Resumo: O ensaio a seguir reflete a respeito do direito na literatura e a contribuição que esses dois fenômenos podem trazer para a transformação social. Trata-se de uma análise sobre o papel da literatura na construção do jurídico por meio do prisma direito na literatura. Aborda-se o “mito da prisão voluntária” apontando as provocações reflexivas que o texto se propôs a fazer. O artigo estabelece algumas conexões entre o direito e literatura embasada nos estudos do Prof. Dr. François Ost e realiza alguns questionamentos com relação a suspensão do desenvolvimento da mentalidade e a crise humana advinda do conforto trazido pela inteligência artificial, e por fim, aponta o poder do direito alinhado a literatura para a solução do conflito de civilidade atual.
Palavras-chave: Direito na Literatura. Direito a liberdade. Crise.
ABSTRACT: The following essay reflects on law in literature and the contribution these two phenomena can bring to social transformation. It is an analysis of the role of literature in the construction of the juridical, through the prism of law in the literature, the “myth of voluntary imprisonment” is approached, pointing out the reflexive provocations that the text proposed to make.The article establishes some connections between law and literature based on Prof. Dr. François Ost and raises some questions regarding the suspension of mentality development the human crisis arising from the comfort brought by artificial intelligence, and finally points out the power of law aligned with literature for the solution of the current civility conflict.
Keyword: Law in Literature. Right to freedom. Crisis.
1 Introdução
Quem é que diz o direito? Pergunta intrigante que imediatamente remete os olhos ao contexto cultural, lugar onde o direito nasce e se desenvolve. Um olhar sobre o direito através de uma perspectiva por meio da arte, da literatura pode permitir uma melhor compreensão sobre o fenômeno do jurídico e sobre a sua linguagem, se considerar que a literatura é expressão do imaginário humano instrumentalizado.
Falar sobre o direito é falar sobre linguagem, um povo só existe se puder compreender-se, e a linguagem exerce o papel de unificar os interesses, deste modo, a literatura deve ter lugar consagrado no tocante a construção do direito, pois através dela, o homem pôde construir, deste a antiguidade debates e reflexões que foram capazes de desenvolver o jurídico. Questões fundamentais que norteiam todo o ordenamento jurídico só puderam atravessar gerações e se aprimorar graças ao imaginário construído por meio da literatura. Diversos autores literários contribuíram para a construção do pensamento jurídico por captar os movimentos e a realidade social e os instrumentalizarem em suas obras literárias, ajudando a construir a cultura do seu povo. O mito trazido para análise é mais uma dessas contribuições ao movimento direito e literatura.
O Prof. Dr. François Ost em sua obra As fontes do imaginário humano, propõe que haja, “a partir de estudos de Direito e Literatura, uma renovação dos esquemas interpretativos do direito por meio de uma viagem às fontes do seu imaginário”, pois, a imaginação do homem pode influenciar, criar e mudar aquilo que está positivado no direito.
O Prof. Dr. Ost, ao dizer, “se o direito produz pessoa, a literatura produz personagem”, traduz a liberdade existente na literatura. O direito é mudança. O direito é movimento, a cultura se constrói e a literatura a eterniza, a modifica, a questiona, e o faz livremente sem amarras, a literatura é a asa do pensamento, da reflexão, ela é a pena que escreve, conta e reconta o Direito.
2 “O mito da prisão voluntária”
SÓCRATES: Figura-te a humanidade em um estado de guerra, em relação à razão e a civilidade, sob a forma alegórica que farei agora. Imagine só um cenário, onde após muitos e muitos anos de luta e opressão, um aglomerado de pessoas finalmente conquistou a liberdade. Estariam livres para conhecer tudo o que a luz fosse capaz de tocar, entretanto, os opressores nunca descansariam até domina-los novamente...
GLAUCO: Imagino tudo isso.
SÓCRATES: Supõe que esses homens por esquecimento ou por ignorância sobre as guerras que precederam o estado de liberdade decidem um a um a abdicar dessa virtude em troca de uma ilusão oferecida pelos antigos opressores. A promessa de uma vida mais fácil, sem dor, sem tristeza, de prazeres fáceis. Uma vida repleta de coisas fantásticas, feitos maravilhosos, tudo seria permitido, não haveriam regras, um lugar onde o ser poderia ser quem ele desejasse ser.
GLAUCO: Um quadro curioso!
SÓCRATES: A princípio qualquer um seria bem-vindo. Todavia, seria necessário cumprir algumas obrigações. Todos que quisessem acesso a esta vida deveriam voluntariamente apenas entregar as suas informações particulares, contar os seus passos, informar tudo o que fizessem, o que conversassem e até mesmo sobre tudo o que pensassem. Quanto mais informações maravilhosas pudessem criar, mais reconhecimento da comunidade receberiam. Entretanto, as notícias ruins, as imagens degradantes, ou os relatos entristecedores não seriam tolerados, portanto deveriam sempre ser evitados, escondidos e disfarçados. Não era permitido sofrer.
GLAUCO - Impressionante!
SOCRATES – Uma vida aparentemente fantástica e sedutora, as pessoas se agrupariam por afinidades, não seria mais necessário se relacionar com ninguém de quem não gostasse, bastaria excluí-lo! Seria possível conhecer pessoas, se relacionar e fazer amizades. Nessa vida, seria permitido dizer tudo o quisesse e jamais seria punido! Informações sobre medicina, justiça, arquitetura, artes, política, guerra e qualquer outro assunto que pudéssemos imaginar estariam disponíveis para qualquer pessoa interessada adultos, jovens e crianças, sem nenhuma restrição.
GLAUCO – Me parece ser um infinito de possibilidade.
SOCRATES – Seriam tantas as possibilidades, que esses homens permaneceriam constantemente envolvidos, e estariam sempre tão distraídos que não poderiam perceber a grande verdade. De que estariam por certo, aprisionados pelas imagens, notícias, informações e relações oferecidas. Se acostumariam com a facilidade, com o acesso irrestrito a conhecimentos criados que perderiam a capacidade de criar seus próprios pensamentos. Se de tudo o que pudessem imaginar, pelos opressores já lhes havia sido disponibilizado, certamente não haveria mais a necessidade de criatividade alguma!
GLAUCO - Por certo, não haveria necessidade de razão, já que não haveriam problemas a seres solucionados! Ainda que houvessem, quem se importaria?
SOCRATES: Depois de alguns anos vivendo assim, certamente estes homens perderiam toda a consciência. A vida fácil, repleta de coisas boas e belas os fascinaria tanto a ponto de nenhum deles se interessar pelas questões relevantes da vida! A verdade sobre as dores humanas acabaria sendo negligenciada para que o ideal de perfeição se mantivesse.
GLAUCO – Singular existência seria essa.
SOCRATES: O que será que aconteceria, se um desses homens percebesse que essa vida perfeita prometida era uma grande armadilha dos antigos opressores para manterem presos todos os seus companheiros e assim dominarem a eles e ao mundo sensível? O que aconteceria se esse homem se desse conta de que seus os companheiros aprisionados estariam tão fascinados e corrompidos nesse mundo ininteligível que se esqueceram de suas obrigações como cidadãos?
GLAUCO – Seria possível chegar a todas essas conclusões.
SOCRATES: Ora, não te parece que, uma vida sem dores só poderia se realizar por homens que nada sentem? Nem dores e nem prazeres?
GLAUCO - Sem dúvida. Certamente não seriam homens estes seres.
SOCRATES: Os homens aprisionados pela obrigação de felicidade, incapazes de discernir, estariam confusos sobre si próprios e perderiam a sua identidade. Não se reconheceriam como iguais. A ideia de perfeição, os seduziria, de modo que perderiam a coragem de viver a realidade. Fingiriam para todos e para si. Tentariam enganar seus próprios sentimentos humanos. E para manterem essa aparência personagens tornar-se-iam.
GLAUCO - Fora de dúvida.
SÓCRATES – Não haveria mais confiança, ninguém saberia mais o que é verdade ou ilusão, tudo seria raso nada de profundo, restariam somente sombras, escuridão e confusão mental, seres ininteligíveis. Tornar-se-iam seres individualistas, egocêntricos e egoístas. A liberdade utilizada sem consciência acabou por lhes aprisionar a alma. Ninguém mais pensaria no outro, o mundo sensível perderia a importância. Os homens seriam criadores de suas próprias cavernas e estariam centrados em si, em seus desejos particulares. Se afastariam da convivência, do diálogo, da razão! Nesta obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas?
GLAUCO - Nada veriam.
SÓCRATES - Fitar a luz, lhes doeria os olhos. Fugir da realidade e da verdade, pareceria não ser mais uma opção, pois não haveria mais pensamento crítico para tomar qualquer decisão racional. E assim como as almas, os valores e os princípios sociais desse povo teriam suas estruturas derrubadas pelas armas da individualidade, da subjetividade e da inconsciência da falsidade. Não haveria mais civilidade, só desordem, desencontros, incompreensão, ignorância e violência. O ser humano irracional, apenas um selvagem, que agiria sempre em excesso ou em falta. Seria esse o cenário ideal para a dominação de opressores!
GLAUCO - Certamente.
SOCRATES – Estariam sempre tão distraídos esses pobres. Talvez seria essa a enfermidade maior da humanidade: a obrigação de ser feliz! A inconsciência voluntaria! O corpo livre e a mente aprisionada!
GLAUCO – Pobres cativos, não?
SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se aquele homem que retomou a sua consciência, decidisse lutar para recuperar a ordem da civilização destruída. Sua missão seria livrar o máximo de pessoas possíveis dessa prisão voluntária. A caverna onde a humanidade se aprisionou precisaria ser descontruída. Seria preciso desmaterializar o povo, relembra-los de sua humanidade. Abrir-lhes os olhos da razão! Imaginemos que não poderia fazer tudo isso sem grande pena.
GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.
SOCRATES - Tivesse ele que convencer os companheiros que essa vida de falsa felicidade havia destruído todas as relações humanas e que eles se afastaram da ideia do bem, por negar a sua humanidade, e que todos estariam aprisionados, que recuperar a liberdade de cada um só seria possível através da coragem e da razão. Imagine que a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em ilusões opressoras, não é certo que no mínimo os faria rir? Não lhe diriam que, ele estaria louco, ultrapassado, que seu esforço não valeria a pena e que assim, se alguém quisesse fazer o mesmo, mereceria ser excluído e desacreditado?
GLAUCO - Por certo que o fariam.
SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem a tudo o que antes havíamos dito com relação aos cativos daquela mesma caverna. O antro subterrâneo sempre foi a irracionalidade humana. O homem inconsciente não faz bom uso das suas virtudes, aqui a liberdade submetida à ignorância aprisionou os homens, como os cativos daquela caverna escura, que eram presos a correntes, libertar esses homens será ainda mais penoso, pois a prisão agora é voluntária. Mas a razão ilumina a alma do homem, lhe quebra correntes. O homem iludido sempre poderá retomar a sua consciência se assim desejar, ao contemplar a razão sua alma se elevará. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só através da razão conhecemos a verdade. Quanto a mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites da consciência está a ideia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, autora da inteligência e da verdade, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria a ponto de não trocar uma vida livre por migalhas opressoras.
3 ANÁLISE DO MITO DA PRISÃO VOLUNTÁRIA e sua relação com o direito na literatura
Direito e Literatura podem abordados em três dimensões segundo o Prof. Ost: o direito da literatura, uma análise sobre a liberdade de expressão, a história jurídica da censura e políticas editoriais; por um segundo prisma tem-se o direito como literatura, a investigação busca a análise da retórica e métodos de interpretação entre os textos literários e jurídicos; E pela terceira via o direito na literatura, aqui o objetivo é a análise de questões sobre o direito, a justiça e o poder.
“O mito da prisão voluntária” será aqui abordado na perspectiva do direito na literatura, já a questão trabalhada no texto trata de um direito fundamental que o direito à liberdade.
O texto faz uma alusão ao Mito da Caverna, escrito por Platão na obra “República”, onde em um diálogo entre Sócrates e Glauco, é contada a história de alguns cativos que nascem e vivem presos a correntes dentro de uma caverna escura e tudo o que enxergam não passam de reflexos produzidos por uma fogueira, portanto nada do conhecem é real, apenas imagens. Tudo se modifica quando um desses cativos consegue escapar e alcança s superfície da caverna e lá pode contemplar o sol e todas as coisas belas do mundo real.
O mito trata da iluminação do filósofo, que ao ter coragem de livrar-se das amarras, consegue contemplar o sol, o belo, a verdade, e deseja que todos os seus companheiros alcancem a verdade também, porém ao retornar à caverna, tristemente é desacreditado pelos cativos, que dado seu estado de nascença, de comodismo e de falta de coragem preferem permanecer na ignorância profunda.
O “mito da prisão voluntaria” se assemelha ao “mito da caverna”, primeiramente pela linguagem utilizada, posteriormente se aproximam ao tratar da ignorância, da liberdade e da possibilidade da iluminação do homem.
Se diferenciam em diversos pontos, no tempo, no espaço, e principalmente pelo fato de que no “mito da caverna” os cativos nascem presos em suas cavernas. Como crianças que nada conhecem do mundo, e jamais tiveram acesso aos meios de conhecer, sair da ignorância seria muito dificultoso, pois os cativos não se reconhecem prisioneiros. Já no “mito da prisão voluntária” os homens nascem livres e decidem entregar livremente a sua liberdade em troca de ilusões.
O texto faz referência a prisão a que o mundo atual se lançou. A sociedade abriu mão de um direito fundamental que é a liberdade de pensamento ao se escravizar nas redes sociais. A internet parece ter travado uma guerra com a intelectualidade humana, já que por meio dela tudo é aparentemente fácil e possível, o homem vai perdendo a sua capacidade de raciocinar, e o pior, tem consciência de que tudo ali é ilusão, mas não possui forças suficientes para lançar mão do comodismo, e permanece voluntariamente aprisionado.
A prisão, segundo o texto, seria a própria mente humana, o homem contra o homem, criando mecanismos para a destruição da racionalidade, corrompendo as relações, corrompendo as ideias, a racionalidade substituída pelo conforto ofertado pela inteligência artificial desestrutura a sociedade, já que agora o homem pode “decidir” não enfrentar a realidade, pode viver num mundo paralelo, pode ser senhor, pode ser um “Deus” sentado no conforto de sua casa, em uma cadeira estofada se ocupando de julgar o mundo através do seu olhar único e superior.
A vida em sociedade perde a ideia do bem comum, se materializa, o homem esquece de suas fragilidades, o homem perde a sua humanidade, e os noticiários mostram os resultados diariamente dessa troca da liberdade de pensar pela prisão voluntária na caverna da ignorância.
O mito, nos remete a reflexão sobre o caminho que a sociedade está trilhando. Como será possível atingir o bem estar social em uma sociedade que não se unifica? Em uma sociedade cada vez mais distante da humanidade, uma sociedade que não reflete, que não discute pacificamente, uma sociedade que não conversa, que não se escuta, como ficará a política? O direito à liberdade nas mãos da ignorância levará a humanidade ao fim? Será que o direito à liberdade poderia ser relativizado considerando o caos civilizatório que estamos vivendo?
Questões de relevância que precisam ser pensadas, a literatura mais uma vez se coloca a disposição sem amarras para que livremente se possa até mesmo questionar a disposição de direitos que são considerados fundamentais.
O direito à liberdade sempre foi relativizado, a pena de reclusão é o exemplo, com a sua função de ressocialização suspende-se o direito fundamental a liberdade para que o ser humano se reeduque e possa voltar ao convivo social.
Na atual conjuntura, a maior parte da população deveria ser ressocializada, reeducada, reumanizada. E quem irá reordenar a humanidade senão ela própria através do direito? E como iremos produzir cidadãos capazes de construir uma sociedade melhor se não pudermos escrever uma nova história?
Questões como estas devem ser discutidas pela sociedade e o cenário literário permite que reflexões como essas possam contribuir com o imaginário rumo a construção de uma cidade mais justa.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A crise que a humanidade enfrenta inerente ao desenvolvimento da mentalidade e da intelectualidade é resultado de diversos fatores, um desses fatores é o uso da inteligência artificial, que oferta uma falsa sensação de poder e liberdade, quando utilizada como substituta da razão humana atrofia a capacidade de reflexão do homem.
Uma sociedade que não dialoga, que não reflete, que não pensa é uma sociedade fadada ao extermínio.
O direito só pode ser construído por meio da unidade social, a literatura é uma salvaguarda da cultura, dos interesses sociais, da política e do direito.
Preparar os operadores do direito para reordenar a sociedade só é possível por meio da linguagem, o direito e a literatura são peças fundamentais para esse objetivo de reestruturação, esse laço não pode se dissolver em legalismo objetividade.
A análise do “mito da prisão voluntária” é uma provocação para a reconstrução da condição humana que poderá se realizar através do poder da cultura, da literatura e do direito.
4 Referências
PLATÃO. A República. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2000. p.319-322.
OST, François. Contar a Lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2007
Professora de Direito; Assessora Jurídica na Prefeitura Municipal de Toledo –Mg; Bacharela em Direito, Especialista em Direito Público, Mestranda em Direito .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LETICIA REGINA ANÉZIO, . Direito na Literatura: O instrumento de poder para reescrever a condição humana. Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 mar 2024, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/64811/direito-na-literatura-o-instrumento-de-poder-para-reescrever-a-condio-humana. Acesso em: 23 dez 2024.
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