma vez declarada constitucional, compreende-se como certa a impossibilidade da modulação de efeitos, posto que postura contrária somente agravaria a insegurança jurídica ocasionada pelo órgão.
Assim, a possibilidade do parcelamento do débito com diversos benefícios se mostrou como uma alternativa sadia, embora não tenha sido estendida ao segurado especial, o que fere a isonomia e prejudica contribuinte vulnerável, que pratica agricultura familiar.
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Site: http://www.stf.jus.br
[1] Redação original do art. 195, §8°:
§ 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais, o garimpeiro e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei.
Disponível em: <http://crfb20anos.net84.net/1_14_Texto-Original-1988-.html>, acesso em 26 abr. 2018.
[2] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm>, acesso em 26 abr. 2018.
[3] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8212orig.htm>, acesso em 26 abr. 2018.
[4] Ibidem.
[5] Redação original. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8212orig.htm>, acesso em 26 abr. 2018.
[6] Art. 10. A Seguridade Social será financiada por toda sociedade, de forma direta e indireta, nos termos do art. 195 da Constituição Federal e desta Lei, mediante recursos provenientes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de contribuições sociais.
[7] Art. 195. [...] § 4º A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I.
[8] De forma sucinta, “Produtor Rural” é definido como a “pessoa física ou jurídica que explora a terra, com fins econômicos ou de subsistência, por meio da agricultura, da pecuária, da silvicultura, do extrativismo sustentável, da aquicultura, além de atividades não-agrícolas, respeitada a função social da terra” (Projeto de Lei do Senado n° 325/2006[8]).
[9] Art. 30. A arrecadação e o recolhimento das contribuições ou de outras importâncias devidas à Seguridade Social obedecem às seguintes normas
[...]
IV - a empresa adquirente, consumidora ou consignatária ou a cooperativa ficam sub-rogadas nas obrigações da pessoa física de que trata a alínea "a" do inciso V do art. 12 e do segurado especial pelo cumprimento das obrigações do art. 25 desta Lei, independentemente de as operações de venda ou consignação terem sido realizadas diretamente com o produtor ou com intermediário pessoa física, exceto no caso do inciso X deste artigo, na forma estabelecida em regulamento;
[10] Em oposição aos processos subjetivos, nos qual o controle de constitucionalidade ocorrerá frente a um caso concreto, no qual a (in)constitucionalidade da norma é mera premissa a ser enfrentada pelo magistrado ao julgar o pedido da parte, não o objeto da ação.
[11] Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
[12] ttp://www.stf.jus.br/arquivo/cms/sobreStfCooperacaoInternacional/anexo/Respostas_Venice_Forum/4Port.pdf
[13] Além disso, sob tal base de cálculo, o empregador rural pessoa física recebe tratamento tributário desfavorável em relação aos contribuinte não-rurais, que contribuem apenas sobre as fontes previstas nas alíneas do art. 195, inc. I, o que evidencia ofensa ao princípio da isonomia. Assim, o art. 150, inc. II da Constituição da República é atingido gravemente, como o é o art. 194, inc. V, que estabelece a equidade na forma de participação do custeio.
[14]Instrumento utilizado para afastar precedentes.
[15] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15343577272&ext=.pdf. Acesso em 06 nov. 2023.
[16] Ibidem.
[17] Ibidem.
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (FDRP-USP). Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Pós-graduado em Auditoria Governamental pela Universidade Estácio de Sá. Servido público do Tribunal Regional Federal da 3ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALVES, Ariel Bianchi Rodrigues. A insegurança jurídica sobre o Funrural devido por produtor rural pessoa física e pelo segurado especial: Reflexos de uma crise institucional e a parcial resolução com a criação do Programa de Regularização Tributária Rural (Lei 13.606/2018) Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 dez 2023, 04:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64038/a-insegurana-jurdica-sobre-o-funrural-devido-por-produtor-rural-pessoa-fsica-e-pelo-segurado-especial-reflexos-de-uma-crise-institucional-e-a-parcial-resoluo-com-a-criao-do-programa-de-regularizao-tributria-rural-lei-13-606-2018. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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