RESUMO: A Sociedade 4.0, assim intitulada por Klaus Schwab[1] em razão das alterações promovidas nas relações humanas pelas inteligências artificiais, trouxe para o operador do direito significativas alterações na estrutura das relações de trabalho e no ordenamento jurídico. Com o objetivo de atender aos direitos fundamentais do trabalhador garantidos pela Constituição Federal de 1988, pretende-se com o presente artigo discorrer, sem esgotamento da matéria, sobre a necessidade de flexibilização dos institutos justrabalhistas como até então concebidos, passando-se por uma análise dos conceitos históricos, problemáticas presentes e especulações sobre o futuro das relações de trabalho.
Palavras-chave: Sociedade 4.0. Relações de Trabalho. Flexibilização. Requisitos. Flexibilização.
ABSTRACT: Society 4.0, named by Klaus Schwab1 due to the changes promoted in human relations by artificial intelligence, brought significant changes to the legal operator in the structure of work relations and in the legal system. With the aim of meeting the fundamental rights of workers guaranteed by the Federal Constitution of 1988, this article intends to discuss, without exhausting the subject, the need to make the labor institutes more flexible as previously known, using historical concepts, current problems and speculations about the future of work relations.
Keywords: Society 4.0. Work relationships. Flexibilization. Requirements. Flexibilization.
INTRODUÇÃO
O presente artigo, com o tema “A Sociedade 4.0 e a Necessidade de Flexibilização ods Requisitos da Relação de Emprego”, discorre sobre repercussões da inserção da tecnologia da informação nas relações de trabalhos contemporâneas, nas quais o atingimento de metas e fluidez no intercâmbio das informações é de salutar importância para o sucesso da atividade empresarial.
Será analisada a evolução das relações de trabalho no tempo e no espaço, com enfoque nos anseios desse novo tipo de sociedade, em que ao trabalhador não basta apenas ser “expert” no que realiza, mas também produzir com perfeição técnica e celeridade, utilizando-se das inovações tecnológicas trazidas pela inserção de inteligências artificiais na execução e fiscalização do contrato de trabalho.
Os típicos elementos caracterizadores da relação de emprego (art. 3º da CLT) já não são mais suficientes para determinar com segurança jurídica o devido enquadramento do trabalhador como subordinado às normas celetistas, de modo que se impõe a relativação de certas normas e princípios como forma de tentar contornar a lacuna e amparar o trabalhador às novas modalidades de emprego, tais como a “uberização”.
Com essas considerações, foram formulados os seguintes problemas: quais as possíveis soluções materiais e processuais que a jurisprudência e a doutrina poderão adotar diante da evolução tecnológica para a conformação à Sociedade 4.0? Quais os principais reflexos nas relações de trabalho e de que modo isso pode afetar o acesso à jurisdição?
Mediante o uso do método de abordagem dedutivo, o presente artigo busca abordar, sem possibilidade de esgotamento, com o uso da técnica de pesquisa indireta, eminentemente bibliográfica e jurisprudencial, além da consulta à lei, sentenças, acórdãos, decisões dos Tribunais Superiores e resoluções dos órgãos competentes.
Com a ponderação dos princípios vetores da relação laboral e do respeito à garantia do devido processo legal, chegar-se-á à conclusão da necessidade de adoção de uma nova visão das relações de trabalho pela Justiça do Trabalho, impulsionada pela implantação de inteligências artificiais e a necessidade de flexibilização de determinados institutos então enraizados.
2 BREVE HISTÓRICO DAS RELAÇÕES LABORAIS
As relações de trabalho, conhecidas pela hierarquia entre empregado e empregador e a existência de uma subordinação desconectada da ideia de servidão, remontam ao tempo da 1ª Revolução Industrial (1760 a 1850 - Século XVII), em que houve o surgimento da mecanização, energia a vapor e dos teares de tecelagem.
Para Delgado (2017, p.92), a subordinação jurídica se constitui no elemento nuclear das relações de trabalho surgidas com o advento da 1ª Revolução Industrial:
“O elemento nuclear da relação empregatícia (trabalho subordinado) somente surgiria, entretanto, séculos após a crescente destruição das relações servis. De fato, apenas já no período da Revolução Industrial é que esse trabalhador seria reconectado, de modo permanente, ao sistema produtivo, através de uma relação de produção inovadora, hábil a combinar liberdade (ou melhor, separação em face dos meios de produção e seu titular) e subordinação. Trabalhador separado dos meios de produção (portanto juridicamente livre), mas subordinado no âmbito da relação empregatícia ao proprietário (ou possuidor, a qualquer título) desses mesmos meios produtivos — eis a nova equação jurídica do sistema produtivo dos últimos dois séculos.” (2017, 16ª edição, pag. 92).
Segundo o mesmo autor (ibid., p. 92), o Direito do Trabalho surgiu na Inglaterra precipuamente como limitador dos abusos na utilização dessa nova da força de trabalho:
“o Direito do Trabalho não apenas serviu ao sistema econômico deflagrado com a Revolução Industrial, no século XVIII, na Inglaterra; na verdade, ele fixou controles para esse sistema, conferiu-lhe certa medida de civilidade, inclusive buscando eliminar as formas mais perversas de utilização da força de trabalho pela economia.” (2017, 16ª edição, pag. 92)
Com a difusão da energia elétrica e o surgimento de meios de produção, tais como o ‘Fordismo” e o “Taylorismo”[2], adotados pelas emergentes indústrias automobilísticas ascendentes do Século XIX, surgiram os pilares da 2ª Revolução Industrial (1850 a 1945), caracterizada pela racionalização das tarefas em linhas de produção e na contratação de mão de obra especializada.
Anos após, a utilização da criptografia nas mensagens trocadas pelos alemães na Segunda Gerra Mundial impulsionaram a necessidade de invenção do primeiro computador, criado pelo matemático Alan Turing (1912-1954)[3]. Tal invento traçou novos contornos para o processamento de dados e a produção de produtos e serviços, sendo reconhecido como marco da 3ª Revolução Industrial.
Doravante, a partir da década de 90, com a popularização do computador e do acesso à internet, estes passaram a ser o principal meio para obtenção e difusão de conteúdo e comunicação, afastando qualquer limite geográfico.
A tecnologia passou a cada vez mais integrar o dia o dia, interferindo nas formas como as pessoas se relacionam, o que também incluiu as relações de trabalho. O físico e o digital transpuseram as suas barreiras e as inteligências artificiais foram introduzidas em praticamente todos os níveis de interação.
É o que Schwab (2016, p. 16), diretor e fundador do Fórum Econômico Mundial definiu como 4ª Revolução Industrial ou Sociedade 4.0:
“Atualmente, enfrentamos uma grande diversidade de desafios fascinantes; entre eles, o mais intenso e importante é o entendimento e a modelagem da nova revolução tecnológica, a qual implica nada menos que a transformação de toda a humanidade. Estamos no início de uma revoluçãoque alterará profundamente a maneira como vivemos, trabalhamos e nos relacionamos. Em sua escala, escopo e complexidade, a quarta revolução industrial é algo que considero diferente de tudo aquilo que já foi experimentado pela humanidade.”
Esse é o novo modelo de sociedade que se estabelece com a Sociedade 4.0, em que a utilização de inteligências artificiais a estabelece novos paradigmas de interação entre o meio físico e o digital, cujos reflexos repercutem indissociavelmente nos meios de aprendizagem, interação e produção, com a imposição de uma readequação e flexibilização das relações de trabalho como até então conhecidas.
3 DOS ELEMENTOS DA RELAÇÃO DE EMPREGO E O CASO DA “UBERIZAÇÃO” NA SOCIEDADE 4.0
A competência para processamento e julgamento das causas envolvendo as relações empregatícias foi atribuída à Justiça do Trabalho pela Constituição Federal de 1988 desde a sua promulgação. A relação de emprego consiste em umas das diversas espécies do gênero relação de trabalho e encontra regulamentação no ordenamento jurídico na Consolidação da Leis do Trabalho (CLT).
A Emenda Constitucional nº 45/2004 trouxe em seu bojo uma série de mudanças na estrutura do Poder Judiciário, dentre elas a ampliação da competência jurisdicional da Justiça do Trabalho, outorgando-lhe, desta feita, não só o processamento e julgamento das relações de emprego stricto sensu, como também das relações de trabalho em sentido lato. A exceção ficou em relação aos servidores públicos estatutários, a quem a competência é atribuída a Justiça Comum, Federal ou Estadual, a depender da esfera de atuação.
Assim, para que cumpra o seu mister e se faça a devida aplicação do direito, ao magistrado do trabalho é necessária uma análise detida quanto à presença, ou não, de todos os elementos caracterizadores da relação de emprego, previstos nos artigos 2º, caput, e 3º da CLT:
A tarefa não é considerada fácil, pois as nuances que circundam as variadas espécies de relação de trabalho, diferenciadas por elementos mínimos, tal como ocorre com a classe das domésticas e dos rurais, e, em especial, com as novas profissões da Sociedade 4.0, nem sempre estão tão bem claras, causando dúvidas ao julgador e insegurança jurídica ao trabalhador.
De acordo com os artigos 2º e 3º da CLT, os elementos da relação de emprego se encontram assim disciplinados:
“Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.” (BRASIL, 1943)
A relação de emprego, segundo a norma celetista, então pode ser descrita como todo vínculo jurídico formado entre empregado e empregador, mediante um contrato de prestação de serviços formalizado, ou não, em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), sob o qual o trabalhador, sempre pessoa física, dispõe de sua força laborativa em prol de determinada atividade econômica; enquanto que o empregador, com o poder diretivo, o remunera correndo os riscos da atividade (alteridade) e desde que presentes os elementos da pessoalidade, subordinação jurídica, onerosidade e não eventualidade.
Em síntese, são portanto sete os elementos necessários para a declaração de um vínculo laboral como uma típica relação de emprego: a) alteridade/risco do empreendimento; b) poder diretivo; c) trabalho prestado por pessoa física; d) pessoalidade:; e) subordinação jurídica; f) onerosidade; g) não eventualidade. A ausência de qualquer um deles, segundo a doutrina e a jurisprudência sedimentada, descaracteriza a relação de emprego stricto senso.
Não obstante tais premissas mínimas, a nova dinâmica que circunda as relações pessoais e trabalhistas na Sociedade 4.0 impõe a necessidade de flexibilização dos elementos da relação de emprego como até então conhecidos. Indaga-se, como garantir a esses trabalhadores a cobertura trabalhista e previdenciária pelo Estado, caso um dos típicos elementos da relação de emprego não seja reconhecido?
Tal problemática impõe aos magistrados certa dificuldade na análise dos elementos caracterizadores do vínculo de emprego previstos no art. 2º e 3º da CLT. É o que ocorre por exemplo com os casos envolvendo o enquadramento dos motoristas de aplicativo (Uber) como prestadores de serviço de natureza cível ou trabalhista.
Com efeito, a CLT ainda não incorporou as novas formas da realização do trabalho, a exemplo da “uberização”, porém convém lembrar que os princípios que regem o direito do trabalho permanecem intocados e que a doutrina e a jurisprudência em construção revelam um processo evolutivo de flexibilização interpretativa da definição clássica dos elementos previstos.
Nesse sentido, é importante transcrever as lições de Bobbio (1996, p. 213) sobre a exegese jurídica:
a interpretação jurídica é uma atividade muito complexa, que pode ser concebida de diversos modos: Baseia-se na relação entre dois termos, o signo e o significado do próprio signo, e assim, assume sombreamentos diversos, segundo os quais tende a gravitar para um ou para outro desses dois polos: a interpretação pode ser ligada principalmente ao signo enquanto tal e tender a fazê-lo prevalecer sobre a coisa significada; ou ainda pode ser mais sensível à coisa significada e tender a fazê-la prevalecer sobre o signo puro; fala-se, neste sentido respectivamente de interpretação segundo a letra e de interpretação segundo o espírito.
Desse modo, para a elucidação da real natureza jurídica da relação de trabalho, mister se faz uma ressignificação dos conceitos clássicos contidos no art. 3º da CLT, não sendo de difícil compreensão, por exemplo, o requisito de que somente a pessoa física pode ser considerada como empregado (pessoalidade). É o que leciona Delgado (2008, p. 291):
A prestação de serviço que o Direito do Trabalho toma em consideração é aquela pactuada por uma pessoa física (ou natural). Os bens jurídicos (e mesmo éticos) tutelados pelo Direito do Trabalho (vida, saúde, integridade moral, bem-estar, lazer etc.) importam à pessoa física, não podendo ser usufruído por pessoas jurídicas. Assim, a figura do trabalhador há de ser, sempre, uma pessoa natural
Por outro lado, no caso da “Uberização” o requisito da não eventualidade não se encontra tão cristalino, tendo em vista que: 1 - não há exigência de um número mínimo de viagens diárias; 2 – o motorista tem liberdade de logar no aplicativo e efetuar a viagem a qualquer momento, em diferentes dias e horários.
Tal elemento (habitualidade) se caracteriza, conforme doutrina clássica, na realização do trabalho de modo constante e permanente ao empregador, em virtude da necessidade do desenvolvimento contínuo de suas tarefas, conforme Ilustra Martins
Um dos requisitos do contrato de trabalho é a continuidade na prestação de serviços, pois aquele pacto é um contrato de trato sucessivo, de duração, que não se exaure numa única prestação, como ocorre na compra e venda, em que é pago o preço e entregue a coisa. No contrato de trabalho, há a habitualidade na prestação dos serviços, que na maioria das vezes é feita diariamente, mas poderia ser de outra forma, por exemplo: bastaria o empregado trabalhar uma vez ou duas por semana, toda vez no mesmo horário, para caracterizar a continuidade da prestação de serviços. Muitas vezes, é o que ocorre com advogados que são contratados como empregados para dar plantão em sindicatos ou em hospitais, duas ou três vezes por semana, em certo horário, em que a pessoa é obrigada a estar naquele local nos períodos determinados. A CLT não usa a expressão trabalho quotidiano, diário, mas não eventual, contínuo, habitual. Assim, o trabalho não precisa ser feito todos os dias, mas necessita ser habitual.
Observa-se que embora a um primeiro momento aparente não preenchido o requisito da habitualidade e subordinação, a exegese da norma e a análise do contexto fático da atividade empresarial revelam que há apenas uma aparente ausência de tais requisitos, pois, embora passem a impressão de “uma liberdade”, substancialmente se configura na atividade primacial da empresa que, embora sem horário pré-fixado, torna-se de natureza não eventual diante dos constantes incentivos ofertados para que o motorista permaneça ativo e uma possível penalização na distribuição das corridas caso permaneça muito tempo inativo.
Não se desconhece de recentes decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) afastando a formação do vínculo empregatício ao fundamento da autonomia da prestação de serviços e da ausência de ordens diretas do empregador. Todavia há de se ponderar também a existência de decisões do TST no sentido da adoção da teoria da subordinação estrututal, como forma de abarcar as novas formas de contratações da Sociedade 4.0, tais como os operadores de telemarketing, trabalhadores de salão de beleza, cujas ementas se transcreve:
VÍNCULO DE EMPREGO. CONFIGURAÇÃO. CORRETOR. SUBORDINAÇÃO ESTRUTURAL. Para que se configure a relação de emprego, é necessário o preenchimento dos requisitos estabelecidos no artigo 3º da CLT, quais sejam: pessoalidade, não-eventualidade, onerosidade e subordinação jurídica. No entanto, no exercício da função de corretor de plano de previdência, ainda através de um contrato comercial formalmente celebrado com a empresa que se viu obrigado a constituir para ser admitido, o reclamante exercia atividade necessária para atingir o objeto social da reclamada que atua no ramo de previdência privada. É a chamada subordinação estrutural, defendida pelo hoje Ministro do colendo Tribunal Superior do Trabalho, Maurício Godinho Delgado, ou seja, não há necessidade do empregado receber ordens diretas do tomador para a caracterização do vínculo, basta que o trabalhador esteja integrado ao processo produtivo e à dinâmica estrutural da tomadora de serviços, como ficou bem evidenciado no caso em apreço (TRT-1 - RO: 01407008620075010047 RJ, Relator: Leonardo Dias Borges, Data de Julgamento: 13/05/2014, Terceira Turma, Data de Publicação: 21/05/2014)
AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA – AVON – EXECUTIVA DE VENDAS – VÍNCULO EMPREGATÍCIO – SUBORDINAÇÃO – REEXAME CONCEITUAL – PONDERAÇÃO EM FACE DO PRINCÍPIO DA LIVRE INICIATIVA – ESSENCIALIDADE NA IDENTIDADE DO TRABALHADOR – ANÁLISE CRITERIOSA DO JULGADOR. (...) Max Weber, no clássico estudo sociológico "A Ética Protestante e o 'Espírito' do Capitalismo", já destacava o papel central do trabalho como elemento a fornecer a identidade do indivíduo na modernidade. Por tudo isso, defendo que cabe ao Julgador o papel fundamental de buscar depreender das provas se aquele trabalho desenvolvido, a princípio de forma autônoma, passou, em determinado ponto da relação entre as partes, a representar um papel mais significativo na vida do trabalhador, essencial do ponto de vista de sua identidade. (….) TERCEIRIZAÇÃO DA ATIVIDADE FIM. IRREGULARIDADE. SUBORDINAÇÃO ESTRUTURAL. A terceirização da atividade fim é irregular, pois embora não seja proibida por lei, viola princípios básicos de Direito do Trabalho. Toda vez que o empregado executar serviços essenciais à atividade fim da empresa, isto é, que se inserem na sua atividade econômica, ele terá uma subordinação estrutural ou integrativa, já que integra o processo produtivo e a dinâmica estrutural de funcionamento da empresa ou do tomador de serviços. Esse argumento basta para comprovar a subordinação. (TRT-1 - RO: 8883820115010031 RJ, Relator: Fernando Antônio Zorzenon da Silva, Data de Julgamento: 15/05/2013, Segunda Turma, Data de Publicação: 22-05-2013)
De toda sorte, diante da grave insegurança jurídica que envolve a matéria da “uberização”, tendo em vista decisões do TST que vem reconhecendo o vínculo empregatício entre os motoristas de aplicativo e a empresa criadora da plataforma digital, o tema teve sua repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário (RE) 1446336 (Tema 1291), cujo processo na presente data se encontra pendente de julgamento e formará decisão vinculante aos demais órgão judiciários para os casos semelhantes.
Conforme exposto, a matéria não é pacífica. Há recentes decisões em que se reconhece o vínculo empregatício entre os motoristas de aplicativo e a empresa UBER considerando que a suposta autonomia se limita apenas à escolha de horários e corridas, bem como há decisões diametralmente opostas considerando que o reconhecimento de vínculo violaria o princípio da livre iniciativa do exercício da atividade econômica, com potencial de inviabilizar a sua própria continuidade no Brasil.
Dessa forma, a flexibilização das normas trabalhistas converge no sentido de readequação dos dogmas enraizados no ordenamento jurídico face às essas novas necessidades da realidade social, seja através da confrontação objetiva dos elementos de prova perante os pressupostos fáticos, seja pela relativização dos elementos caracterizadores do vínculo de emprego.
De um forma ou de outra, aliado ao princípio da primazia da realidade sobre a forma, caberá ao órgão julgador a ponderação, para que não haja a banalização do instituto.
Enquanto o Poder Legislativo é omisso em seu poder-dever constitucional de regulamentar essas novas espécies de relação de trabalho, caberá ao Judiciário discutir e ponderar sobre a aplicação de institutos jurídicos trabalhista já previstos no ordenamento jurídico de forma a promover o amparo social e os direitos fundamentais do trabalhador, em especial o respeito a sua dignidade humana.
Pontue-se, por pertinente, que na presente data ainda se encontra pendente de tramitação na Câmara dos Deputados o PLP 12/2024, o qual visa dispor sobre a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas e estabelece mecanismos de inclusão previdenciária e outros direitos para melhoria das condições de trabalho, sendo fortemente criticado pela mídia e pelos próprios motoristas parceiros no sentido de precarizar ainda mais a relação de trabalho.
Assim, tomando como escopo a questão da “uberização”, o dinamismo e historicidade do direito apontam que as normas trabalhistas, dentro dos limites constitucionais e legais, tendem a serem flexibilizas e readequadas às necessidades e características desta nova geração de empregados que emerge na Sociedade 4.0, que têm, dentre uns dos seus traços marcantes, a desnecessidade da presença da pessoa física do empregado e a relativização da subordinação jurídica nos moldes até então concebidos.
Nas palavras de Machado Neto (1984, p.412): “Norma social que é, o direito não surge à toa na sociedade, mas para satisfazer as imprescindíveis urgências da vida. Ele é fruto das necessidades sociais e existe para satisfazê-las, evitando, assim a desorganização.”
Logo, a proteção dos direitos fundamentais do trabalhador previstos nas normas de saúde, segurança e previdência social não podem ser absolutamente afastadas em razão da imprevisibilidade e impossibilidade do legislador em acompanhar e disciplinar todas as formas de relação de trabalho emergentes da Sociedade 4.0.
Embora haja uma margem de insegurança jurídica decorrente da flexibilização da norma trabalhista, a sua positivação, por limitadora, não pode servir de óbice de acesso aos direitos fundamentais e, sobretudo, à jurisdição por aqueles que ao Judiciário se socorrem, sob pena de ser tornar inócuo e desnecessário o Estado Democrático de Direito, em inaceitável afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história nos demonstra que as relações sociais, dentre elas a do trabalho, sofrem constantes mutações diante do contexto de evolução humana. A 1ª Primeira Revolução Industrial veio para romper com os antigos paradigmas de escravidão e servidão e fez surgir uma nova força de trabalho, desta feita subordinada aos meios de produção, mediante uma contraprestação pecuniária. A 2ª Revolução Industrial, por seu turno, com o crescimento das indústrias automobilísticas, veio para quebrar com os antigos métodos de fabricação e implementar as linhas de produção, cuja racionalização no tempo e a maximização dos lucros possibilitou o acesso a produtos e serviços em larga escala..
O crescimento populacional do planeta no Século XX e os conflitos de interesse das grandes potências mundiais em estabelecer a sua hegemonia econômica e militar, culminaram, em plena Segunda Guerra Mundial, com a criação do primeiro computador pelo britânico e Matemático Alan Turing, que veio a ser popularizado na década de 90, com o acesso à rede mundial de computadores. A partir de então, as tecnologias da informação e inclusão das inteligências artificiais na execução de tarefas do dia a dia do ser humano passou indissociável, sendo definida por Klaus Schwab como 4ª Revolução Industrial ou Sociedade 4.0.
O avanço tecnológico e o dinamismo das relações sociais e trabalhistas deste novo modelo de sociedade impuseram ao Poder Judiciário relevantes desafios na distinção das diversas modalidades de relação de trabalho, em que as nuances distintivas da relação de emprego como até então positivadas na CLT nem sempre estão bem claras na relação jurídica, o que impõe o exercício da sua função jurisdicional constitucional ativa, de forma a promover o amparo social do trabalhador e o respeito à sua dignidade humana.
REFERÊNCIAS
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[1] Klaus Martin Schwab. Engenheiro. Nascido em 30 de março de 1938. Fundador do European Symposium of Management (1971), instituição posteriormente reconhecida como Fórum Econômico Mundial (1987).
[2] Termos criados por Henry Ford e Frederick Taylor, respectivamente, referem-se aos novos modelos de produção em massa e gestão, idealizados no final do Século XIX e início do Século XX.
[3] Alan Mathison Turing , britânico, considerado o pai da ciência da computação e do conceito de algorítimo computacional. Cometeu suicídio após ser condenado ao tratamento homônico feminino e castração química.
Servidor da Justiça do Trabalho. Especialista em Processo Civil pelo Centro Universitário Maurício de Nassau de Recife. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo Grupo Educacional Verbo Jurídico. Vinculado ao Egrégio Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, EMANUEL NEVES DE. A sociedade 4.0 e a necessidade de flexibilização dos requisitos da relação de emprego Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jun 2024, 04:57. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/65664/a-sociedade-4-0-e-a-necessidade-de-flexibilizao-dos-requisitos-da-relao-de-emprego. Acesso em: 23 dez 2024.
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