RESUMO: No ano de 2011, o Supremo Tribunal Federal realizou o julgamento conjunto da ADPF 132 e ADI 4277 conferindo às uniões estáveis homoafetivas o status de entidades familiares destinatárias de tutela jurídica equivalente às uniões estáveis entre pessoas heterossexuais, a partir de uma interpretação conforme a Constituição do artigo 1.723 do Código Civil. O julgado é paradigmático na tutela dos direitos de minorias, e foi alicerçado na ideia de que o conceito de entidade familiar sofreu alterações substanciais ao longo do tempo, bem como na concepção de que o art. 226 da Constituição Federal comporta uma verdadeira cláusula geral de inclusão de modelos familiares distintos.
Palavras-chave: união homoafetiva; entidade familiar; princípios constitucionais; afetividade; pluralidade; proibição constitucional de discriminação; direito ao reconhecimento; direito de busca da felicidade; cláusula geral de inclusão.
ABSTRACT: In 2011, the Federal Supreme Court held a joint judgment on ADPF 132 and ADI 4277, granting homoaffective stable unions the status of family entities receiving legal protection equivalent to stable unions between heterosexual people, based on an interpretation in accordance with the Constitution of the article 1,723 of the Civil Code. The ruling is paradigmatic in the protection of minority rights, and was based on the idea that the concept of family entity has undergone substantial changes over time, as well as on the concept that art. 226 of the Federal Constitution contains a true general clause for the inclusion of different family models.
Keywords: same-sex union; family entity; constitutional principles; affectivity; plurality; constitutional prohibition of discrimination; right to recognition; right to pursue happiness; general inclusion clause.
1 - INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por escopo demonstrar o pano de fundo social e jurídico que culminou no reconhecimento da proteção estatal às famílias homoafetivas, analisando os principais fundamentos invocados pelos ministros do STF no julgamento das ações de controle concentrado. A metodologia utilizada foi a pesquisa baseada em livros, artigos jurídicos e nos fundamentos do julgado do Supremo Tribunal Federal abordado.
Inicialmente, buscou-se demonstrar que a homossexualidade é um aspecto da personalidade humana, que diz respeito exclusivamente à esfera privada dos envolvidos, e que portanto, deve ser tutelada como um direito fundamental existencial.
No tópico seguinte, foi trabalhada a evolução do conceito de família para demonstrar que na modernidade o seu elemento fundante é o afeto, em detrimento do antigo apego à concepção de família exclusivamente como núcleo patriarcal formado pelo homem provedor, pela mulher cuidadora do lar e pela prole do casal. Do ponto de vista jurídico, buscou-se destacar os princípios da não discriminação, da igualdade como reconhecimento e do direito à busca da felicidade como centrais na fundamentação do STF.
Demonstrou-se ainda que, apesar de não haver na Carta Magna um dispositivo expresso que reconheça a união homoafetiva como entidade familiar, a interpretação sistemática dos valores constitucionais conduz à conclusão de que o art. 226 da CF comporta uma verdadeira cláusula de inclusão de diversos modelos familiares.
Após, buscou-se rebater possíveis argumentos daqueles que são refratários ao reconhecimento jurídico das uniões homoafetivas como entidades familiares, destacando a recente tentativa de setores conservadores do Congresso Nacional em rediscutirem o tema através do Projeto de Lei 5167/09, que proíbe o enquadramento de uniões entre pessoas do mesmo sexo como família.
2 - A HOMOSSEXUALIDADE COMO DIREITO FUNDAMENTAL DA PERSONALIDADE
A homossexualidade foi compreendida de diversas maneiras ao longo da história das sociedades ocidentais. Marcelo Augusto Toniette (2006), sobre a evolução do tratamento social da questão, aduz que há registros de que na Antiguidade greco clássica o relacionamento sexual ou afetivo entre pessoas do mesmo sexo era concebido sem maiores problemas.
Da mesma forma, as tribos indígenas brasileiras assimilavam a homossexualidade com naturalidade, havendo apenas pequenas diferenças de perspectiva conforme costumes e crenças de cada tribo (DIETER, 2012).
Na Idade Média, com o advento do domínio religioso-cultural da Igreja Católica, a prática homossexual passou a ser vista como pecaminosa por violar o projeto divino de procriação.
Séculos depois, já no pós-revolução Industrial, o paradigma científico e higienista levou a homossexualidade a ser estudada pelas ciências com uma perspectiva patológica (TONIETTE, 2006): até 17 de maio de 1990[1] era considerada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como doença[2], e recebia número específico relativo a Código Internacional de Doenças (CID).
Atualmente, a hipótese mais aceita é que a homossexualidade faz parte da natureza de alguns seres vivos, visto que já foram registradas mais de 1.500 espécies[3] de animais que apresentam práticas homossexuais. De toda sorte, a orientação sexual é, sem dúvida, um componente importante da personalidade, pois é o ponto a partir do qual o indivíduo irá construir suas relações afetivas e exercer sua sexualidade. Dessa forma, o direito de viver os afetos e os projetos de vida pessoal e familiar livre de interferências estatais discriminatórias são verdadeiros direitos fundamentais, e como tal, devem ser objeto dos “deveres de proteção” do Estado.
3 - UM NOVO PARADIGMA DE FAMÍLIA: ENTIDADE CENTRALIZADA NO AFETO E LOCUS DE PROTEÇÃO DA PERSONALIDADE HUMANA
A família é a estrutura básica das sociedades e a primeira forma de interação humana, sendo precedente a todas as outras formas de agrupamento humano. É no seio familiar que acontecem os mais elementares fatos da vida, desde uma perspectiva biológica até acontecimentos de ordem psicológica e cultural, como formação da personalidade, planos de vida profissional e afetiva, frustrações e sucessos.
Assim, por ser o elemento fundante da sociedade e do ser humano, bem como por sua feição biológica, espiritual e social, a família deve ser compreendida a partir de uma perspectiva da interdisciplinaridade (CHAVES, 2019, p. 33 e 34).
O viés tradicional de família estava social e juridicamente associada a uma fórmula padronizada decorrente do casamento, sacra, inabalável e hierarquizada, formada pelo núcleo indissolúvel formado por marido - chefe e provedor da casa-, esposa e filhos.
Ocorre que as transformações da sociedade contemporânea levaram a uma flexibilização do conceito de família, a qual passou a dispor de um caráter “descentralizado, democrático, igualitário e desmatrimonializado” (CHAVES, 2019, p. 35).
Assim, enquanto o modelo tradicional concebia a família primordialmente como unidade econômica e reprodutiva, baseada em uma rígida divisão de papeis entre seus integrantes, as alterações econômicas, sociais, culturais e tecnológicas conduziram a um novo paradigma familiar, mais flexível, multifacetário, que entende o núcleo familiar como “uma organização subjetiva fundamental para a construção individual da felicidade” (CHAVES, 2019, p. 37).
A inserção da mulher no mercado de trabalho e a facilitação jurídica do divórcio ocasionaram profundas alterações no modelo patriarcal de rígida divisão de papeis, dando lugar a concepções plurais e democráticas de famílias, nas quais é possível se vislumbrar, por exemplo, a mulher como chefe e provedora, ou ainda, as denominadas “famílias recompostas”.
O fato é que, paulatinamente, os aspectos formais deixaram de ser o principal elemento definidor do que é uma família, assumindo a afetividade o eixo central de sua compreensão. Portanto, família não pode ser um conceito preconcebido e fixado em numerus clausus, e sim um conceito que tem na afetividade e na estabilidade seus principais requisitos.
Luís Roberto Barroso (2013, p. 170) assevera que a constitucionalização do direito ocasionou uma releitura dos institutos jurídicos, de um paradigma formal e patrimonialista para um paradigma de tutela existencial da pessoa humana. Nessa senda, a família enquanto instituto jurídico também é revista, deixando de ser um mero modelo tradicional e rígido (fim em si mesmo) para ser compreendido como o principal locus de desenvolvimento da personalidade humana (perspectiva instrumental).
Paulo Lôbo (2004, p.7) nos dá uma importante contribuição a respeito do tema:
Os tipos de entidades familiares explicitados nos parágrafos do art. 226 da Constituição são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. As demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. Como todo conceito indeterminado, depende de concretização dos tipos, na experiência da vida conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade.
Pode-se dizer, portanto, que as alterações sociais e jurídicas (advindas do direito civil-constitucional) repaginaram a família: antes apenas matrimonializada, patriarcal e hierarquizada hoje pluralizada, democrática e igualitária. Antes compreendida sob um viés meramente institucional com unidade de produção e reprodução, hoje, provida de caráter instrumental como unidade socioafetiva (CHAVES, 2019, p.42).
Com efeito, o direito moderno reconhece a afetividade como o centro modulador dos institutos do direito de família. Isso fica evidente, por exemplo, quando a lei reconhece os filhos adotivos como legítimos e de iguais direitos com relação aos filhos biológicos; ou quando possibilita que o casamento ou a união estável sejam extintos sempre que afetividade desaparecer. Em sede jurisprudencial, a centralidade do afeto foi ressaltada quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu, no Tema XX de Repercussão Geral o instituto da multiparentalidade, reconhecendo que o vínculo parental socioafetivo possui a tanta proteção jurídica quanto os vínculos registrais e biológicos.
O ministro Luiz Fux em voto proferido na ADPF 132 afirma que a família é uma garantia institucional e um instrumento de dignidade humana, ressaltando que o que faz uma família é o amor familiar, os projetos de vida em comum e a identidade ou “certeza de seus integrantes quanto à existência de um vínculo inquebrantável que os une e que os identifica uns perante os outros e cada um deles perante a sociedade” (ADPF 132, 2011), concluindo ao fim que, do ponto de vista ontológico, absolutamente nada distingue uma união estável heteroafetiva de uma homoafetiva.
Aliás, como destaca Maria Berenice Dias (2004), “Mais do que uma sociedade de fato, trata-se de uma sociedade de afeto, o mesmo liame que entrelaça os parceiros heterossexuais”
4 - DOS FUNDAMENTOS JURÍDICOS PARA O RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR
A Constituição Federal, em seu art. 226, § 3º preconiza que “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Assim, vislumbra-se que o legislador constituinte não contemplou expressamente as uniões homoafetivas como entidades familiares. Luís Roberto Barroso (2013, p.158) assevera que:
(...) a Constituição não comporta uma leitura homofóbica, deslegitimadora das relações de afeto e de compromisso que se estabelecem entre indivíduos do mesmo sexo. A exclusão dos homossexuais do regime de união estável significaria declarar que eles não são merecedores de igual respeito, que seu universo afetivo e jurídico é de “menos-valia”: menos importante, menos correto, menos digno.
De fato, a partir de uma leitura sistemática dos princípios fundantes e norteadores do espírito constitucional, infere-se que a chancela estatal das referidas uniões é não só possível, como também necessária enquanto um imperativo de proibição de proteção deficiente de direitos fundamentais. Esses princípios fundantes são: a proibição de discriminação; a igualdade; a dignidade humana; a segurança jurídica; o pluralismo e a laicidade.
4.1- Da proibição de discriminação e do direito a igualdade como reconhecimento
A proibição de discriminação está assentada na Carta Magna não apenas como um princípio basilar, mas como um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. A importância de rechaçar práticas discriminatórias exsurge ainda de um verdadeiro mandado expresso de criminalização constitucional insculpido no art. 5º, ..., através do qual resta cristalina a necessidade de um atuar estatal para garantir, com efetividade, a proteção a direitos fundamentais ligados ao direito de não ser discriminado.
Ao revés, a omissão do estado na tutela de um direito fundamental equivale a uma dupla violação, pois além de ser uma violação em si, legitima a violação perpetrada por particulares.
No tocante às uniões homoafetivas, pode-se dizer que “não vedar” é insuficiente, pois a omissão ou a indiferença estatal quando se trata de direitos de minorias e grupos marginalizados demonstra um não fazer pautado por um juízo de desvalor (BARROSO, 2013, p. 151).
Assim, permitir que relações homoafetivas fiquem adstritas ao mundo dos fatos, sem qualquer reconhecimento jurídico ou sem qualquer tutela do estado, enseja injustificada situação de discriminação, de forma que indivíduos que compartilham a vida e constroem juntos um patrimônio ficam alijados de inúmeros direitos como o de partilhar os bens adquiridos, usar o nome um do outro, suceder em razão de morte do companheiro, receber benefício previdenciário de pensão por morte.
Mas não é só isso. O reconhecimento jurídico de direitos de um grupo, para além de repercussões específicas atinentes ao próprio direito, ressoam na autopercepção e no senso de pertencimento social dos sujeitos. Luís Roberto Barroso (2013, p. 167) destaca que:
Atualmente, já se afirma que o reconhecimento do outro exerce importante papel na constituição da própria identidade (do self) e no desenvolvimento de autoestima. A formação dessa identidade, do modo como cada um se autocompreende, depende do olhar do outro; é um processo dialógico. O não reconhecimento se converte em desconforto, levando muitos indivíduos a negarem sua própria identidade à custa de grande sofrimento pessoal. Independentemente disso, é certo que a negativa do reconhecimento significa a incorporação de um padrão cultural que inferioriza certos grupos, gerando uma estrutura institucional que não considera determinadas pessoas como pares na participação social.
O direito ao reconhecimento é atualmente compreendido como uma das três perspectivas do direito de igualdade, sendo elas a igualdade formal, a material e a igualdade como reconhecimento. (BARROSO, 2016, p. 208)
Na vertente formal, a igualdade atua contra a existência de privilégios, estando prevista no art. 5º, caput da Constituição Federal quando dispõe de “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Na vertente material, a igualdade objetiva garantir equivalência de oportunidades, com redistribuição de poder e recursos, estando prevista no art. 3º, I, da Carta Magna ao elencar como objetiva da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Por fim, na vertente reconhecimento, a igualdade é tida como o respeito às minorias e às diferenças, atuando como vetor de uma sociedade inclusiva e pluralista, estando prevista no art. 3º, IV, da Constituição quando esta elenca como um dos objetivos fundamentais promover o bem de todos sem discriminações de raça, cor, idade, sexo ou quaisquer outras (BARROSO; OSORIO, 2016, p. 208).
Luís Roberto Barroso e Aline Osorio (2016, p. 215) registram, citando a doutrina de Nancy Fraser, que a injustiça que o direito ao reconhecimento visa combater é de fundo cultural e simbólico. Os autores seguem explicando que “a luta pelo reconhecimento não pretende dar a todos o mesmo status por meio da eliminação da distinção, mas pela superação dos estereótipos e pela valorização da diferença” (2016, p. 2015).
Bittar (2009, p. 555) aduz que “O direito à diferença está baseado na ideia de que todos são diferentes entre si; e, propriamente, isto é ser humano, em sua singularidade”. O ato de ser reconhecido e respeitado em suas particularidades possui então um elemento central na sedimentação da autoestima do indivíduo e na sua autopercepção como sujeito de direitos detentor de dignidade. Enquanto seres sociais, formamos nossa personalidade a partir de uma perspectiva dialógica, onde a percepção do outro, invariavelmente, influi diretamente na forma como nos autoavaliamos.
4.2- Do direito de busca da felicidade como viés da dignidade humana
Outro princípio central na fundamentação da paradigmática ADPF 132 no reconhecimento de múltiplas formas de família é o da dignidade humana, que longe de mero reforço argumentativo abstrato, foi trazido naquele julgado sob a perspectiva do direito de busca da felicidade.
No Recurso Extraordinário 898.060 de Santa Catarina, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o direito de busca da felicidade está implícito no art. 1, III, da Constituição Federal, relacionando-o ao direito de autodeterminação, autossuficiência e liberdade de escolha dos próprios objetivos de vida. Assim, a dignidade humana compreende o respeito ao espaço de liberdade individual para traçar os próprios planos e vivenciar os afetos, vedando que o Estado enquadre e limite a realidade familiar em modelos pré-concebidos pela lei.
Assim, reconhecer o direito de busca da felicidade consiste em possibilitar às pessoas traçarem seus próprios destinos de acordo com seus afetos e suas concepções de mundo, sem incursões indevidas em seus projetos de vida, conferindo espaço para sua autorrealização, sem que o Estado imponha modelos preestabelecidos de como cada um deve enquadrar seus objetivos pessoais.
Ingo Wolfgang Sarlet leciona que a dignidade humana possui uma dimensão dúplice: uma, como direito de autodeterminação na condução da própria vida e a segunda, como geradora de deveres de proteção tanto do Estado como da comunidade (2011, p. 571). E prossegue o autor (2011, p. 587):
Conveniente sublinhar, em caráter complementar, que da dupla função de proteção (e promoção) e de defesa segue também o dever de implantar medidas de precaução procedimentais e organizacionais, no sentido de evitar uma lesão da dignidade e dos direitos fundamentais, ou, quando isto não ocorrer, com o intuito de fazer cessar ou mesmo minimizar os efeitos das violações (...)
Ou seja, além da postura de abstenção e não interferência nos espaços privados de autodeterminação dos indivíduos, há um dever genérico (do Estado e da comunidade) de agir, quando necessário, para garantir que esses espaços não sejam violados.
Com efeito, a forma como cada um se relaciona amorosa ou sexualmente diz respeito, em regra, exclusivamente à esfera íntima e privada, salvo quando violadores de direitos fundamentais de seus pares, como sucede por exemplo, com o estupro e a pedofilia. Assim, o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo não tem qualquer potencialidade lesiva em relação à esfera de terceiros, razão porque deve ser respeitada (social e juridicamente) como expressão de um espaço intangível de autonomia privada.
Nesse sentido, Luís Roberto Barroso (2013, p.164 e 165) leciona que:
A autonomia privada pode certamente ser limitada, mas não caprichosamente. A imposição de restrições deve ser justificada pela promoção de outros bens jurídicos de mesma hierarquia, igualmente tutelados pela ordem jurídica. Essa é uma exigência do princípio da razoabilidade (...) Ocorre porém, que o não reconhecimento das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo não promove nenhum bem jurídico que mereça proteção em um ambiente republicano. Ao contrário, atende apenas a uma determinada concepção moral, que pode até contar com muitos adeptos, masque não se impõe como juridicamente vinculante em uma sociedade democrática e pluralista, regida por uma Constituição que condena toda e qualquer forma de preconceito.
4.3 - O art. 226 da Constituição Federal como cláusula geral de inclusão
A Constituição Federal em seu artigo 226 dispõe o seguinte:
Art. 226. A família , base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§ 3º Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento
§ 4º Entende-se também como entidade familiar a comunidade formada por quaisquer dos pais e seus descendentes.
Aqueles que se opõe ao reconhecimento jurídico das uniões estáveis e do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo partem de uma interpretação estrita e literal do dispositivo supracitado.
Por outro lado, há aqueles que entendem que a expressão “homem e mulher” não impõe necessariamente a exclusão de outras formas de entidades familiares, mesmo porque o próprio §4º do dispositivo supracitado desvincula a proteção familiar a uma estrutura específica (existência de um casal heterossexual), demonstrando que o substrato da tutela jurídica são pessoas em vínculo de afeto e comunhão de vida.
Aliás, o próprio fato de o texto constitucional ter inserido expressamente a união estável como entidade familiar é indicativo de que a proteção jurídica deve se voltar mais à realidade fática e afetiva do que a aspectos formais que compõe a família.
Luís Roberto Barroso (2013, p.171) aponta oportunamente que a Constituição de 1967, em seu artigo 167, só reconhecia como família a entidade formada pelo casamento. Na concepção do ministro, a inserção da expressão “homem e mulher” na Constituição de 1988 se deu apenas para enfatizar a união entre companheiros que outrora era vista com discriminação por não estar pautada no casamento. Dessa forma, aduz que a Constituição não pretendeu esgotar as formas de famílias que são tuteladas, mesmo porque tal posição seria insustentável quando analisada a partir de uma visão sistêmica da Carta Magna (BARROSO, 2013, p. 173 e 174).
5 - ARGUMENTOS CONTRA O RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E O PROJETO DE LEI 580/07
A verdade é que inexiste razão que possa justificar um não reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar legítima e merecedora da proteção do Estado. Conforme se verá adianta, todos os argumentos invocados para obstar a proteção jurídica à família homossexual não encontram respaldo no regime democrático e no Estado Constitucional de Direito.
Há aqueles que defendem que a prática homossexual é pecaminosa, e que por isso não deve ser chancelada pelo Estado. No entanto, de plano se visualiza que o argumento colide frontalmente com a laicidade estatal consagrada no texto constitucional, que impede o Estado de orientar suas concepções e políticas através de uma visão religiosa específica. Portanto, a ideia de pecado adotada por uma religião alijaria os direitos de outras pessoas que não necessariamente professam a mesma fé.
Há também aqueles que alegam que as uniões homossexuais não seriam legítimas porque não são capazes de gerar descendentes. O argumento da procriação aqui é facilmente descartado, visto que existem muitos casais heterossexuais inférteis ou que até mesmo optam por não terem filhos, e que nem por isso deixam de ser legítimos ou protegidos pelo Estado como entidade familiar quando casados ou quando preenchidos os requisitos legais da união estável.
Registre-se ainda a alegação de que o reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas poderia estimular a “homossexualização” de heterossexuais, como se a homossexualidade dependesse de um dispositivo legal, e não de uma condição intrínseca à personalidade dos indivíduos.
Argumenta-se também que pode haver um enfraquecimento da família. Os que seguem essa linha de raciocínio parecem ainda não estarem atentos ao fato de que o modelo tradicional de família como produto indissolúvel do casamento de caráter patriarcal já não é mais o mesmo devido à própria dinâmica da sociedade, que clama por uma flexibilização do modelo familiar.
Conforme já demonstrado ao longo do presente trabalho, o instituto da família quando lido sob uma filtragem constitucional tem muito mais relação com a afetividade do que com arranjos estáticos e preestabelecidos. Em verdade, reconhecer juridicamente os laços homoafetivos implica justamente no fortalecimento da família, uma vez que valoriza o traço mais essencial da mesma, qual seja, a afetividade.
Por fim, o argumento de que os relacionamentos homossexuais contrariam os padrões de normalidade da moral dominante não poderia ser mais opressor. Não há dúvidas de que a moral é um importante instrumento de ordem social, mas ela não pode servir de justificativa para discriminar e reprimir condutas que não têm potencial ofensivo contra a sociedade e que não prejudicam a terceiros. Do contrário, ela passa a ser um instrumento de repressão e um embargo à efetivação de muitos direitos fundamentais. A respeito desse tema, o ministro Luís Roberto Barroso argumenta com maestria na ADI 4277:
O que cabe discutir aqui-e rejeitar- é a imposição autoritária da moral dominante a minoria, sobretudo quando a conduta desta não afeta terceiros. Em uma sociedade democrática e pluralista, deve-se reconhecer a legitimidade de identidades alternativas ao padrão majoritário. O estabelecimento de standards de moralidade já justificou, ao longo da história, variadas formas de exclusão social e política, valendo-se do discurso médico, religioso ou da repressão direta do poder.
Após a decisão do Supremo Tribunal Federal em 2011, a temática da união estável e do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, embora tenha suscitado descontentamento na parcela mais conservadora da sociedade, parecia estar pacificada no seio social.
Todavia, em outubro de 2023, a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família aprovou o Projeto de Lei 5167/09, de autoria do Capitão Assumção (PSB/ES), que tem por objetivo inserir no art. 1.521 do Código Civil um parágrafo único com o seguinte teor “Nos termos constitucionais, nenhuma relação entre pessoas do mesmo sexo pode equiparar-se ao casamento ou a entidade familiar”. A justificativa dos autores do texto é fazer valer a democracia e a vontade do povo, que em sua maioria, é guiada pelos valores cristãos.
Conforme já demonstrado ao longo do presente estudo, os argumentos invocados para a proibição de reconhecimento das relações homoafetivas estáveis, públicas, duradouras e em comunhão de vida como entidade familiar não se sustentam. A “vontade da maioria” não pode ser invocada para discriminar e mitigar direitos que se referem estritamente a intimidade de outrem. Pelo contrário, realizar a perspectiva democrática, no caso, é justamente tutelar adequadamente direitos daqueles que historicamente não tiveram voz.
6 - CONCLUSÃO
A falta de menção expressa no ordenamento jurídico brasileiro não é óbice ao reconhecimento da proteção constitucional e jurídica a entidade familiar homoafetiva.
O reconhecimento das relações homoafetivas estáveis como entidade familiar é tanto possível quanto necessário. É possível porque na modernidade o conceito de entidade familiar foi reconstruído de modo a abarcar vários tipos de arranjos familiares, com o elemento afetividade como principal caracterizador.
É necessário porque nosso ordenamento jurídico tem como valores fundamentais o respeito ao exercício da personalidade, ao princípio da liberdade, ao princípio da igualdade, e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Negar direitos a um casal homossexual que tem relação contínua e duradoura com todas as características de uma união estável é incompatível com a ideia de democracia, que tem a pluralidade como um de seus pilares
Conclui-se, portanto, que o julgamento conjunto da ADPF 132 e da ADI 4277, que teve como relator o ministro Ayres Britto, representou uma conquista paradigmática no fortalecimento da proteção às minorias. A partir de então, aplica-se às uniões estáveis homoafetivas o mesmo regime aplicado às uniões estáveis entre homem e mulher, regulada pelo artigo 1.723 do Código Civil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] O dia 17 de maio passou a ser considerado o Dia Internacional Contra a Homofobia Uma outra classificação denominada DSM, a homossexualidade deixou de ser registrada como patologia mental desde 1973.( Homossexualidade não é transtorno desde 1973; tratamento causa sofrimento - 21/09/2017 - UOL VivaBem consultado em 25/12/2023, às 21:14 )
[2] . Na classificação da OMS, a transexualidade só deixou de ser considerada patologia em junho de 2018.
[3] Estudo do pesquisador Bruce Bagemihl. Há ainda, estudos apontando que a homossexualidade em mamíferos pode ter utilidade evolutiva. https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2023/10/03/homossexualidade-em-mamiferos-tem-utilidade-evolutiva-diz-estudo.ghtml. Acesso em 26/12/2023.
formada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Assessora Jurídica no Ministério Público Federal em Sergipe
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTOS, Vivian Leite. A decisão do STF sobre união estável homoafetiva: um paradigma na proteção a direitos fundamentais de minorias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jan 2024, 04:48. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64376/a-deciso-do-stf-sobre-unio-estvel-homoafetiva-um-paradigma-na-proteo-a-direitos-fundamentais-de-minorias. Acesso em: 24 dez 2024.
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