RESUMO: Este artigo objetiva analisar a legitimidade do Ministério Público Estadual para a propositura de reclamações constitucionais nas hipóteses de afronta a preceitos consagrados em súmulas vinculantes, editadas pelo Supremo Tribunal Federal a partir de reiteradas decisões sobre matéria constitucional. Para tanto, ocupa-se em examinar a natureza jurídica da reclamação constitucional e o papel desempenhado pelo Ministério público na sistemática jurídica e democrático-constitucional, como forma de sustentar a legitimidade ad causam do Parquet estadual, a quem foi estabelecida a precípua vocação constitucional de zelar pela defesa da ordem jurídica e do regime democrático.
Palavras–chave: Reclamação constitucional. Ministério público estadual. Legitimidade.
ABSTRACT: This article aims to analyze the legitimacy of the State Prosecutor's Office for the filing of constitutional complaints in the event of affront to principles enshrined in binding precedents, issued by the Supreme Court from repeated decisions on constitutional matters. To this end, is concerned to examine the legal nature of the constitutional complaint and the role of public prosecution in legal and democratic constitutional systematically as a way to support the ad legitimacy cause the Parquet, who was established constitutional vocation ensure the defense of the legal order and the democratic system.
1. INTRODUÇÃO
Nos últimos tempos, uma interessante discussão agitou o cenário do Supremo Tribunal Federal e tal debate teve por mira asseverar se o Ministério Público estadual possui ou não legitimidade ativa para propor junto ao Supremo Tribunal Federal as devidas reclamações constitucionais quando houver afronta a ato administrativo ou decisão judicial que contrarie súmula aplicável ou que indevidamente a aplique.
Trata-se do debate acerca da legitimidade do representante do Ministério Púbico estadual para ajuizar reclamações constitucionais, nas hipóteses de eventual descumprimento da súmula vinculante. A presente questão ganhou relevo quando do julgamento da Reclamação 7.358/SP, por meio da qual se pontuava possível descumprimento da súmula vinculante nº 9, ocasião em que se levantou a preliminar de ilegitimidade ativa do ministério público estadual para impetrar junto à Suprema Corte aquela medida judicial, sob o argumento de que o único legitimado para assentar e fazer as vezes do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) seria o Procurador Geral da República. Por essa razão, naquele instante processual, considerou-se a ilegitimidade do ministério público paulista, tanto que os autos foram encaminhados para àquela Procuradoria que, tendo vistas do conteúdo ali discutido, ratificou a reclamação anteriormente proposta, abraçando a causa suscitada e tornando-se, dessa forma, o dominus litis daquela questão.
Pois bem, restou assentado que o Ministério Público estadual possui a dita legitimidade para impetrar junto à Suprema Corte as reclamações constitucionais por descumprimentos de súmulas vinculantes. Nada obstante, a postura de alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, no instante em que desconsiderou o parquet estadual como legítimo titular para a propositura de reclamações constitucionais por desrespeito a enunciados de súmulas vinculantes, caminha no sentido de arregimentar e perpetrar entre nós o desprestígio do Ministério Público dos estados membros da República Federativa do Brasil. O presente artigo tem exatamente essa missão: destacar a importância do tema e salientar os malefícios que podem decorrer de tal negativa.
Bem assim, torna-se imperativo, ainda que de maneira furtiva, o exame da natureza jurídica da reclamação constitucional. Esta reclamação é instituto jurídico antigo que já se manifestara no direito romano e que, na evolução do ordenamento jurídico brasileiro, apareceu com o advento da criação do Supremo Tribunal Federal, como forma de garantir a competência daquele sodalício. Esta reclamação, que sempre tivera o precípuo objetivo de garantir a competência objetiva, primeiramente do STF e a posteriori dos demais tribunais superiores, foi premiada com uma nova missão, a partir de dezembro de 2004.
Isso porque, com a chegada da Emenda constitucional 45/2004, injetou-se em nosso ordenamento a previsão de súmulas vinculantes, a serem editadas pelo STF, quando da existência de reiteradas decisões sobre matéria constitucional. Se esses verbetes sintéticos sempre orientaram a atividade jurisdicional, com o enxerto das súmulas vinculantes, a observância aos seus preceitos tornou-se obrigatória, tanto por parte do Poder Judiciário quanto pela Administração Pública.
Assim, quis o poder constituinte reformador adequar o texto constitucional aos reclames desta sociedade, que já é outra, com feições completamente diferentes daquela que aqui habitava nos anos de 1988 (instante em que a Constituição Federal vigente foi promulgada). Em se tratando de poder reformador, cumpre destacar que sua inovação encontra-se adstrita à subordinação, derivação e limitação que são características imanentes ao poder constituinte reformador, não havendo negar efetividade aos novéis comandos constitucionais.
De fato, o enxerto de novos regramentos no ordenamento jurídico, sobretudo as alterações de índole constitucional, exigem dos operadores do direito a valorosa missão de torná-los efetivos. Na maioria das vezes, a aplicação das regras constitucionais que não foram cogitadas ou queridas pelo constituinte originário, requer o abandono de posturas vetustas e ultrapassadas, que não mais se amoldam à nova realidade social, cuja transformação está encapsulada naqueles preceitos, reformados ou incluídos por emendas constitucionais.
Mais: exigem a aceitação do fato de que o direito é instrumento de transformação social e de que todos os juristas, como bastiões desse Direito, necessitam atuar como operadores dessa exitosa mudança. Em outras palavras, de nada adianta as alterações legislativas e os progressos aclamados pela doutrina se a jurisprudência não avançar e se os magistrados, diante de novos dispositivos, mantiverem suas visões fincadas em preceitos anacrônicos, premissas ultrapassadas.
Deste modo, o entendimento esposado por alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, mas que, alegremente, foi derrotada em sede do julgamento final daquela Corte, vulnera as inovações perpetradas em nosso ordenamento jurídico por força da Emenda Constitucional 45/2004. Essa posição, que tenta negar a legitimidade ativa do Ministério Público estadual para atuar junto ao Supremo nas reclamações constitucionais, nos parece equivocada, para não dizer que configura verdadeiro descalabro em nosso universo jurídico. É, portanto, a atualidade do tema e a importância dos efeitos que dele se dessumem o que nos motiva ao debruce da questão e a elaboração das linhas que doravante seguem.
2. A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Não é nossa pretensão desenhar com exatidão, e de maneira exaustiva, o percurso histórico da reclamação constitucional ao longo dos tempos; também não é nossa meta examinar as similitudes e divergências havidas no Direito comparado. Contudo, isso não obsta nem prejudica o exame de fragmentos de historicidade e de certo aporte referencial com o direito alienígena, até porque a compreensão de muitos institutos jurídicos não se desvencilha da análise de suas características. Muitas vezes, esse exame só se torna possível quando tais caracteres são examinados sob a perspectiva temporal, o que envolve um necessário cotejo histórico, ainda que rapidamente realizado.
É da lavra do professor Marcelo Navarro Ribeiro Dantas a obra brasileira mais completa sobre o tema da reclamação constitucional. Nela, o professor e atual ministro do Superior Tribunal de Justiça conclui que, na evolução histórica do instituto em comento, podem ser identificadas cinco fases distintas e sucessivas. Segundo ele, a primeira fase, interstício temporal compreendido entre a criação do Supremo em 1891 e o ano de 1957, esteve relacionada à construção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal que, embora não unânime, baseava-se na teoria dos poderes implícitos (implied powers), com supedâneo no direito americano, sobretudo após o precedente (stare decisis) firmado no caso Mac Culloch x Maryland. De acordo com essa teoria, no instante em que se atribui competência geral para determinado órgão fazer algo, atribui-se também, ainda que de maneira implícita, os meios necessários à sua execução[1].
Sobre isso, o ministro Rocha Lagoa, em voto preliminar publicado em 25 de janeiro de 1952, sustentou a posição de que a competência não expressa dos Tribunais Federais poderia sofrer ampliações. No seu entender (apud PACHECO, 2002: p.603-604):
Tudo o que for necessário para fazer efetiva alguma disposição constitucional, envolvendo proibição ou restrição ou a garantia a um poder, seve ser julgado implícito e entendido na própria disposição, pois vão seria o poder, outorgado ao Supremo Tribunal Federal (STF), de julgar em recurso extraordinário as causas decididas em única ou última instância, se lhe não fora possível fazer prevalecer seus próprios pronunciamentos, acaso desrespeitados pelas justiças locais. (Grifos acrescidos).
O segundo estágio teve início em 1957 e se estendeu até a promulgação da Constituição de 1967. Com efeito, foi a emenda ao Regimento Interno do STF que, em 02 de outubro de 1957, incluiu a reclamação no rol das atividades daquele Tribunal, devendo-se frisar, por oportuno, que naquela época a natureza jurídica da reclamação se aproximava mais do recurso do que de uma ação propriamente dita. Sobre isso, o professor Edilson Pereira Nobre Júnior pontifica (NOBRE JUNIOR, 2010, p.6):
No julgamento da Reclamação 831 – DF, o Min. Amaral Santos, ao argumento de que a reclamação pressupõe relação processual em curso, bem assim ato que atente contra a competência ou autoridade do Supremo Tribunal Federal proferida em processo, ou relação jurídico-processual deste dependente, propendeu pelo reconhecimento de que se trata de algo mais próximo do recurso do que duma ação.
A terceira era da reclamação constitucional, ainda na esteira do que ensina o magistrado, ocorreu entre o ano de 1967 e o ano de 1977, cujo divisor de águas foi a edição da EC 7/77. Essa Emenda Constitucional foi responsável por solidificar os traços deste instituto, tanto que seu quarto estágio perdurou da promulgação dessa emenda até a perda de vigência do referido regime constitucional, quando se iniciou o quinto estádio. Essa etapa, que é a última considerada por aquele autor, brotou juntamente com a Constituição Federal, na primavera de 1988. Acerca desse patamar da evolução histórica da reclamação constitucional, Edilson Pereira Nobre Junior sinaliza (NOBRE JUNIOR, 2010, p. 7):
Com a promulgação da Constituição de 1988, ingressa-se na quinta fase, com a consagração explícita da reclamação no âmbito da competência do Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, l) e do Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, f)[2], recebendo o seu processamento tratamento legislativo com os arts. 13 a 18 da Lei 8.038/90.
Nada obstante o acerto sistemático empreendido pelo professor Marcelo Navarro Ribeiro Dantas, é necessário lembrar que sua obra foi publicada no ano 2000 e que nosso ordenamento jurídico já foi, desde então, alvo de inúmeras reformas, algumas extremamente marcantes. Uma dessas alterações foi produzida por intermédio da EC 45/2004, que teve o condão de proporcionar a Reforma no Poder Judiciário. São frutos dessa emenda, por exemplo, a exigência de repercussão geral para as causas afetas ao Supremo Tribunal Federal, a criação do Conselho Nacional de Justiça e o instituto da súmula vinculante.
Essa súmula vinculante seria, portanto, o verbete sintético numerado que consagra o entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca de determinado assunto, com status constitucional. Sua previsão está expressa no art. 103-A da Constituição Federal, in verbis:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.
§ 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso. (Grifos acrescidos)
Pois bem. O enxerto desse dispositivo constitucional, no ano de 2004, teve o condão de inaugurar uma nova etapa na breve história da nossa reclamação constitucional. Essa etapa, por óbvio, não foi descrita na obra do professor Marcelo Navarro, pois as forças que lhe deram respaldo são ulteriores à publicação daquele livro. A bem da verdade, esse sexto episódio da evolução histórica das reclamações constitucionais traz consigo o surgimento de uma nova modalidade de ação autônoma de competência do Supremo Tribunal Federal, órgão a quem compete a exclusiva missão de editar súmulas vinculantes; nessa nova etapa histórica, a reclamação constitucional revigora suas forças de medida autônoma, a ser ajuizada no STF para fazer valer o atributo de vinculatividade daquelas súmulas que surgem com essa pretensão.
Nesse ponto, as reclamações constitucionais contra atos administrativos ou decisões que contrariem dispositivos de súmula vinculante ou que indevidamente a aplicar aproxima-se das ações típicas do controle de constitucionalidade concentrado. Mas as semelhanças não conseguem ofuscar as discrepâncias que há entre elas, de modo que, embora sejam ações de competência originária do Supremo, as características que as revestem e os procedimentos correlatos ao exame de sua admissibilidade, por exemplo, são de todo diversos[3].
Por tudo isso, faz-se imprescindível a análise da natureza jurídica da reclamação constitucional, no sentido de clarear seus caracteres e definir se trata de ação, recurso ou incidente processual, por se tratar de atividade de jurisdição contenciosa. Sobre o assunto, é intensa a cizânia doutrinária e, por mais que haja posição majoritária, estamos longe de vislumbrar pacificação sobre o assunto.
De acordo com Pontes de Miranda (MIRANDA, 1974, p. 384), a reclamação não pode ser considerada recurso, devendo ser vista como “ação contra ato do juiz suscetível de exame fora da via recursal”. Todavia, o posicionamento sustentado pelo autor não prospera, pois, embora considere a reclamação como ação, o faz comparando-a com a correição parcial, cuja natureza é eminentemente administrativa e não jurisdicional. Assim, para Pontes de Miranda a reclamação teria natureza jurídica de ação de direito material e não de remédio processual, razão por que não perfilhamos da corrente por ele capitaneada.
De fato, ela não detém natureza correicional, tampouco tenha viés recursal, pois, além de não estar prevista em qualquer dispositivo de lei federal como recurso e ter por objetivo genérico a manutenção da competência originária dos tribunais, a interposição da reclamação independe da existência de sucumbência, gravame ou prejuízo interposto ao reclamante, tal qual ocorre nos recursos. Sobre isso, destacam-se as lições de Fredie Diddier Junior e Leonardo José Carneiro da Cunha (DIDIER JUNIOR; CUNHA, 2014, p. 376):
Para que dado mecanismo seja enquadrado na moldura de recurso é preciso que esteja previsto em lei como tal. Realmente, de acordo com o princípio da taxatividade, somente são recursos aqueles que integram um rol taxativo previsto em lei. Daí por que somente são recursos aqueles capitulados no art. 496 do CPC ou assim previstos em dispositivo de lei federal.
Já para Egaz Moniz Aragão (apud DONADEL, 2011, p.3), a reclamação constitucional possui natureza de incidente processual, isto é, um incidente de competência, provocado pela parte que tem por vistas fazer com que o STF imponha sua competência quando usurpada, explícita ou implicitamente, por qualquer outro tribunal ou juiz. Igualmente, Cândido Rangel Dinamarco e Nelson Nery da Silva Júnior (apud DIDIER, 2015, p. 345) defendem tal posição, que não consideramos acertada, por não se tratar de situação nova que incide sobre algo que preexiste. O incidente pressupõe sempre a existência de um processo, o que não ocorre na reclamação, que pode ser impetrada para questionar até mesmo ato administrativo, bastando que tal conduta da Administração lesione preceito estampado em súmula vinculante.
Pois bem, compreende-se aqui a reclamação constitucional não como recurso e tampouco como incidente processual; trata-se de medida autônoma que consiste em verdadeira manifestação do direito de petição constitucionalmente garantido[4], consubstanciada numa ação ajuizada originariamente nos tribunais (exclusivamente no Pretório Excelso, nas hipóteses em que se trata de afronta à Sumula vinculante), com vistas a obter a preservação de sua competência ou a salvaguarda da autoridade de seus julgados[5].
3. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A Constituição Federal, ao consignar o Ministério Público como instituição permanente, quis salientar a relação umbilical havida entre a entidade ministerial e o Estado Democrático de Direito, cujo engenho e manutenção, em certa medida, dependem da força que for dada ao Parquet. É, portanto, entidade de vital importância, tendo sido-lhe entregue a precípua missão de tutelar a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses (e direitos) sociais e individuais indisponíveis.
A atuação do Ministério Público mereceu especial destaque no Novo Código de Processo Civil (Lei 13015/2015), tanto que lhe foi dedicado um título próprio (arts. 176 a 181), fortalecendo-lhe seu múnus na “defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses e direitos sociais e individuais indisponíveis.”
A consideração dessa importância, porém, não é algo recente e também não constitui particularidade de nosso ordenamento jurídico. Tanto é assim, que Piero Calamandrei, célebre jurista italiano, vaticinou o seguinte pensamento (apud VASCONCELOS, 2009, p.12):
Entre todos os cargos judiciários, o mais difícil, segundo me parece, é o do Ministério Público. Este, como sustentáculo da acusação, devia ser tão parcial como um advogado; como guarda inflexível da lei, devia ser tão imparcial como um juiz. Advogado sem paixão, juiz sem imparcialidade, tal é o absurdo psicológico no qual o Ministério Público, se não adquirir o sentido do equilíbrio, se arrisca, momento a momento, a perder, por amor da sinceridade, a generosa combatividade do defensor ou, por amor da polêmica, a objetividade sem paixão do magistrado.
Embora a manifestação de Calamandrei tenha por mira a análise do papel do promotor nas causas criminais, é possível que a utilizemos para as demais áreas afetas ao Ministério Público, sobretudo o brasileiro e dos demais países subdesenvolvidos onde, em virtude do índice de consciência social ainda diminuto, são atribuídas ao Parquet causas diversas daquelas de natureza criminal, que constitui o cerne de sua atuação ao longo dos anos, nos mais diversos países do mundo.
Avive-se que a história do surgimento Ministério Público, ainda que não haja pacificação doutrinária sobre o assunto[6], retroage aos idos do século XIII e XIV, mormente na França medieval, nos tempos da Ordenança francesa de 25 de março de 1302, de Felipe IV (o Belo) em que ganharam importância os procuradores do rei (procureurs de roi), com o destaque para o fato de que naquele instante tinham o afã de defender os interesses do monarca perante os Tribunais. Segundo histórico ventilado por Clever Rodolfo Carvalho Vasconcelos (VASCONCELOS, 2009), no Brasil surgiram os procuradores do rei em 1609 com o advento do Alvará de 7 março, responsável por instituir o Procurador da Coroa de Portugal junto ao Tribunal de Relação da Bahia.
Ainda que indiretamente previsto desde antanho, apenas com a República, mais especificamente com o Decreto 848, datado de 11 de outubro de 1890, o Parquet brasileiro alçou patamar de instituição, com o decalque no fato de que a primeira Constituição republicana (1891) apenas determinava que o Procurador Geral da República seria recrutado do universo dos ministros do Supremo Tribunal Federal e que tal escolha seria realizada pelo presidente da República.
Nesse íter, cumpre destacar que o status constitucional, adquirido já com a Constituição de 1934, apenas seria fortalecido, incrementado e robustecido com a chegada da Constituição cidadã, que celebrou a trajetória ministerial, transformando-o em entidade permanente, cuja existência já não pode mais ser ameaçada pelo alvedrio do constituinte derivado. Isto é, desde a Constituição de 1988, o Ministério Público cresceu em prestígio institucional e adquiriu ornes de entidade permanente, não podendo mais sucumbir por força de emenda constitucional alguma.
Dentre os princípios institucionais que lhes dão respaldo e envergadura, destacam-se aqueles elencados no § 1º do art. 127 da Constituição Federal: a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional. Graças ao princípio da unidade, o Ministério Público é uno, indivisível, valendo-se ressaltar que a unidade (e indivisibilidade) vigoram dentro de cada uma das instituições ministeriais, razão por que não há falar em unidade e indivisibilidade entre o Parquet da União (composto pelo Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) e cada Parquet estadual (VASCONCELOS, 2009).
Nesse ponto, não se sustenta a posição que alega ser processual o princípio da unidade ministerial, até porque há jurisdições bem delineadas para cada parcela do Ministério Público e existem atribuições afeitas ao Ministério Público estadual que são estranhas ao Ministério Público da União.
Inclusive, ao se estudar a matéria de competência, parte da atenção é direcionada para a atuação do Parquet, pois, inobstante o famigerado princípio da unidade, há um liame entre aquilo que pode ser argüido pelo Ministério Público estadual e o que pode ser proposto apenas pelo Ministério Público da União, em quaisquer de seus ramos; e há uma zona cinzenta de atribuições comuns a ambos os representantes do Ministério Público. Mas frise-se: a unidade do Ministério Público não pode ser invocada para atentar contra a autonomia de nenhum de seus componentes, tampouco pode afrontar contra as atribuições dos Ministérios Públicos estaduais.
É verdade que o princípio da unidade e da indivisibisibilidade estão intrincadamente relacionados, mas esta adjunção manifesta, por exemplo, não outorga ao Ministério Público da União a responsabilidade por todos os atos judiciais interpostos junto ao Supremo Tribunal Federal, por exemplo. Também não se pode, com base em tais princípios, minorar ou até mesmo extirpar a parcela de legitimidade que cabe a cada um dos Ministérios estaduais. Vale lembrar que, embora haja previsão de indivisibilidade e unidade, a maioria das condutas processuais levadas a efeito pelo Parquet, sobretudo nos tribunais superiores, são realizadas por intermédio dos Ministérios Públicos estaduais que, tendo acompanhado a causa desde a origem, podem trazer para a instância superior bagagem discursiva mais elevada, ampliando a carga discursiva retórica, instrumentalizando com mais eficácia e maior fôlego o princípio do contraditório e da ampla defesa.
Não há verdade quando se diz que as funções do Ministério Público junto ao Supremo Tribunal Federal são exercidas com exclusividade pelo Procurador Geral, nos termos do art. 103 §1º da Constituição Federal, pois se assim o fosse, os Ministérios Públicos estaduais também não seriam legitimados a propositura de recursos extraordinários, habeas corpus e tantos outros recursos, ações, incidentes processuais e demais impetrações de estilo, constantemente ajuizadas naquele Pretório Excelso.
É que a Constituição Federal, embora tenha previsto com desenganado acerto o arcabouço principiológico de respaldo do Ministério Público, não quis extrair dos representantes estaduais a possibilidade de levarem à frente o debate acerca das causas em que atuam. Defender posição contrária significa guerrear contra a independência funcional que foi atribuída, em igual dosagem, a toda a entidade ministerial, seja ela estadual ou federal. A propósito, tal ilação é igualmente válida para os processos que tramitam no Superior Tribunal de Justiça, na esteira do que bem pontuou o ministro Ari Pargendler, nos autos do EREsp 1.327.573-RJ:
Perante o Superior Tribunal de Justiça, o Ministério Público Federal exerce ambas as funções. No âmbito cível, ele atua como autor, portanto como parte, quando propõe, por exemplo, uma ação rescisória, e age como custos legis quando, v.g, opina em mandado de segurança, em recursos, etc.
No âmbito criminal, ele é autor da ação, portanto parte, quando esta deve ser processada e julgada originariamente, e funciona como custos legis quando, v.g., opina em habeas corpus, em recursos, etc. Tais funções podem ser cumuladas no mesmo processo; é o caso da ação rescisória, em que o Ministério Público Federal opina mesmo sendo o autor (AR nº 384, PR, de minha relatoria, DJ, 1º.09.97).
Quid, se a ação, cível ou penal, é proposta pelo Ministério Público Estadual, perante o 1º grau de jurisdição, e o processo é alçado ao Superior Tribunal de Justiça por meio de recurso?
Salvo melhor juízo, em sede de recursos, o Ministério Público Federal exerce apenas uma de suas funções, qual seja, a de custos legis; o recurso é da parte, e o Ministério Público, à vista do ordenamento jurídico, pode opinar pelo provimento ou pelo desprovimento da irresignação.
Cindido em um processo o exercício das funções do Ministério Público (o Ministério Público Estadual sendo o autor da ação, e o Ministério Público Federal opinando acerca do recurso interposto nos respectivos autos), não há razão legal, nem qualquer outra ditada pelo interesse público, que autorize uma restrição ao Ministério Público Estadual enquanto autor da ação. Do ponto de vista legal, como exposto, o Subprocurador Geral da República opina como custos legis em recursos interpostos pelo Ministério Público dos Estados.
Sob o prisma do interesse público, nada justifica a restrição à atuação do Ministério Público Estadual, que tem o direito de atuar perante o Superior Tribunal de Justiça no interesse dos recursos que interpõe, sustentando-os oralmente, interpondo agravos regimentais contra decisões que os denegam, etc.” (Grifos Acrescidos)
Ocorre que a Constituição não fez juízo de comparação entre os órgãos do Ministério Público dos Estados ou da União. Ao revés, festejou o princípio da unidade até como forma de zelar pelo prestígio do Ministério Público estadual, pois o histórico brasileiro mostra uma prevalência constante das entidades e institutos federais em detrimento daqueles estaduais. Ou seja, a carta política quis dizer que, afora os casos em que ela mesma estabeleceu algum tipo de tratamento diferenciado com relação aos representantes do Ministério Público, não poderá haver dissensão trazida pelo Estado, no sentido de conturbar a atuação ministerial.
Assim, nem a Administração Pública com seus atos, nem o Poder Judiciário através de suas decisões e hermenêuticas e tampouco o Legislativo, pelas suas espécies normativas, podem restringir a atuação do Ministério Público estadual, uma vez que qualquer conduta nesse sentido seria atentatória ao Estado Democrático de Direito, em geral, e à vontade político-democrática do Constituinte originário, em particular. Seria, em termos mais fortes, ato inconstitucional.
4. A RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL E A (I)LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL
No revogado Código de 1973 (Código Buzaid), consoante explicitava remansosa doutrina, a legitimidade afigurava-se como condição da ação (DIDIER, 2014, p. 42), porquanto eram rotulados como “condições da ação” o interesse de agir, a possibilidade jurídica do pedido e a legitimidade. O Novo Código, em vigor a partir de 18 de março de 2016, inovando também nesta matéria, abandonou tal denominação, limitando-se a estabelecer os pressupostos processuais à lide, agora encapsulados no art. 17 da Lei 13.105/2015, de sorte que “para postular em Juízo é necessário ter interesse e legitimidade”.
Pois bem, a legitimidade ad causam quer dizer, em regra, a possibilidade de as pessoas só poderem ir a juízo, na condição de partes, postular e defender direitos quer alegam ser próprios, e não alheios. Consoante pontua Marcus Vinicius Rios Gonçalves, trata-se de sábia norma, porquanto “seria muito complicado se, em regra, as pessoas pudessem postular, em nome próprio, interesses alheios” (GONÇALVES, 2015, p. 157).
No entanto, a citada regra possui exceções, verificadas nas hipóteses em que a lei autoriza alguém a, em nome próprio, ir a Juízo, para postular ou defender interesse alheio. Em casos tais, fala-se em legitimidade extraordinária (ou substituição processual), isto é, diz-se da possibilidade que o ordenamento jurídico outorga para que uma determinada pessoa ou órgão postule em Juízo interesse alheio, valendo-se para tanto de seu próprio nome. A legitimidade ostentada pelo ministério Público amolda-se a esta categoria, portanto.
Insta pontuar que tal legitimidade extraordinária não se confunde com a representação processual, de forma que o ponto de destaque entre ambas reside na autonomia da representatividade com a qual o postulante comparece em Juízo, eis que nas representações (a exemplo de demandas postuladas por absolutamente incapazes, por outrem representador), o representante postula em Juízo direito alheio, em nome de outrem e não em seu próprio nome, diversamente do que ocorre nas situações de legitimidade extraordinária. De maneira didática, a questão é bem explicada nos seguintes termos (GONÇALVES, 2016, p. 158):
Não se pode confundir legitimidade extraordinária com representação. Imagine-se que um incapaz precise ir a juízo, postular um direito. Por exemplo, um menor, abandonado pelo pai, que precisa de alimentos. Ao ajuizar a demanda, ele é que figurará como autor, será o demandante. Mas, como é incapaz, é preciso que venha representado pela mãe, ou por quem tenha a sua guarda. O incapaz estará em nome próprio (ele é o autor) defendendo direito próprio. Na legitimidade extraordinária, aquele que figura como parte postula ou defende direito alheio. É o que ocorre, por exemplo, se a lei autorizar X a ajuizar uma demanda, em nome próprio, mas na defesa de interesses de Y. Haverá uma dissociação: aquele que figura como parte (X) não é o titular do direito; e o titular do direito (Y) não é quem figura como parte.
No que pertine à legitimidade para a propositura de reclamações constitucionais perante o Supremo, há de se destacar que, em um primeiro instante, no julgamento da Rcl 7358/SP, a ministra Ellen reconheceu a legitimidade exclusiva do Procurador Geral da República para exercer funções do Parquet no Supremo Tribunal Federal. Amparou seu entendimento em reiterados posicionamentos daquela casa, afirmando a necessidade da ilegitimidade ativa ser corrigida pelo procurador geral, que, no caso concreto, a ratificou e assumiu a titularidade da demanda.
Naquela hipótese, foi o ministro Marco Aurélio quem abordou o punctum dolens da questão, responsável pela criação de um sério problema, que, ao fim e a cabo, desaguaria no descredenciamento do papel do Ministério Público estadual na precípua missão de promover o acesso à Justiça. Segundo ele, “a organicidade do direito, principalmente da grei instrumental, é refratária a uma alternância”.
De fato, quando atua na origem e desde o primeiro grau, o Ministério público de um Estado qualquer, tendo interposto recurso em virtude do prejuízo havido com a decisão prolatada no juízo de primeira instância, não há razão para retirar de sua alçada os instrumentos necessários perante o Supremo; também não haveria motivos para sustentar a legitimidade necessária do Ministério Público da União, pois é o Parquet estadual o órgão diretamente interessado na questão ali versada.
Teria até mesmo o Ministério Público da União (sobretudo o Federal, que desempenha as atribuições correlatas às desempenhadas pelo Parquet estadual) uma destacada dificuldade em acompanhar os julgamentos de todos os casos que se desenrolam nos tribunais de justiça Brasil adentro. Nos casos em que os agentes políticos de uma entidade estadual vislumbrem ofensa ao verbete do Supremo, nada mais justo e coerente que lhe seja franqueada a possibilidade de reclamar ao Pretório Excelso, pela via que a própria Constituição elegeu como adequada. E tal permissão foi-lhe concedida independentemente do beneplácito ou aval do Procurador Geral da República.
O Ministério Público estadual deve, portanto, ser encarado como parte legítima para alcançar o Supremo mediante Reclamação Constitucional (NOBRE JUNIOR, 2010, p. 6). É que o Parquet do Estado membro dispõe de legitimidade ativa para formular, di per si, perante o Supremo, reclamações nas situações em que se vislumbre afronta ao enunciado sumular com efeitos vinculantes. Nem parece acertado o posicionamento assente do Supremo Tribunal Federal que o Ministério Público do Trabalho não dispõe de tal legitimação, pois a possibilidade de propor Reclamação constitucional foi ofertada pelo constituinte reformador (com o advento da EC/45) a todos os prejudicados por ato administrativo ou decisão judicial que descumpra preceito de súmula vinculante ou que indevidamente a aplicar.
Não quis o constituinte apartar esse ou aquele órgão do Ministério Público. Quis apenas garantir a competência dos tribunais e sufragar o prestígio das súmulas vinculantes editadas pela mais alta corte judicial de nosso país, não havendo razão para negar a ramo ministerial algum a possibilidade de levar a discussão ao Supremo, nas hipóteses de desrespeito previstas constitucionalmente e que impliquem em flagrante prejuízo aos interesses que juridicamente almeja defender.
Apesar de discordar desse entendimento, acredita-se que ele ainda se justifica por uma questão de mera singularidade: O Ministério Público do Trabalho, assim como o Federal, o Militar e dos Territórios integram o Ministério Público da União, cujo chefe é mesmo o Procurador-Geral da República. Mas não existe qualquer relação de dependência, ainda que de caráter administrativo, entre o Parquet da União e o Ministério Público dos Estados federados.
Muitas vezes, o órgão ministerial dos estados pode formular reclamação perante o Supremo, deduzindo pretensão com a qual não concorde, eventualmente, a chefia do Ministério Público da União. Nesses casos, não haveria a necessária ratificação por parte do Procurador Geral e, com isso, estaria sobremaneira prejudicado o ingresso da possível reclamação. Não há dúvidas de que isto prejudicaria consideravelmente o acesso ao Judiciário; aniquila a possibilidade do Parquet estadual levar ao Judiciário a sua pretensão, desconstruindo as bases constitucionais que lajeiam nosso Estado Democrático de Direito. Isto é, negar tal legitimidade ao Ministério Público seria o mesmo que negar a possibilidade de controlar o respeito e observância aos verbestes sumulares impregnados de eficácia vinculante editados pela Suprema Corte.
Com efeito, nesses casos, o Ministério Público estadual nada mais faz do que utilizar um remédio previsto no próprio texto constitucional. Ele não está usurpando atribuições do Procurador Geral da República; apenas está manejando um instrumento que a Constituição Federal achou por bem oferecer.
Em casos outros, há possibilidade do Procurador Geral de Justiça de um estado sustentar oralmente as razões do MP estadual em mandado de segurança interposto perante o Supremo, na defesa de prerrogativa institucional do Ministério Público do respectivo estado membro. Nestas circunstâncias, o Supremo admite a legitimidade por entender que não cabe ao procurador Geral da República impetrar em nome próprio um mandado de segurança para defender prerrogativa do Parquet estadual. Assim, tal qual nessa hipótese, nos casos de reclamação constitucional, sustenta-se uma alargada possibilidade de o Ministério estadual formular originariamente a reclamação perante o Supremo Tribunal Federal.
Defender posição contrária é o mesmo que amparar um posicionamento que está em combate com a paridade de armas, uma vez que o outro pólo da ação pode ingressar com reclamação constitucional ante o Supremo, independentemente de quaisquer beneplácitos. Se assim for, outra saída não há senão reconhecer maior poder processual a outra parte, contra quem estaria contendendo o Parquet, numa determinada lide. E esta postura nos parece inadmissível nos dias atuais.
Bem assim, sustentar a ilegitimidade reclamatória do Parquet estadual arranha a paridade de armas, pois, em uma dada relação jurídica (uma ação pública incondicionada, por exemplo) que tenha em um dos polos um Ministério Público estadual e de outra banda um indiciado, a afronta a uma dada súmula vinculante poderá ser arguida junto ao Supremo pelo indivíduo que figura como réu, mas não poderá ser levada pelo Parquet estadual, uma vez que a condução de suas reclamações para contestar descumprimento de súmulas vinculantes estaria condicionada ao aval e ratificação do Procurador-Geral da República. Isto configuraria diferenças de tratamento, dentro de uma mesma causa e tal posicionamento não merece prosperar, sobretudo em um país que se intitula Democrático de Direito, que tem como vigas mestras o princípio da isonomia e o princípio federalista.
Não parece acertada a idéia de que alargar a possibilidade para todos os Ministérios Públicos estaduais seria atitude suicida, por possibilitar inúmeros processos que atingiriam o Supremo sem ter passado pelo crivo do Procurador Geral da República. Os que assim defendem alegam que a Suprema Corte não pode andar na contramão do que ocorre em todos os países do mundo, em que a legitimação para atuar perante a Suprema Corte é extremamente restrita. Mas esquecem, por exemplo, que na Alemanha, berço do direito constitucional e cujo Tribunal Federal irradia influência em todos os cantos do mundo, existe um remédio processual, coincidentemente denominado “reclamação constitucional” que pode ser impetrado por qualquer pessoa, bastando a suposta violação de um direito fundamental do qual seja titular. Para os que assim se posicionam, parece que não lhe agrada muito os ideais de um amplo acesso à justiça.
Do ponto de vista do locus de atuação, ocorre nestes casos o mesmo que se passa quando o Ministério Público estadual, de uma decisão que não o satisfaça, interpõe recurso extraordinário perante o Supremo. Em ambas as situações, o locus de atuação é o mesmo. Conforme frisamos, se imaginarmos que o fato de o Ministério público interpor um remédio jurídico direto ao Supremo Tribunal Federal contra outra decisão que não seja do Supremo pudesse representar atuação perante a Corte, então, o Parquet estadual jamais teria legitimidade para atuar perante aquela Casa, inclusive através do ajuizamento de recursos extraordinários, mandados de segurança e demais impetrações de estilo.
É bem verdade que a reclamação constitucional por descumprimento de súmula com eficácia vinculativa é medida autônoma, é ação de competência originária do Supremo, mas vale lembrar que sua natureza jurídica tem que ver com o direito de petição, constitucionalmente garantido, embora a estrutura de sua pretensão seja a mesma que a dos recursos extraordinários, por exemplo. É que o sistema jurídico forneceu um instrumento mais ágil e vigoroso para impugnar certas decisões, o que não deixa de ser um dos remedidos possíveis para questionar decisão dos tribunais locais. E o parquet, seja estadual, seja federal, imprescinde de poderes suficientes para tanto.
Uma pergunta inquieta: tem ou não tem o Ministério público estadual legitimidade para usar dos remédios jurídicos que constam no ordenamento para impugnar decisões dos tribunais locais? Parte da doutrina, e alguns ministros, entendem que para ingressar com qualquer pedido, medida ou ação originária naquela Casa, é necessário que se esteja listado entre aqueles que têm legitimidade para atuar perante o Supremo. Mas tal entendimento findaria por estabelecer uma inconveniente relação de dependência entre os Ministérios Públicos estaduais e o Ministério Público da União, subordinando aqueles à figura do chefe do Ministério Público da União (MASSON, 2011, p. 526).
Bem provável que haverá pretensões que não merecerão o apoio da Procuradoria Geral da República, de modo que defender tal posicionamento seria o mesmo que extirpar do Ministério Público estadual a possibilidade de defender a força das súmulas com efeito vinculante, nas hipóteses em que condutas de determinados tribunais afrontassem o seu teor e direção, prejudicando com isso as questões judicialmente tuteladas por aquele específico Ministério Público.
Não se quer aqui sustentar entendimento que afasta a Procuradoria Geral da República do cenário de atuação perante o Supremo. Sempre haverá o controle por parte desta douta Procuradoria quanto à pretensão reclamatória, uma vez que o Ministério Público Federal, por intermédio de seu chefe, intervém, necessariamente, nos processos de reclamação, opinando como custus legis, inclusive. Nessas hipóteses, o Parquet estadual seria sujeito parcial da relação jurídica, ao passo que a procuradoria Geral da República, ao intervir, agiria na condição de fiscal da lei, atuando, portanto, de maneira estreme de vínculos e ponderações parciais.
O que não se pode defender é a submissão dos Ministérios Públicos estaduais à Procuradora Geral da República, sob pena de se provocar uma mutilação na autonomia de cada entidade do Ministério Público estadual, espalhado pelos rincões do Brasil.
Ora, a orientação do STF que consigna a Procuradoria Geral da República como arauto do Ministério Público nas pretensões reclamatórias tem por fulcro o art.46 e 47 da Lei Complementar nº 75/93, que é lei orgânica do MP da União, cuja seção segunda do primeiro capítulo do segundo título é aberta com a seguinte rubrica: da chefia do Ministério Público Federal.
Aliás, esse título versa sobre os ramos do Ministério Público da União e como se sabe, o Procurador Geral da República não é vocacionado à defesa direta das questões dos Ministérios Públicos estaduais. E mais: ainda que a ele se atribua o exercício, junto ao Supremo, das funções típicas do Ministério Público, é preciso lembrar que oferecer reclamação constitucional não é função típica de Parquet algum; é, isso sim, necessidade de todo aquele que se sente agravado e ofendido por desprestígio da competência objetiva de algum tribunal superior ou por violação de verbete sumular vinculante.
De fato, a Constituição Federal, quando cuidou da habilitação processual ativa, em matéria de controle objetivo de constitucionalidade, por se tratar de questões per saltum, apenas habilitou o Procurador Geral da República. E, nesse ponto, excluiu os demais ramos do Ministério Público e até mesmo os representantes ministeriais dos estados membros; assim como também retirou daquele estreito rol os cidadãos. Isso quer dizer que, embora seja o Supremo instância única e última para a análise de reclamação por descumprimento (ou aplicação inadequada) de súmula vinculante, não quis o constituinte originário estreitar o elenco de seus legitimados.
É que, embora seja ação autônoma, semelhante aquelas do controle concentrado de constitucionalidade havidas junto ao Supremo, diverge com elas em pontos fulcrais. Em se tratando da legitimidade ad causam, por exemplo, enquanto no controle de constitucionalidade só se consideram legítimos aqueles enunciados no art. 103-A, para propor a reclamação constitucional basta apenas que exista a afronta ao preceito da súmula vinculante e o interesse por parte do lesado de ver corrigida tal inobservância. O critério aqui é objetivo, até porque não quis a Constituição filtrar os legitimados para a propositura desse valoroso instrumento processual (ALVES, 2010, p. 89); e não pode interpretação alguma querer trancafiar as portas de legitimidade que foram franqueadas pela Constituição.
Não se pode suprimir a possibilidade de acesso do Ministério Público dos estados membros ao Supremo Tribunal Federal, nas hipóteses em que a Constituição não obstou tal ingresso. Em outras palavras, é bom lembrar que, quando a Constituição cuidou da propositura de ADIN, por exemplo, o fez habilitando, exclusivamente, o chefe de um dos ramos do Ministério Público, a saber, o chefe do Ministério Público da União; e retirou de todos os cidadãos a possibilidade de propô-la.
Com efeito, qualquer cidadão do povo pode, mediante se dessume da leitura do dispositivo constitucional, impetrar reclamação constitucional, para contestar afronta a preceito de súmula vinculante, seja quando o descalabro for cometido por meio de ato administrativo (pois a súmula vinculante irradia efeitos, inclusive, sobre a Administração Pública) seja quando a lesão é promovida por decisão judicial[7]. Assim sendo, não há razão para, em um só instante, defender a legitimidade ativa de qualquer do povo e excluir desse vultoso rol o Ministério Público dos estados. A legitimidade para a propositura de reclamações constitucionais por descumprimento à sumula com eficácia vinculativa há de ser a mais ampla possível.
Ademais, há funções do Ministério Público estadual que não são exercidas pelo Parquet federal, de forma que retirar de sua esfera o manto que reveste sua legitimidade pode tornar inócua a busca pela efetiva prestação jurisdicional do caso concreto; e pode retirar, em tese, da esfera de apreciação judicial aquelas reclamações constitucionais que não forem ratificadas pela Procuradoria Geral da República. Isso seria o mesmo que retirar do Ministério Público dos estados membros um instrumento indispensável para a realização de suas funções. O sistema jurídico precisa envidar esforços para incrementar e robustecer, cada vez mais, a atuação do Ministério Público, e não minar suas forças, obstruindo suas atribuições e descredenciando a porção de legitimidade, constitucionalmente outorgada.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história da reclamação constitucional revela a sua clássica função de instrumento processual a ser utilizado como forma da garantir a competência objetiva dos Tribunais Superiores. Todavia, com o advento da Emenda Constitucional 45/2004, foi enxertada em nosso ordenamento jurídico uma nova modalidade reclamatória, qual seja, aquela que se encontra estampada no art. 103-A da Constituição e que tem por objetivo a manutenção do prestígio alçado pelas súmulas vinculantes. Assim, segundo reza o preceito constitucional, caberá reclamação ao Supremo do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar. Essa modalidade de reclamação, bem mais do que garantir a mera competência objetiva, tem o intuito de fazer respeitada as decisões do STF que porventura venham a ser convertidas em verbetes sintéticos dotados de eficácia vinculante.
Por outro lado, viu-se que o Ministério Público é entidade permanente cuja criação, embora remonte tempos pretéritos, apenas teve sua estrutura consolidada, no Brasil, sob a batuta da Constituição federal de 1988. Esta Constituição brindou sobremaneira a importância da instituição, reconhecendo-lhe um papel de magnitude inédita na nossa história e até mesmo no direito comparado. Na tentativa de organizá-lo, o constituinte originário consagrou a existência do Ministério Público da União (formado pelo Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Militar e também pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios) e do Ministério Público de cada estado membro, ambos regidos pelos princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional.
Contudo, os princípios da unidade e da indivisibilidade não podem ser utilizados como supedâneo para a tese da ilegitimidade ativa do parquet estadual, pois se assim o fosse o Ministério Público estadual nunca seria legítimo para atuar junto ao Supremo Tribunal Federal. Ocorre que, por questões de vontade constitucional, não quis o constituinte originário restringir a legitimidade ativa para a propositura de reclamações constitucionais, tanto é assim que facultou a todos os cidadãos a possibilidade de fazê-lo, exigindo apenas a afronta ao preceito sumular ou a aplicação inadequada.
Por essa razão, não se considera acertada a posição que descrendencia do Ministério Público estadual a legitimidade para o ajuizamento destas reclamações constitucionais junto ao Supremo Tribunal Federal. Sustentar tal postura é conduta que não se alinha com os preceitos que alicerçam o Estado Democrático de Direito e que desprestigia, consideravelmente, o Ministério Público de cada estado membro, por mitigar suas atribuições e marchar no sentido oposto àquela rota traçada pelo texto constitucional.
REFERÊNCIAS
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[1] Vide Rcl 141/SP.
[2] O Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça se ocupa da reclamação nos seus arts. 187 a 192.
[3] A reclamação constitucional está regulada nos arts. 156 a 162 do regimento interno do Supremo Tribunal Federal, in verbis:
Art. 156. Caberá reclamação do Procurador-Geral da República, ou do interessado na causa, para preservar a competência do Tribunal ou garantir a autoridade das suas decisões. Parágrafo único. A reclamação será instruída com prova documental.
Art. 157. O Relator requisitará informações da autoridade, a quem for imputada a prática do ato impugnado, que as prestará no prazo de cinco dias.
Art. 158. O Relator poderá determinar a suspensão do curso do processo em que se tenha verificado o ato reclamado, ou a remessa dos respectivos autos ao Tribunal.
Art. 159. Qualquer interessado poderá impugnar o pedido do reclamante.
Art. 160. Decorrido o prazo para informações, dar-se-á vista ao Procurador- Geral, quando a reclamação não tenha sido por ele formulada.
Art. 161. Julgando procedente a reclamação, o Plenário ou a Turma poderá: I – avocar o conhecimento do processo em que se verifique usurpação de sua competência; II – ordenar que lhe sejam remetidos, com urgência, os autos do recurso para ele interposto; III – cassar decisão exorbitante de seu julgado, ou determinar medida adequada à observância de sua jurisdição. Parágrafo único. O Relator poderá julgar a reclamação quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do Tribunal.
Art. 162. O Presidente do Tribunal ou da Turma determinará o imediato cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente.
[4] Consoante os ensinamentos do professor Artur Cortez Bonifácio (2004, p.81), o direito de petição sinaliza a interação entre o indivíduo e os poderes públicos e os órgãos em que se expressam. Ensina ainda que o direito de petição é um direito de liberdade e também um direito prestacional e por mais razão um direito de participação do cidadão nas decisões políticas que lhe afetam.
[5] De igual modo, para Marcelo Navarro Ribeiro Dantas (DANTAS, 2000, p.19), a reclamação constitucional pode significar uma manifestação do direito de petição,na medida em que traz ínsita a noção de objeção de qualquer natureza.
[6] Há certa cizânia doutrinária no sentido de apontar, com certeza e rigorismo histórico, a origem do Ministério Público. Parte da doutrina aponta o Egito Antigo, pois ali se descobriram funcionários reais que, em nome dos faraós, reprimiam rebeldes e protegiam os demais cidadãos, ofertando acusações daqueles e buscando a verdade . Outros apontam a Grécia Antiga e ainda há aqueles que vinculam o surgimento ministerial à figura germânica do comum acusador (Gemeiner Anklage), que era o responsável por promover a ação penal, nos casos em que os ofendidos e seus representantes não perseguiam o suposto ofensor. (MENDES et al, 2009, p. 1037)
[7] Para Edilson Pereira Nobre Junior, a Súmula, com eficácia vinculativa, constitui verdadeira fonte de direito, elaborada a partir de processo objetivo de fiscalização de constitucionalidade. (NOBRE JUNIOR, 2008, p. 31)
Bacharel em Direito e mestre em Direito Constitucional, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Possui pós-graduação em Direito Público, tendo exercido o cargo de Assessor de Juiz Federal, com atuação na 2ª Vara Federal da Seccional do Rio Grande do Norte. Atuou como professor Acadêmico na UFRN durante os anos de 2009-2012, lecionando disciplinas como Direito Constitucional, Processo Penal e Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. Tendo atuado como Consultor Jurídico do Tribunal de Contas entre os anos de 2012 e 2021, é atualmente Defensor Público do Estado do Rio Grande do Norte
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GUDSON BARBALHO DO NASCIMENTO LEãO, . A legitimidade do ministério público estadual para a propositura de reclamações constitucionais por descumprimento de súmulas vinculantes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 abr 2024, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65027/a-legitimidade-do-ministrio-pblico-estadual-para-a-propositura-de-reclamaes-constitucionais-por-descumprimento-de-smulas-vinculantes. Acesso em: 23 dez 2024.
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