RESUMO: A partir de um método indutivo e dialético,com análise bibliográfica e traçando relações jurídica em clássicos literários , o presente estudo foca sua atenção em como o Direito e a Literatura se relacionam. As manifestações e produções artísticas refletem a identidade de um povo, relacionar o Direito com manifestações culturais é participar da evolução da sociedade. No que tange a inexorável relação das ciências jurídicas com a literatura e com seus autores, primeiramente, e de forma sintética, serão salientadas as diferenciações entre o estudo do Direito como, da e na literatura, sendo a última ser estudada por meio de três obras: Antígona, Don Quixote e Mota Coqueiro ou a pena de morte. A escolha indutiva baseou-se no fato de que, apesar de serem destinadas a leitores diferentes, são clássicos lidos pela população mundial.
PALAVRAS CHAVES: Cultura; Literatura ; Mota Coqueiro; Jurisdicidade ; Livros
INTRODUÇÃO:
Como visto, a cultura tem relevante papel social e por isso deve ser estimulada. Contudo, sua relação com o estudo do Direito não se mantém exclusivamente no campo normativo. Saímos assim de uma visão reducionista de Direito onde o estudo de assuntos jurídicos se encontram embasados num estrito dogmatismo para uma abordagem interdisciplinar das ciências jurídicas.
É imperante hoje em dia conceder-se primazia à técnica jurídica onde se aparta do estudo do Direito tudo o que não é jurídico. Essa tecnocracia do positivismo, acarreta um atraso metodológico frente as questões relativas ao Direito postas por historiadores, sociólogos e filósofos bem como um aumento do isolacionismo dos juristas.
Temos em outras palavras um sistema (jurídico) entrando em crise, sendo necessário uma abertura para que esse absorva e seja absorvido por elementos que a priori não eram jurídicos intuito de salvar sua existência com eficácia. Essa crise fica latente quando pensamos que esse isolacionismo da ciência jurídica se não combatido fomenta situações como movimentos que pregam justiça com as próprias mãos.
A literatura nos permite acompanhar as mudanças da sociedade desde os tempos mais remotos, demonstrando a presença de preocupações com as temáticas jurídico-sociais, cada uma a sua época. Imbuídos, na maioria das vezes, oficialmente de opiniões, a obra é criada também a partir da experiência social do autor, desse modo, percebemos a mentalidade da época não só por sua história mas também pelos (des)créditos que seus autores obtiveram. Tem-se assim em mãos toda essa complexidade do objeto literário, e, com isso, desenvolve-se um entendimento filosófico e jurídico, capaz de captar as características e peculiaridades intrínsecas na arte literária.
Para uma melhor análise a literatura pode ser dividida em romance histórico exemplificado pelo texto da peça Antígona, romance de tese onde destaca-se Mota Coqueiro ou a Pena de Morte, bem como crônicas que apesar de não fidedignas à época representavam por meio de criação fictícias as transações que ocorriam na época como Don Quixote de la Mancha.
A relação com o Direito torna-se mais acessível quando prestamos mais atenção na vida do autor (especialmente o período vivido) uma vez que em grande parte dos livros as questões abordadas no enredo estavam em evidência na época.
1 DIREITO E CULTURA, UMA VISÃO CONSTITUCIONAL
1.1 CONCEITO(S) DE CULTURA
É necessário para que cheguemos ao conceito de cultura adotado por nossa constituição nos acautelar de não nos limitarmos a um conceito muito estrito de cultura, a considerando apenas criação artística e cultural. No entanto, não devemos optar por um conceito onde tudo é absorvido pelo cultural para que a proteção constitucional não se esvazie ficando sem parâmetro de incidência.
Para uma primeira conceituação devemos nos voltar para o dualismo metodológico derivado da filosofia Kantiana onde era contraposto realidade (mundo do ser) e valor (mundo do dever ser) que com o passar dos tempos foi encarado por Radbruch como falso. Defendeu o jusfilósofo que os valores encontram-se penetrados na realidade. Desse modo, entre a categoria de natureza e de ideal seria necessário dar lugar à categoria da cultura.
Carlos Cossio para conduzir sua conceituação de cultura utiliza como referência os bens culturais. Divide-os entre mundanais e egológicos, aqui os primeiros seriam a vida humana objetivada e os subsequentes a conduta humana.3 E José Afonso da Silva busca essa diferenciação para defender que os bens culturais protegidos por nosso ordenamento constitucional não seriam os egológicos. Defende o autor que o que é protegido se encaixa no campo dos mundanais, seja como bens culturais de natureza material ou imaterial, forma de expressão, modos de criar, fazer ou viver, ou documentos, obras artísticas e etc., esses seriam para o autor os bens referidos pelos arts. 216 e 216-A da Constituição.
Muito difundida, é a concepção antropológica, vista de três formas, segundo a qual cultura deve ser encarada como “um conjunto integral, constituído pelos utensílios e bens consumidos, pelo corpo de normas que rege os diversos grupos sociais, pelas ideias, artesanatos e costumes” como conjunto complexo que inclui conhecimento, crença arte e moral, lei e costumes e várias aptidões adquiridas pela sociedade, como o referido autor afirma em seu livro ser o que defende Luiz Gonzaga de Mello.5 José Afonso da Silva acredita ser a melhor concepção aquela defendia por Robert Taylorum, onde essa seria conceituada como um sistema de hábitos que são compartilhados por membros de uma sociedade vez que essa se encaixa a ideia do autor brasileiro de que a cultura é caracterizada por traços de conexão e complementariedade.
Temos ainda a concepção filosófica de cultura, onde essa seria a vida humana objetivada, valores espirituais que impregnam objetos da natureza de sentidos detendo interdependência com a natureza, assim essa seria, para os pensadores que se filiam a essa visão, um fato a três dimensões onde aos objetos físicos se conferem significações que partem de sujeitos que estendem, entre si, uma teia de inter-relações sociais. Analisado esses dois requisitos, cabe acrescentar que, embora historicamente tenha sido creditado ao Direito constitucional norte-americano o título de ter sido o primeiro a dispor sobre a supremacia da Constituição, outras sociedades, em momento diverso, também o fizeram.
Por fim, devemos apresentar aquele que possui especial relevância para compreensão da conceituação constitucional da cultura, a concepção semiótica de cultura. Tal conceito baseia-se nos ensinamentos de Cliford Geertz e visa ter a utilidade de comprovar que o homem é um animal inseridos em tramas de significações que ele mesmo teceu, sendo a cultura nossa urdidura e o seu estudo uma busca por significações.8 Ela seria desse jeito, signos interpretáveis. Tal conceito se alinha ao pensamento de Marilena Chauí onde cultura seria uma ordem simbólica por cujo o intermédio homens determinados exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza, entre si e com o poder bem como a maneira que interpretam essas relações.
Claro está que, segundo tal visão, a cultura seria um sistema de significações onde se tem acesso por via de compreensão de seus elementos, assim como o Direito, para o qual efetivo conhecimento apenas se consegue mediante interpretação de seus signos.
Utilizaremos um conceito de cultura baseado no supramencionado mas um pouco mais amplo, onde esse sistema de significações se mostra como qualquer produção humana ou não (não devemos esquecer que detemos bens culturais naturais) que permita compreensão daquilo que se propõe fazer, mesmo que seja apenas o divertimento ou a mera admiração. Sendo assim não apenas a literatura e o cinema mas também as novelas devem ser vistas como produtos culturais, especialmente na sociedade brasileira que preza pela oralidade e onde a fonte de entretenimento e aprendizado mais popular é a televisão.
Os dois viéses de ordenação constitucional cultural
Essa coalizão de sistemas resulta em dois viéses de ordenação constitucional, dois sistemas de significações. O primeiro diz respeito às próprias normas jurídico-constitucionais depositárias de valores, como a garantia de acesso à cultura, liberdade de criação entre outras. Já o segundo viés se refere à própria matéria normatizada, qual seja a cultura, traduzida no patrimônio cultural brasileiro, obras, objetos, documentos, o modo de fazer artístico...
Dessa forma entende-se que se do ponto de vista antropológico todo objeto por exemplo é cultura. Porém, para a nossa constituição, o mesmo apenas deve ser protegido como manifestação cultural se houver significação para o referencial de sociedade brasileira.
Saliente-se, por fim, que a configuração constitucional do conceito sofreu influência de Darcy Ribeiro, e apesar deste diferenciar processo civilizatório de cultura, o ordenamento constitucional entende tal processo como arte da cultura tendo a proteção dos Direitos sociais também aqui integrada.
Resta acentuar que ações culturais afirmativas diretas por parte do Estado se mostram essenciais não apenas porque a cultura é um Direito social mas também para que se concretize a promoção de um diálogo cultural imprescindível à democracia, uma vez que é nessa que a liberdade encontra campo de expansão.
2.1.1 Direito na, como e da Literatura
Ponto importante para a mudança de paradigma no estudo da relação de conexão entre Direito e Artes foi o que se deu por meio do movimento intitulado Law and Literature Movement.14 Fundado por John Henry, Benjamim Nathan Cardozo e James Boyd White por esse movimento essa relação poderia ser estudada sob três diferentes formas de abordagem: Direito na Literatura, Direito como Literatura e Direito da Literatura.
Essa tríade embora relacione o Direito com a Literatura o faz sob sensíveis diferenças. A visão feita a partir do estudo do Direito como Literatura destaca a linguagem como ponto convergente, encarando uma peça jurídica também como objeto literário e tendo em vista de que o impacto da narrativa pode resvalar diretamente na decisão final do processo, como salienta Ronald Dworkin:
Quanto ao Direito da Literatura esse é o mais afeto à norma do Direito em si, uma vez que se preocupa com as questões referentes à proteção das normas literárias. Temos aqui a questão dos Direitos autorais, delitos que podem incidir sobre autor/editora e as questões relacionadas a liberdade de expressão. Regulamentando a livre iniciativa literária, prescrevendo regras de conduta para os atores do mercado literário.16
No que tange a abordagem (na), como destaca Germano Schwatz (2004, p.125/140) estuda as formas sob as quais o fenômeno jurídico é representado no mundo literário e será sobre essa que voltaremos nossos olhos ilustrando o Direito na Literatura através das obras: Antígona, Mota Coqueiro e a Pena de Morte e Don Quixote.
2.2 ANTÍGONA 2.2.1 O autor
Sófocles, foi um dramaturgo grego, teria escrito 123 tragédias, das quais apenas sete sobreviveram. Dentre essas sete, três foram dedicadas ao “Ciclo de Édipo”, foi esse autor que mudou a maneira de se contar uma história ao acrescentar o terceiro protagonista. Participou ativamente da vida política de Atenas, exercendo o cargo de general em uma das mais importantes batalhas atenienses: a batalha de Samos em 441 a.C.
Estamos, assim, diante de um autor acostumado com o poder, membro da classe dominante e familiarizado com as normas jurídicas. Apesar de pertencer “a ponta do triângulo” não se mostrava um eremita isolado, logo traduz muito do pensamento da população bem como suas obras detinham grande influência social.
2.2.2 A obra
Por serem filhos de Édipo, logo irmãos de Ismena e Antígona, seus dois filhos homens teriam o Direito de assumir o trono que era ocupado pelo tio Creonte enquanto ainda fossem menores. Ficara acordado que os irmãos enquanto maiores se revezariam no poder, o que teve início por Etéocles (cujo pensamento se alinhava a Creonte).
No entanto quando da transferência de rei, Etéoncles se recusa a sair, o que faz com que Polinices procure apoio em cidades vizinhas e declare guerra ao irmão. Ambos são mortos em combate e Creonte se impões no poder. Nesse momento Creonte expede decreto determinando que Eteócles seria honrado enquanto Polinices seria desgraçado, ficando impedido de ser sepultado e sendo deixado para ser devorado pelos animais.
Antígona e Ismena, irmãs dos mortos, se encontravam fora dos portões de Tebas e quando da notícia sobre o que ocorreria ao corpo de Polinices, Antigona se prontifica a enterrá-lo independentemente da lei imposta por Creonte.
Creonte, que havia conseguido apoio do Coro dos anciões de Tebas (sobre o edito do corpo de Polinices), é informado por um sentinela que o corpo havia sido sepultado. Furioso, Creonte ordena que o sentinela encontre o corpo, caso contrário o próprio sentinela seria executado em seu lugar.O sentinela, então, descobre que foi Antígona e a leva presa. Antígona é interrogada e assume seu feito, argumentando com Creonte que a proibição de sepultar seu irmão era imoral, em contrapartida da moralidade de seu ato, enterrando o próprio irmão.
Herão, filho de Creonte e noivo de Antígona, embora parecendo apoiar o pai, tenta persuadi-lo a poupar a noiva, o que gera uma discussão entre os dois, fazendo com que Herão saísse e jurasse nunca mais ver Creonte.
Quando Creonte decide libertar Antígona já era tarde demais e um mensageiro o informa de que seu filho havia se matado juntamente com a noiva, o que gera desespero de sua esposa que se suicida.
2.2.3 Abordagem jurídica
Na obra os espectadores se viam diante de um conflito cujo o cerne da questão girava em tono da ideia de justiça. Antígona se colocava ao lado de uma justiça moral, uma justiça natural, não convencionada mas eterna, ideal e invariável, por outro lado Creonte defendia extremamente a necessidade de obediência à justiça que era expressa por seus decretos.17
A posição de Antígona fincava-se na ideia de que o sepultamento devia ser feito, de que seria imoral privar alguém de um sepultamento digno, saliente-se aqui que naquela época sepultar de forma honrosa consistia em impor fogo no corpo e depois preservar os ossos em unguentos aromáticos, como no Funeral de Aquiles. Insistia em seu jus sepulchri (Direito de sepultar) uma vez que o ato de sepultar mais do que um ato higiênico, constitui-se em uma afirmação da identidade e do significado daquela pessoa para a família e para a sociedade. Outrossim, além do argumento teológico de que seria moral tal atitude porque seguia o que os Deuses apoiavam Antígona insere também um argumento temporal alegando que a ordem natural do sepultamento é eterna, imutável e anterior a Creonte.
Por outro lado, temos Creonte que primeiramente, e nos cumpre destacar isso, tentou salvar a sobrinha, entretanto sem violar a lei fornecendo-lhe a possibilidade de negar-lhe autoria ou de alegar ignorância sobre o decreto (ambas propostas recusadas por Antígona). Porém esse agia sempre tendo em vista que ele era o Estado e de que a lei formal emanada por ele independia de qualquer adequação social.
Logo, há aqui o clássico embate entre o jusnaturalismo e o positivismo sendo esse representado por Creonte e aquele por Antígona. O jusnaturalismo em poucas palavras pregava um ideário de que o justo era o que era moral, defendendo que o Direito independe da vontade humana. Tal Direito existiria para essa corrente antes mesmo do homem e estaria acima das leis feitas por esses, o que refletiria no fato de que o Direito seria algo natural e teria como pressupostos os valores do ser humano, e a busca de um ideal de justiça. O Direito natural seria universal, imutável e inviolável, é a lei imposta pela natureza à todos aqueles que se encontravam em um estado de natureza.
Já o positivismo legalista, representado por Creonte se traduziria na existência apenas do Direito e consequentemente da justiça através de normas positivadas, ou seja, normas emanadas pelo Estado com poder coercivo. Normas expressas formalmente e que tinham como pressupostos o próprio ordenamento estatal.
Por fim, não podemos olvidar de outra lição jurídica presente na obra que reside na discussão entre Creonte e seu filho. Esse põe em xeque a legitimidade de um comandante que toma atitudes que não vão de encontro ao que defende a população. Nesse ponto, nota-se uma crítica aos governos ditatoriais.
2.3 DON QUIXOTE DE LA MANCHA
2.3.1 O autor
Escritor espanhol, filho de um modesto cirurgião, Miguel de Cervantes (Alcalá de Henares, 1547-Madrid, 1616) estudou em Valladolid e em Sevilla. Em Madrid foi discípulo de López de Hoyos e pajem do cardeal Acquaviva na Itália. Viveu numa Espanha onde imperava a Monarquia Absolutista e que passava pelo Século do Ouro, seja pelo florescimento das artes e da ciência, seja pelo bem precioso retirado pela Espanha de suas colônias espalhadas pelo mundo.
Cumpre destacar que escritores estrangeiros como Ramiro de Maetu e Luis Rosado, como salientado no Programa Direito e Literatura apresentado por Lenio Luis Streck, sustentam que Cervantes detinha um conhecimento aprofundado das ciências jurídicas.
conhecimento não é demonstrado apenas em Don Quixote mas também em O Velho Ciumento e a Senhora Cornélia, por exemplo. Nessas obras o autor demonstra notório conhecimento da relação jurídica que envolvia o matrimônio e a morte civil.
2.3.2 A obra
O livro conta a história de um fidalgo que vive em La Mancha, região central da Espanha. Assíduo leitor das obras de cavalaria, é influenciado pelo mundo que descobre nos livros e passa a acreditar piamente no que lia. Seduzido pelo heroísmo medieval, ele resolve converter-se em um cavaleiro andante e se igualar aos seus personagens favoritos, se auto intitula Dom Quixote de La Mancha.
Ele resolve, então, sair pelo mundo para propagar a justiça e lutar pela República dos desvalidos montado em seu Rocinante, cavalo fraco e que sofre bastante durante suas aventuras. Como qualquer cavaleiro, Dom Quixote, precisando de uma dama a quem honrar, elege uma mulher (julga-se ser uma prostituta) que só conhece de vista e a idealiza como donzela Dulcinéia.
Passa por diversas situações que beiram, muitas vezes, ao ridículo e outras que o autor, fazendo uso da paródia e ironia, mostra ao leitor que o protagonista é humano e mais frágil do que parece. Exemplo disso dá-se quando, após um dia inteiro de caminhada sob o sol, o recém-cavaleiro se depara com uma estalagem, que em sua mente perturbada se converte em um castelo; ou até mesmo quando ao investir contra o grupo de comerciantes, os vê como adversários, cai do Rocinante e tem seu corpo moído por pauladas.
Inclusive é nesse momento que um conhecido da aldeia encontra o cavaleiro ferido e o leva de volta a sua casa. Seguindo os conselhos do padre Tomás e do barbeiro Nicolau, a ama e a sobrinha resolvem queimar todos os livros de cavalaria e lacrar as portas da biblioteca.
No entanto, contrariando o esperado por todos, Dom Quixote, pensando que o ato se tratava de uma magia de algum feiticeiro, resolve voltar à aventura. Convencendo um lavrador de acompanhá-lo em troca de uma terra para governar, o cavaleiro segue com suas aventuras cavaleirísticas.
Sancho, ao fim do livro, tenta levar o cavaleiro de volta a casa para agradar a sobrinha do protagonista, por quem tinha interesse. Disfarçado de cavaleiro da lua cheia desafia o cavaleiro da triste figura, apostando que quem perder o combate colocaria fim à vida de cavaleiro andante. Sansão vence e o fidalgo volta ao lar, já desiludido com a cavalaria. Dom Quixote renuncia aos romances que tanto gostara e, recuperando a razão, morre como um piedoso cristão.
2.3.3 Abordagem jurídica
Essa obra é uma verdadeira aula de Direito em virtude de diversos tópicos jurídicos que aborda. Aqui é possível que se aprenda sobre a ciência jurídica sem que os olhos fiquem presos a massificada doutrina.
Um ponto que merece destaque na obra é o fazer justiça com as próprias mãos. Por não haver um Estado perfeitamente organizado como o conhecemos atualmente, e até mesmo ainda por uma herança medieval, comum era o sujeito querer resolver seus problemas por si só. Exercer a autotutela, impondo a força física frente às dificuldades encontradas. Ressalta-se que essa falta de estruturação do Estado fica marcada quando nos damos conta de que o objetivo do nosso herói era fazer justiça na República dos Desvalidos.
Observando, enquanto pela estrada passava, o conflito entre um amo e seu criado, que era açoitado, o cavaleiro percebe a hipossuficiência do criado na relação que testemunhara e resolve interceder a seu favor. Dom Quixote, nessa ocasião, assume papel de um juiz trabalhista e resolve aquele pleito de forma a que não mais aquela relação deveria continuar uma vez que em seu pensamento sempre pairava a ideia de que ninguém deveria escravizar outrem, uma vez que o natural seria a liberdade. Não podemos olvidar que a obra deve ser vista como uma ode à liberdade uma vez que o autor sabia, e muito bem, o que era ser privado dessa.
Com o avançar da história, o cavaleiro depara-se com gigantes (já que assim quer enxergar), que se revelam apenas moinhos de ventos. Travando, o que era de se esperar uma batalha com os moinhos, leva a melhor, mesmo que sendo lançado longe pela roupa enroscada em uma de suas pás.
Os moinhos de vento do Direito contemporâneo na área penal podem ser retratados pela ideia de Direito Penal do inimigo frente a expansão dos Direitos Humanos. Apesar de defender a manutenção das garantias fundamentais aos presos esse é muitas vezes rechaçado em prol de um ideário de sociedade que bebe num que de Medieval e se volta a atacar aquilo que não se quer ver.
Apesar de se mostrar em processo de falência esse Direito Penal do Inimigo ainda é visto e empregado especialmente por aquele que pode ser visto como vento desse moinho, a
mídia. Não são raros os casos onde se utiliza da liberdade de expressão para se extravasar o chamado discurso do ódio, colocando como inimigos minorias.19
Contudo na maioria das vezes essas minorias não passam de maiorias ignoradas, fazendo uma intertextualidade aqui é mister que se destaque o caso do ônibus 174, Sandro, homem que invadiu o ônibus carioca que fazia a linha 174 e demonstrou uma sucessão de erros policiais que levaram a morte de uma refém e do homem, nada mais era do que um sobrevivente da Chacina da Candelária.
Voltando aos moinhos, outro gigante do Direito contemporâneo é a sua própria essência que está em constante amplitude e crescimento diretamente proporcional ao desenvolvimento latente da sociedade. O avanço do Direito é, muitas vezes, uma realidade que não se quer aceitar. E, quando preso na dogmática tradicional, a ciência jurídica não é vista em sua essência, realmente como são, mas sim, gigantes brutos e intocáveis, ainda que exista um simples moinho de vento em seu âmago.
Nos parece de caráter fundamental o trecho onde Sancho Pansa, que representa exatamente a realidade da história, aquele que tinha seus pés “fincados ao chão” vê um grupo de ladrões dividindo o produto do roubo e exclama: “é tão boa coisa a justiça, que é necessária até entre os ladrões”.
Nesse trecho podemos observar que em tom despretensioso aquele simples camponês tão dogmático vê pela primeira vez um exemplo de igualdade material. Uma vez que apesar de defender o cumprimento a lei, identificava como justiça algo que nunca tinha visto ou seja a materialização da igualdade.
O que se tinha antes era um ideário de justiça que ficava atrelado apenas ao formalismo, uma igualdade perante a lei. Igualdade essa que por exemplo no Brasil historicamente atingia apenas homens brancos, livres e com posses, passando apenas para os homens e apenas na história recente atingindo as mulheres. Ou seja, se demoramos tanto tempo a se ter regulamentada a igualdade formal no Brasil será que com a material seria diferente?
Obviamente que não é por isso que embora nossa Constituição nos coloque como iguais, materialmente muita diferença ainda existe no que tange o gozo de Direitos entre os diferentes. Ressalta-se que tendo em vista que a igualdade material segue a ideia de tratar os iguais de maneira igual e os diferentes de maneira diferente na medida de sua desigualdade hoje em dia na busca de concretizá-la começamos a ter ações afirmativas, as quais não parece se aqui o melhor lugar para abordá-las, no Brasil.
Isto posto, fica evidente que a obra não é a segunda mais vendida do mundo por um modismo qualquer uma vez que nos demonstra ensinamentos jurídicos fundamentais, tais como a liberdade e a igualdade no âmbito do Direito do Trabalho, tratando o camponês desigualmente na medida de sua desigualdade ou no âmbito do entusiasmo causado naquele que representa a realidade ou seja, aquele que, em tese, já estaria acostumado com essa. Sem olvidar contudo críticas atuais à maneira como os processos, especialmente os da seara penal são conduzidos e a visão de dignidade humana que se tem perante os desafortunados economicamente.
2.4 MOTA COQUEIRO OU A PENA DE MORTE
2.4.1 O autor
O autor da obra é José do Patrocínio Filho nasceu em Campos residindo no Rio de Janeiro do final do século XIX falecendo no início do XX, ou seja, viveu sob a égide de um Brasil colonial e escravista. Filho de um vigário e uma escrava, Patrocínio cresceu livre entre os escravos da fazenda do pai, apesar de nunca ter sido reconhecido pelo pai. Ferrenho crítico da escravidão, ele não se limitou a escrever, também preparou e auxiliou a fuga de escravos e coordenou campanhas de angariação de fundos para adquirir alforrias, com a promoção de espetáculos ao vivo, comícios em teatros, manifestações em praça pública, etc.21
Quando voltou de uma visita a Campos em 1885, trouxe a mãe, idosa e doente, que viria a falecer no final desse mesmo ano. O sepultamento transformou-se em um ato político em favor da abolição, tendo comparecido personalidades como as do ministro Rodolfo Dantas, o jurista Rui Barbosa e os futuros presidentes Campos Sales e Prudente de Morais.
Em 1887 escreveu Mota Coqueiro ou a Pena de Morte, livro pelo qual até hoje é conhecido quando se aborda o fim da pena de morte no Brasil.
2.4.2 A obra
O livro baseia-se em fatos reais ocorridos em 1855, quando o fazendeiro conhecido como a Fera de Macabú de nome Manoel da Mota Coqueiro foi condenado a morte pelo assassinato de uma família inteira de colonos que moravam em sua terra. Ficando viva apenas a filha dos assassinados que ele tinha engravidado.
Como o povo que ali vivia não morria de afeto pelo fazendeiro ele foi acusado pelo crime. Fugiu mas foi capturado, passando por um processo irregular. Não obteve a graça do Imperador e foi executado.
2.4.3 Abordagem jurídica
Estamos diante de um romance de tese, aquele que como destaca Silviano Santiago tem por função óbvia o desmascaramento de uma situação que é encoberta pela ignorância e preconceito, pelo atraso cultural e pela incapacidade de visão de um determinado grupo.24
Apesar da linguagem imparcial, Patrocínio tem um objetivo claro ao escrever essa obra que é defender sua ideia de abolição definitiva das execuções penais como castigos extremos que não permitem revisão e reparação dos erros. Cumpre destacar que apesar da história ser verídica Herculano nunca existiu ou seja, apesar da atmosfera dar a entender que Motta Coqueiro era inocente nada se provou em contrário. Porém, diante do tom jornalístico que o autor confere ao final do texto, estando ausentes as tantas figuras de linguagem que ele utilizou no início, muitos consideram com se Herculano realmente tivesse existido.
A vista disso, é claro que a obra nos faz questionar a pena de morte questionamento esse que se mostra extremamente atual se pensarmos que atualmente, a pena capital ainda é estabelecida, por diversos países, em todo o mundo, como Estados Unidos, China, Indonésia25 Irã, entre outros
A questão da adoção da pena de morte no Brasil para casos além dos crimes de guerra é sempre trazida à pauta de discussões quando algum crime bárbaro é praticado e noticiado. Porém a adoção da pena capital é incompatível com o ordenamento vigente não só no que tange a nossa Constituição, mas também devido aos inúmeros Tratados ratificados e na sua maioria sem cláusula de denúncia.
Destaca-se que quando a Constituição Federal admite a pena de morte em tempo de guerra, é porque a situação exige para garantia de defesa, exceto no caso de guerra, a pena capital é proibida em nosso ordenamento.
Tampouco através de Emenda Constitucional esta vedação poderia ser alterada, tendo em vista que ela se encontra prevista no art. 5o, ou seja, no artigo em que está previsto as garantias e Direitos fundamentais e conforme o art. 60, § 4o da Constituição Federal, estes Direitos e garantias são cláusulas pétreas do nosso ordenamento jurídico, não sendo passíveis de modificação que concerne a aboli-los ou restringi-los.27
Aqueles que já tiveram o prazer de ler O Último Dia de um Condenado de Victor Hugo, rapidamente fazem relação com essa obra após ler Mota Coqueiro ou a Pena de Morte, especialmente no que tange a crítica ao sistema penal, que, para, supostamente, “reprimir” o crime, se utiliza da via mais fácil: a eliminação dos ditos delinquentes.
Em seu livro, Victor Hugo se posiciona claramente em defesa a uma maneira de repressão que não é imediatista, mas de certo é mais eficaz: a readaptação do preso à sociedade de forma a demonstrar que ele tem condições de viver sem que seja necessário praticar crimes.
Além disso, a obra também encara (e critica) a condenação tida como um show para a sociedade, a qual é brilhantemente caracterizada por Victor Hugo como uma horrível multidão sedenta de sangue. Neste aspecto, merece ser ressaltado o trecho em que o personagem nota a praça onde será́ executado: “Comerciantes de sangue humano gritavam a plenos pulmões: “Quem quer lugares? Enchi-me de raiva contra este povo”. Diferença não houve na condenação de Mota Coqueiro:
Portanto, através de um romance de tese, aparentemente imparcial, fortes críticas à Pena de Morte são realizadas. Não sabemos se influenciado ou não por Victor Hugo também fica evidente a desaprovação à espetacularização dessa forma de violência à dignidade humana. Quando analisamos o mundo percebemos que tais críticas permanecem contemporâneas o que faz do estudo do Direito por obras enriquecedor do ponto de vista literário e jurídico.
CONCLUSÃO:
O status jurídico sob o qual existe a cultura recebe, cada dia mais atenção.Ainda que tenhamos momentos de desmonte de políticas públicas ou constitucionalismo abusivo, certo é que trata-se de conceito fundamental e intrínseco ao mínimo existencial.
Nessa mesma toada mostra-se fundamental a superação de um olhar reducionista e um estudo intertextual para que seja possível a análise de temas tão caros à sociedade. Seja compreendendo o debate entre o jusnaturalismo e o positivismo de Antígona ou fornecendo um novo olhar à pena de morte após Motta coqueiro, certo é que a literatura permite que questÕes jurídicas sejam debatidas socialmente assim como fornece elementos para que questões sociais sejam efetivamente tuteladas pelo Direito.
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Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ; Graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAZ, REBECCA DA SILVA PELLEGRINO. Direito e cultura: a literatura como instrumento jurídico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 dez 2023, 04:14. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64123/direito-e-cultura-a-literatura-como-instrumento-jurdico. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: EDUARDO MEDEIROS DO PACO
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Por: Marcos Antonio Duarte Silva
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Por: LETICIA REGINA ANÉZIO
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