RESUMO: Este estudo analisa, sob a perspectiva dos Direitos Humanos, a atuação do grupo Boko Haram na Nigéria, indagando quais – e quão efetivos – têm sido os meios de enfrentamento da comunidade internacional à violência. Para isso, utiliza os conceitos de empatia e novas sensibilidades desenvolvidos por Lynn Hunt, a tolerância religiosa elaborada por John Locke e a teoria do processo civilizador de Norbert Elias. Examina documentos internacionais que garantem liberdade religiosa, bem como o atual contexto político, religioso e social da Nigéria. Relata a história do Boko Haram e a natureza de suas ações, caracterizando-o como um grupo que pretende a implantação da sharia e promove a perseguição religiosa para esse objetivo. Detalha o sequestro de 276 meninas no Chibok em 2014, evidenciando o aspecto de gênero na violência religiosa. Verifica quais são as estratégias adotadas pelo governo nigeriano, a ajuda humanitária que a ONU destinou à região, e os esforços militares dos países vizinhos para conter o grupo. Sugere que a garantia efetiva da liberdade religiosa e da coexistência de ideias plurais é o caminho necessário para arrefecer os efeitos da perseguição religiosa, o que necessariamente passa por uma mudança de mentalidade social, influenciada por um processo civilizador.
Palavras-chave: Direitos humanos. Boko Haram. Liberdade Religiosa. Processo Civilizador.
ABSTRACT: This study analyzes, from the perspective of Human Rights, the actions of Boko Haram in Nigeria, asking what – and how effective – have been the means of confronting violence by the international community. To do so, it uses the concepts of empathy and new sensibilities developed by Lynn Hunt, religious tolerance elaborated by John Locke and the theory of the civilizing process by Norbert Elias. It examines international documents that guarantee religious freedom, as well as the current political, religious, and social context in Nigeria. It recounts the history of Boko Haram and the nature of its actions, characterizing it as a group that intends to implement sharia and promotes religious persecution. It details the kidnapping of 276 girls in Chibok in 2014, highlighting the gender aspect of religious violence. It verifies the strategies adopted by the Nigerian government, the humanitarian aid that the UN has allocated to the region, and the military efforts of neighboring countries to contain the group. It suggests that the effective guarantee of religious freedom and the coexistence of plural ideas is the necessary way to mitigate the effects of religious persecution, which necessarily involves a change in social mentality, influenced by a civilizing process.
Keywords: Human rights. Boko Haram. Religious Freedom. Civilizing Process.
1 INTRODUÇÃO
“A educação/cultura ocidental é pecado”. Essa seria a tradução para “Boko Haram”, expressão utilizada para se referir a um grupo islâmico que atua de forma violenta no Nordeste da Nigéria.
Situada na região ocidental da África, a Nigéria é o país mais populoso daquele continente. Sua história é marcada por instabilidades políticas. O território é habitado por centenas de etnias distintas, que foram obrigadas a coexistir sob o colonialismo britânico (LIMA FILHO, 2013, p. 245). Após a sua independência, em 1960, as diversas etnias foram polarizadas em dois grupos religiosos principais: os cristãos, reunidos na região sul, e os muçulmanos, habitantes da região norte (CIERCO, 2016, p. 127). À independência seguiu-se uma sangrenta guerra civil, na qual alguns estados do nordeste nigeriano lutaram – em vão – por sua secessão. O período subsequente foi marcado por ditaduras militares. Apenas em 1980 a democracia fixou raízes no solo nigeriano (CIERCO, 2016, p. 128).
Contudo, quase quatro décadas depois, a Nigéria ainda é caracterizada por problemas estruturais que impedem seu desenvolvimento: a fragilidade das instituições, corrupção, divergências étnicas e religiosas e ausência de serviços básicos têm levado a população à extrema pobreza e ao descontentamento geral contra o Estado (CIERCO, 2016, p. 121).
Foi nesse contexto de desordem institucional que surgiu o Boko Haram, em 2002. Inicialmente se tratava de um grupo que buscava a islamização integral da Nigéria por meio da pregação do Alcorão (CIERCO, 2016, p. 132). No entanto, após alguns embates ocorridos em 2009, que culminaram na morte do líder do grupo, ressurgiu um novo Boko Haram, que passou a utilizar métodos violentos – explosões, execuções e sequestros – para atingir seu objetivo. A comunidade internacional passou a se preocupar quando surgiram evidências de que o Boko Haram teria vínculos com grupos radicais islâmicos de outras regiões da África, e suas ações passaram a repercutir nos países vizinhos (COOK, 2011, p. 3).
Para alguns, os conflitos gerados pelo Boko Haram se resumem a questões religiosas; há quem afirme, contudo, que a política é a causa preliminar do problema, pois as diversas etnias entrariam em confronto sobre quem deve vencer as disputas eleitorais (WALKER, 2012, p. 2). Merece destaque, também, o fato de que a Nigéria é um grande produtor de petróleo, no que consiste basicamente toda a sua economia, o que contribui para a conjuntura.
De todo modo, é inegável que a violência perpetrada pelo grupo atinge especificamente os cristãos. Apesar da complexidade da crise na Nigéria, a religião se afigura como um fator determinante, pois, na prática, o Boko Haram é motivado pelo objetivo de implantar a Sharia, mesmo que para isso seja necessário matar os cristãos nigerianos que restarem. A Nigéria ocupa, em 2024, a 6ª posição na Lista Mundial da Perseguição elaborada pela Portas Abertas, organização dedicada à igreja cristã que sofre perseguição em todo o mundo[1]. Embora se trate de um país democrático regido por uma Constituição na qual há expressa previsão de liberdade religiosa, o Estado não tem obtido sucesso em fazer frente à atuação do Boko Haram, que, segundo o escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, já matou mais de 27 mil pessoas, dentre as quais a significativa maioria é de mulheres cristãs[2]. Aproximadamente 10 milhões de pessoas precisam de ajuda humanitária enquanto o conflito se arrasta. Cerca de 2,5 milhões de pessoas estão desabrigadas apenas nessa área. Os níveis de fome e desnutrição também permanecem altos. O conflito é, portanto, concernente às garantias da liberdade religiosa e dos direitos humanos, que têm sido sistematicamente violados na região.
A conclusão óbvia diante disso, destarte, seria a de que aos cristãos não está sendo assegurada, na prática, a sua liberdade religiosa. Contudo, surgem alguns questionamentos: se a garantia da liberdade religiosa deve ser respeitada, isso significa que o Boko Haram, como seita religiosa, deveria ser tolerado? Independente disso, também é necessário indagar: o que tem sido feito, no âmbito do governo nigeriano e pela comunidade internacional, para tentar resolver esse conflito?
Referidos questionamentos são relevantes por vários motivos. Milhares de pessoas morreram na última década, em virtude da perseguição religiosa no bojo do terrorismo propagado pelo Boko Haram. Embora a atuação do Boko Haram seja local, a crise humanitária que dela decorre afeta as regiões vizinhas. Ademais, tendo em vista o significativo aumento do terrorismo nas últimas décadas em todo o mundo, a reflexão sobre as suas origens e a busca por soluções ultrapassa fronteiras, o que justifica o debate no âmbito acadêmico.
2 TOLERÂNCIA RELIGIOSA, PROCESSO CIVILIZADOR E DIREITOS HUMANOS
Os conceitos de laicidade do Estado e de liberdade religiosa são relativamente recentes na história. John Locke, pensador inglês do século XVII, foi um dos primeiros a refletir acerca do assunto, conforme Mondaini (2014, p. 130). Em sua “Carta acerca da tolerância” (1978), Locke expôs os motivos pelos quais acreditava na separação entre o Estado e a Igreja, e que a tolerância religiosa deveria ser exercida pelo Estado, pelas diversas religiões entre si, e pela comunidade em geral. As teorizações de Locke acerca da tolerância religiosa exerceram grande influência desde então. As Declarações liberais de direitos abrigaram a garantia à liberdade religiosa em seus textos. E, recentemente, com a criação dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, esse assunto tem sido pautado como um dos mais relevantes, merecendo destaque em Convenções e Declarações Internacionais.
Locke redigiu a Carta acerca da Tolerância em 1689 enquanto estava em seu exílio na Holanda. A Carta foi escrita primordialmente para justificar a tolerância entre as mais diversas formas de expressão do cristianismo na Inglaterra do século XVII (DINIZ, 2011, p. 69). Contudo, suas ideias podem embasar a tolerância entre diferentes religiões, em outros tempos e lugares.
Um aspecto interessante acerca da tolerância religiosa na esfera civil, segundo Locke, é a ausência de competência do magistrado quanto ao cuidado das almas (1978, p. 3). Como alguém que professava a fé cristã, Locke entendia que Deus não delegou a homem algum a autoridade para induzir outros a aceitar sua religião. Isso se aplicaria de forma especial ao magistrado, cuja esfera de atuação se limita a questões relativas à manutenção da ordem civil, não estando dentro de seu escopo a fiscalização da fé de seus súditos. Ademais, sequer existe a possibilidade lógica, para Locke, de imposição de uma crença, que se trata de íntima convicção que apenas pode ser elaborada voluntariamente. Essa é a razão pela qual não é possível impor coercitivamente a fé a alguém (1978, p. 3):
o cuidado das almas não pode pertencer ao magistrado civil, porque seu poder consiste totalmente em coerção. Mas a religião verdadeira e salvadora consiste na persuasão interior do espírito, sem o que nada tem qualquer valor para Deus, pois tal é a natureza do entendimento humano, que não pode ser obrigado por nenhuma força externa. Confisque os bens dos homens, aprisione e torture seu corpo: tais castigos serão em vão, se se esperar que eles o façam mudar seus julgamentos internos acerca das coisas.
Destarte, Locke admite a possibilidade de que o magistrado utilize argumentos para conduzir o heterodoxo à verdade da fé, proporcionando-lhe salvação (1978, p. 3). Contudo, alega que essa não é uma prerrogativa do magistrado em virtude de suas funções civis, mas sim uma possibilidade disponível a qualquer homem que detenha aquela fé. Vale dizer, o fato de o magistrado eventualmente exercer a fé cristã não concede a ele uma autoridade especial no convencimento alheio acerca da veracidade dessa fé, pois tal convencimento pode ser praticado por qualquer cristão. Por isso, Locke afirma que a fé pode ser transmitida mediante persuasão, mas nunca por meio de coerção (1978, p. 3). Acrescenta, ainda, que de nada adiantaria impor qualquer penalidade a um indivíduo que rejeitasse a fé cristã, pois a punição não seria apta a mudar o convencimento intelectual do sujeito, cumprindo apenas uma função social, ou seja, externa ao foro íntimo do indivíduo (1978, p. 3).
É interessante notar o grande contraste existente entre o raciocínio de Locke e a forma de atuação do Boko Haram, que pretende impor a fé islâmica por meio da violência. É comum a prática do grupo de exigir de suas vítimas a renúncia à fé cristã, sob pena de execução[3]. Vê-se, desse modo, que pouco importa ao Boko Haram o convencimento intelectual acerca da fé islâmica, desde que seja assumido um compromisso exterior de abandono do cristianismo e adoção do modo de vida comum aos muçulmanos.
Prosseguindo na análise da Carta, vê-se que Locke admite a possibilidade de limitação da tolerância. Inicialmente, afirma que não devem ser toleradas quaisquer doutrinas que sejam incompatíveis com a sociedade humana, ou contrárias ao que ele denomina de bons costumes necessários para a preservação da sociedade civil (1978, p. 20). Defende, também, que não devem ser tolerados aqueles que atribuem a si mesmos, com fundamento na sua religião, a prerrogativa de exercer autoridade sobre homens que não pertencem à sua comunidade eclesiástica. Ou, dito de outro modo, os que não admitem a tolerância em relação aos dissidentes de sua própria religião (1978, p. 20). Para Locke, tais pessoas, quando tiverem oportunidade, irão atacar as leis da comunidade, a liberdade e a propriedade dos cidadãos.
Portanto, aplicando a teorização de Locke ao caso atual do Boko Haram, seria possível afirmar que se trata de uma das situações excepcionais em que a tolerância deve ser limitada; em outras palavras, o Boko Haram não deveria ser tolerado como manifestação religiosa, pois, em sua própria essência, é contrário à ideia de tolerância religiosa, porquanto não admite a coexistência com outras crenças. No dizer de Norberto Bobbio, “a tolerância deve ser garantida a todos, exceto aos que não admitem a tolerância, ou seja, devem ser intolerados os intolerantes” (BOBBIO, 2004, p. 196).
Destarte, como já dito, existe um notável contraste entre a ideia de tolerância religiosa, de influência nitidamente ocidental, e a imposição religiosa praticada pelo Boko Haram. O fato é que esse contraste é apenas a ponta do iceberg de um conflito ainda maior, para o qual foi determinante a presença da Inglaterra na Nigéria (LIMA FILHO, 2012).
O início do século XIX trouxe consigo a influência britânica na Nigéria. Como é narrado por Elias (1993), a influência colonial jamais se limita ao aspecto político, mas é um instrumento de transmissão daquilo que se conhece por “civilização ocidental”. Nesse conceito se incluem aspectos relacionados à cultura, à educação (inclusive a educação formal), à religião, aos costumes cotidianos e à forma de estruturar a sociedade.
Elias discorre acerca de um movimento que ocorre há vários séculos no Ocidente, que consiste na “difusão da civilização”, ou seja, a disseminação de nossas instituições e padrões de conduta além das fronteiras ocidentais (ELIAS, 1993, p. 212):
A partir da sociedade ocidental – como se ela fosse uma espécie de classe alta – padrões de conduta ocidentais ‘civilizados’ hoje estão se disseminando por vastas áreas do Ocidente, seja através do assentamento de ocidentais ou através da assimilação pelos estratos mais altos, de outras nações, da mesma forma que modelos de conduta antes se espalharam no interior do próprio Ocidente a partir deste ou daquele estrato mais alto, de certos centros cortesãos ou comerciais. O curso assumido por toda essa expansão foi determinado apenas ligeiramente pelos planos ou desejos daqueles cujos padrões de conduta foram assimilados. As classes que forneceram os modelos não são, sequer hoje, criadores ou originadores absolutamente livres de tal expansão. Essa difusão dos mesmos padrões de conduta a partir de ‘mães-pátrias do homem branco’ seguiu-se à incorporação de outros territórios à rede de interpendências políticas e econômicas, à esfera das lutas eliminatórias entre nações do Ocidente e dentro de cada uma delas. A tecnologia não é a causa dessa mudança de comportamento. O que chamamos de tecnologia é apenas um dos símbolos, uma das últimas manifestações desse constante espírito de previsão imposto pela formação de cadeias de ações e de competição cada vez mais longas. As formas ‘civilizadas’ de conduta disseminaram-se por essas outras áreas em razão e na medida que nelas, através de sua incorporação à rede cujo centro ainda é o Ocidente, a estrutura de suas sociedades e de relacionamentos humanos também está mudando. A tecnologia e a educação são facetas do mesmo desenvolvimento total. Nas áreas por onde se expandiu o Ocidente, as funções sociais a que o indivíduo deve submeter-se estão mudando cada vez mais, de maneira a induzir os mesmos espíritos de previsão e controle de emoções como no próprio Ocidente. Nesse caso, também, a transformação da existência social como um todo é a condição básica para civilizar-se a conduta. Por esse motivo, encontramos nas relações do Ocidente com outras partes do mundo os primórdios da redução de contrastes que é peculiar a todas as grandes ondas do movimento civilizador.
Para Elias, a expansão da civilização ocidental é o que caracteriza o que ele compreende como sua superioridade; contudo, os povos ocidentais, sob pressão de suas próprias lutas competitivas, acabaram provocando em várias partes do mundo uma mudança nos relacionamentos e funções humanas. Ao mesmo tempo em que várias regiões do mundo se tornaram dependentes de nações ocidentais, estas também desenvolveram uma dependência com relação aos povos para os quais disseminaram seus padrões de comportamento. A disseminação de seus padrões e instituições ocidentais levou à redução das diferenças de poder social e conduta entre colonizadores e colonizados. Por conseguinte, os contrastes visivelmente se tornaram menores (ELIAS, 1993, p. 213).
Ademais, em regiões coloniais, ocorre um fenômeno de redução de contrastes que acaba por criar novas entidades, diferentes, novas variedades de conduta civilizada. Elias ressalta que a incorporação incipiente dos povos orientais e africanos aos padrões ocidentais consiste na última onda do contínuo movimento civilizador que poderia ser observado até então (ELIAS, 1993, p. 214).
Isso explica a razão pela qual o lema do movimento colonizador ocidental é a “civilização". Para os membros dessa sociedade, marcada pela grande divisão de funções, não é suficiente governar indivíduos e países pela força das armas, mas há também a necessidade de pessoas que sejam integradas na teia do país hegemônico. Para que isso seja possível, é necessária certa elevação dos padrões de vida e o cultivo do autocontrole e das funções do superego nos povos submetidos, consoante os padrões ocidentais. Em outras palavras, é preciso "civilizar" os colonizados. Para manter um império que ultrapassasse o estágio da mera plantação, foi necessário governar as pessoas, inclusive através de si mesmas, por meio da modelação de seu superego. Elas passam por um processo de assimilação, absorvendo o código dos grupos superiores, submetendo o controle de suas paixões e conduta às regras do grupo colonizador. Nesse processo, acaba ocorrendo uma reconciliação e uma fusão dos padrões das sociedades ocidentais com seus próprios hábitos e tradições (ELIAS, 1993, p. 259).
É nítido que ocorreu um processo civilizador na Nigéria, no qual a Inglaterra transmitiu sua assim chamada “civilização” aos nigerianos, que assimilaram diversos aspectos do modo de viver ocidental, tais como a religião cristã, a forma de organizar o Estado por meio de uma Constituição, a democracia, a garantia de proteção a direitos humanos.
Dentre todos esses aspectos, ressalta-se também a ideia de empatia, que, segundo Lynn Hunt, “depende do reconhecimento de que os outros sentem e pensam como fazemos, de que nossos sentimentos interiores são semelhantes de um modo essencial” (HUNT, 2009, p. 27). Para Hunt, o despertamento da nova sensibilidade relacionada à empatia, no contexto da sociedade ocidental, foi o que possibilitou a construção da ideia de direitos humanos (HUNT, 2009).
Contudo, esse processo não ocorreu em todo o território da Nigéria, mas foi limitado à região sul. Hodiernamente, a população do sul da Nigéria é composta quase que em sua exclusividade por cristãos, e a forma de composição da sociedade é bastante similar aos modelos ocidentais, especialmente na educação, por meio das universidades, e nas manifestações culturais.
O norte da Nigéria, contudo, não foi atingido pela influência britânica. Ao contrário, as etnias lá residentes se demonstraram mais propensas a aderir à fé muçulmana, que lá chegou por volta do ano 1000. Em meados do século XIX, como forma de resistência à Inglaterra, houve a primeira tentativa de criação de um califado no nordeste da Nigéria. A ideia foi sufocada naquele tempo, mas foi retomada mais de um século depois pelo Boko Haram (ADENRELE, 2012, p. 25).
Desse modo, ao passo em que o sul da Nigéria absorveu a influência britânica, completando o que Elias (1993) chamaria de “processo civilizador”, o norte não foi afetado pela influência externa e permaneceu com suas raízes culturais e religiosas. Isso, por si só, não seria um problema, pois é admissível, em tese, a coexistência de culturas e religiões distintas num mesmo território. Na prática, contudo, o Boko Haram surgiu com o objetivo de exterminar a influência ocidental na Nigéria e impor a Sharia em todo o território. Utilizando os conceitos acima, o Boko Haram pretende não apenas resistir, mas desfazer, mediante emprego de violência, o processo civilizador impulsionado pela Inglaterra.
Trata-se, portanto, de um fenômeno complexo, cujas raízes remontam a séculos de embate entre diferentes formas de civilização.
3 DIREITO À LIBERDADE RELIGIOSA: GARANTIAS FORMAIS
Como dito acima, um dos principais legados da influência britânica sobre a Nigéria foi no aspecto da política e do direito. A Nigéria é atualmente um país democrático, regido por uma Constituição, e faz parte da ONU e da União Africana.
A União Africana é organização internacional que tem por objetivo a promoção de direitos humanos, democracia e desenvolvimento econômico na África. Em 1989, os Estados-Parte da União Africana aprovaram a Carta Africana sobre Direitos Humanos e dos Povos, que obriga os Estados Partes da União Africana a observar a liberdade religiosa dos indivíduos, nos seguintes termos:
Artigo 8º
A liberdade de consciência, a profissão e a prática livre da religião são garantidas. Sob reserva da ordem pública, ninguém pode ser objeto de medidas de constrangimento que visem restringir a manifestação dessas liberdades.[4]
Ademais, a Nigéria é um estado secular e, por isso, garante a liberdade de religião. Isso é claramente enunciado na Constituição da República Federal da Nigéria de 1999, particularmente na seção 38:
38. (1) cada pessoa terá direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião, incluindo liberdade para mudar sua religião ou crença, e liberdade (sozinho ou em comunidade com os outros, e em público ou em privado) para manifestar e propagar a sua religião ou crença na adoração, ensino, prática e observância.
(2) nenhuma pessoa que comparecer a qualquer local de ensino será obrigada a receber ou para participar de qualquer cerimônia religiosa ou observância se tal for cerimônia de instrução ou observância diz respeito a uma religião diferente da sua, ou religião não aprovada por seu pai ou tutor.
(3) nenhuma comunidade religiosa ou denominação deve ser impedida de fornecer instrução religiosa para os alunos dessa comunidade ou denominação em qualquer lugar de educação mantida inteiramente por essa comunidade ou denominação.
(4) nada nesta seção dará direito a qualquer pessoa a se formar, participar da atividade ou ser um membro de uma sociedade secreta.
Isso significa, portanto, que nenhuma religião na Nigéria é superior a outra; em outras palavras, não se justifica a imposição, mediante emprego da força, de uma crença a qualquer indivíduo ou grupo (EBONYI, 2019, p. 561). Isso coloca, destarte, o Boko Haram na ilegalidade, de modo que não há qualquer justificativa institucional, tanto no âmbito da Nigéria, da comunidade africana ou da comunidade internacional, que apoie a forma de atuação do Boko Haram.
4 O BOKO HARAM
Feitas as contextualizações e conceituações pertinentes, cumpre analisar de forma mais pormenorizada o que é o Boko Haram.
A organização a que este trabalho se refere é autodenominada Jama’atu Ahlis Sunna Lidda’awati Wal-Jihad ou “pessoas comprometidas com a propagação dos ensinamentos do Profeta e Jihad”. O termo Boko Haram, por sua vez, foi atribuído pela comunidade nigeriana externa ao grupo, pois sintetiza as ideias por ele pregadas, no sentido de que a educação ocidental seria proibida, por ser considerada pecado (CIERCO, 2016, p. 132).
Como já mencionado, a origem do grupo remete a motivos meramente religiosos, pois representa uma seita sunita islamita radical que encontra apoio entre as comunidades islâmicas sufistas da Nigéria. O Boko Haram cresceu de um grupo de jovens islamitas radicais que adoravam na Mesquita Al-Haji Muhammadu Ndimi em Maiduguri, capital do estado de Borno, na década de 1990 (WALKER, 2012). Seu líder, Mohammed Yusuf, começou como um pregador e líder na ala juvenil de Shababul Islam de Ahl-Sunnah, um grupo Salafi. Sua interpretação literal do Alcorão o levou a defender que os aspectos da educação ocidental que ele considerava em contradição com o livro sagrado, como a evolução, a teoria do Big Bang do desenvolvimento do universo e os elementos da química e da geografia devem ser proibidos. Como crítico do governo, Yusuf estava envolvido em esforços oficiais para introduzir e implementar a Sharia em vários Estados do Norte nos anos 2000 (AWORTU, 2015, p. 214).
Walker (2012, p. 7) aponta, contudo, que o repúdio à cultura ocidental pelo Boko Haram é, de certa forma, relativa, porquanto os membros do grupo utilizam telefones celulares, câmeras de vídeo, DVDs, YouTube, explosivos químicos, armas automáticas e carros.
Dunn (2018, p. 2) aduz que, desde o início, o Boko Haram já tinha objetivos políticos, pois seu principal objetivo seria a mudança de regime na Nigéria, porquanto acreditam que a regra democrática e secular estaria em contradição com Shariah.
A partir de 2009, com a morte de seu líder, Mohammed Yusuf, o Boko Haram passou a utilizar a violência (CIERCO, 2016, p. 132). É pertinente notar que Yussuf havia adotado uma abordagem não-violenta em sua campanha, pois esperava alcançar seus objetivos através da pregação constante na mesquita e formando alianças com os políticos, especialmente Sherrif Lisboa. Não se pode excluir que houve ataques durante a liderança de Yussuf, como por exemplo o ataque na vila de Kanamma, em 2003, no qual cerca de 30 pessoas foram mortas, e alguns aldeões foram sequestrados e induzidos a se juntar ao grupo (COOK, 2011, p. 9). A maioria dos ataques desse período, contudo, foram leves em comparação com os ataques de terrorismo virulentos bem coordenados após a morte de Yussuf (AWORTU, 2015, p. 214).
Para financiar suas atividades, os integrantes do Boko Haram praticam roubos a bancos e sequestros com pedidos de resgate. Há suspeitas de que também estão envolvidos em tráfico de armas e drogas. Alegam, também, ter ligações com indivíduos de grande influência no governo nigeriano, o que até agora ainda não foi comprovado (CIERCO, 2016, p. 132).
Em virtude de sua ideologia antiocidental, o grupo tem ligação com extremistas sunitas ou grupos de terroristas como a Al-Qaeda ou afiliados, como a Al-Qaeda do Magrebe Islâmico (AQMI) e, mais recentemente, com o Estado Islâmico (ISIS). Essa proximidade ideológica com a Al-Qaeda surge em virtude de defenderem a ideia de que os políticos e a riqueza destruirão a pureza das sociedades islâmicas, por permitirem vícios como a prostituição, a pornografia e o álcool (CIERCO, 2016, p. 132).
O modus operandi do grupo traz algumas semelhanças com os talibãs do Afeganistão, principalmente após a divulgação do envio de membros para campos de treino em países como a Argélia, o Afeganistão, o Paquistão, o Iraque e a Mauritânia. Também há provas de atividade operacional do Salafi sh Group for Preaching and Combat da Argélia, dos Tablighi do Paquistão, dos missionários wahabitas da Arábia Saudita no Norte da Nigéria e o treino de alguns fundamentalistas nos campos de treino da Al-Qaeda provam que o Boko Haram tem ligações com grupos fundamentalistas em todo o mundo.
Segundo Hussein e Walker (2012), a metodologia do Boko Haram segue o caminho do radicalismo islâmico sunita do Afeganistão, do Iraque, do Paquistão e da Somália, forçando o terror contra tudo o que se opõe a um Estado Islâmico. Apesar de o governo nigeriano ter autorizado a Sharia em alguns estados do Norte, esse fato apenas veio inspirar uma maior militância ao grupo.
Desde a encarnação gradual da seita Boko Haram em um grupo terrorista na Nigéria, o país testemunhou perda inimaginável de vidas e propriedades que atraíram a atenção da comunidade internacional. Além da guerra civil nigeriana de 1967-1970, a Nigéria nunca teve um conflito tão sangrento. O país foi banhado com o sangue de cidadãos inocentes através de explosão de bomba ou troca de incêndios de armas entre Boko Haram e o exército nigeriano (AWORTU, 2015, p. 2015).
Na véspera de Natal no ano 2010, meia dúzia de bombas foram detonadas perto de igrejas e mercados em dois distritos de Jos, no estado do Plateau, matando dezenas de pessoas. No mesmo ano, na véspera de ano novo, uma bomba foi detonada em um restaurante ao ar livre, matando dez pessoas (AWORTU, 2015, p. 216).
Em junho de 2011, Boko Haram bombardeou a sede da polícia nacional em Abuja; um carro carregado com explosivos dirigiu para o complexo de Louis Edet, um bloco de escritórios, e foi detonado matando dezenas de pessoas. Em agosto de 2011 um homem dirigiu um carro para o composto da ONU em Abuja e detonou uma bomba maciça, matando vinte e três pessoas e ferindo dezenas de outras pessoas. Foi nesse período que o grupo saltou para a agenda do mundo. Alguns observadores dizem que Boko Haram se estendeu para encontrar aliados em outros movimentos jihadistas globais no Sahel. A velocidade em que o grupo desenvolveu a capacidade de produzir grandes e eficazes dispositivos explosivos improvisados e alistar bombardeiros suicidas para entregá-los sugere ajuda externa (WALKER, 2012, p. 2).
O Boko Haram também espalhou sua campanha em 2011 para igrejas. O bombardeio mais mortal daquele ano foi um ataque de véspera de Natal contra a Igreja Católica de St. Theresa em Madalla, fora de Abuja, em que mais de 40 cristãos foram mortos e dezenas feridos (AWORTU, 2015, p. 216).
Em Janeiro de 2012, três grupos dos pistoleiros e dos bombardeiros suicidas coordenaram ataques em três edifícios do governo em Kano. Mais de 200 pessoas foram mortas. Em fevereiro de 2012, uma explosão de bomba atingiu a Igreja de St. Finbar, Rayfield, em Jos, e 19 pessoas foram mortas. Houve também ataques a sede de jornais em Abuja e Kaduna, à capela católica na Universidade de Bayero, Kano e a um mercado de gado em Yobe, matando dezenas de pessoas.
De acordo com Walker (2012), desde agosto de 2011 houve ataques quase semanais por militantes plantando bombas em público ou em igrejas na zona geopolítica do nordeste da Nigéria. Em 2 de dezembro de 2013, cerca de 200 insurgentes vestidos com uniformes militares e armados com lançadores de foguetes e explosivos com rifles de assalto infiltraram Maiduguri e realizaram ataques coordenados na base da força aérea nigeriana e quartéis militares. A maioria dos edifícios foram destruídos, bem como cinco aeronaves. Além disso, em 20 de dezembro de 2013, várias centenas de combatentes invadiram quartéis militares fora da cidade de Bama, perto da fronteira camaronesa, em um ataque de pré-amanhecer, incendiando o composto e matando muitos soldados, suas esposas e filhos. Além destes ataques principais, houve diversos outros ataques que custaram vidas e propriedades no norte da Nigéria (WALKER, 2012).
Em abril de 2014, o Boko Haram sequestrou 276 alunas na cidade de Chibok, no estado de Borno, durante o período de aula. A abordagem foi violenta, e algumas delas já foram feridas por bombas no momento do sequestro. As meninas tinham entre 12 e 18 anos e eram em sua maioria cristãs. Os sequestradores as trataram como escravas e se casaram com elas – em referência a uma crença islâmica ancestral na qual mulheres capturadas em conflito são consideradas espólio de guerra[5]. Mais uma vez, os olhos internacionais se voltaram à Nigéria, em virtude da magnitude do sequestro. Personalidades famosas, como Michelle Obama e atores de Hollywood, fizeram campanhas em redes sociais utilizando a frase “bring back our girls”. A HBO fez um documentário intitulado “Stolen Daughters: kidnapped by Boko Haram”[6]. O grupo ficou conhecido como “as meninas do Chibok”; 82 delas ainda permanecem sob paradeiro desconhecido em 2024[7]. A Anistia Internacional fez um apelo ao Boko Haram em 2019, clamando pela libertação das meninas do Chibok. O apelo não teve resposta.
Ainda em 2014, o novo líder, Shekau, declarou um califado nas áreas sob controle do Boko Haram, com a cidade de Gwoza como sede do seu poder. “Nós estamos em um califado islâmico. Não temos nada a ver com a Nigéria, não acreditamos no governo desse país”, disse Shekau, cercado por combatentes mascarados e com armas. Depois, o líder prometeu formalmente lealdade ao grupo Estado Islâmico, virando as costas para a Al-Qaeda. O Estado Islâmico aceitou sua lealdade, nomeando o território sob o controle do Boko Haram como Estado Islâmico da Província do Oeste da África, uma parte do califado global que tentava estabelecer[8].
No ano de 2014 os ataques do Boko Haram aumentaram, resultando em alto número de mortes. Em 14 de abril houve uma explosão de bomba em Nyanya, distrito de Abuja, matando cerca de 75 pessoas e deixando não menos de 215 outros feridos. No dia 1 de maio de 2014, após a celebração do dia dos trabalhadores, outra explosão de bomba balançou a área de Nyanya, matando cerca de 71 pessoas e ferindo vários outros (AWORTU, 2015, p. 216).
Em março de 2015, o Boko Haram perdeu todas as cidades que estavam sob seu controle após uma coalizão regional – formada por tropas da Nigéria, Camarões, Chade e Níger – ser formada para combatê-lo. Novamente, o Boko Haram recuou para a floresta Sambisa, onde militares nigerianos os perseguiram, livrando centenas de cativos.
Em agosto de 2016, o grupo aparentemente se dividiu, com um vídeo do Estado Islâmico anunciando que Shekau fora substituído por Abu Musab al-Barnawi. Shekau contestou, insistindo que continuava no comando. Em meio a tudo isso, 21 das meninas do Chibok, vistas como bens preciosos para Shekau, foram libertadas em outubro do mesmo ano, após conversas envolvendo militantes, os governos nigeriano e suíço e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Apesar disso, tendo em vista a ocorrência de outros sequestros, a Anistia Internacional afirma que cerca de 2 mil crianças permanecem cativas[9].
A Nigéria tem sido assolada por ataques do Boko Haram e é inegável o fator religioso dos conflitos, que já causaram a morte e deslocamento de milhares de cristãos. Apenas durante o período de pesquisa da Lista Mundial da Perseguição 2024 (1 de outubro de 2022 a 30 de setembro de 2023), em que o país ocupa a 6º posição, 4.118 cristãos nigerianos foram mortos por causa da sua fé[10].
O Boko Haram não vitima apenas nigerianos, mas também estrangeiros que se deslocam à Nigéria para prestar ajuda humanitária. Foi noticiada a morte de uma funcionária da Cruz Vermelha, Hauwa Mohammed Liam, que teria sido forçada a se ajoelhar com as mãos amarradas usando um hijab (véu muçulmano) branco com um brasão. Ela foi alvejada a uma pequena distância. Outras duas funcionárias da Cruz Vermelha, as parteiras Saifura Hussaini Ahmed Khorsa e Alice Loksha Ngaddah, foram sequestradas em março enquanto trabalhavam em Rann, uma cidade que serve de abrigo para refugiados e já havia sido atacada anteriormente por militantes. Foram mortas por serem consideradas apóstatas, porquanto eram muçulmanas que abandonaram o islamismo no momento que escolheram trabalhar com a Cruz Vermelha. Alice Ngaddah, uma cristã que trabalha para UNICEF, é “escrava perpétua” do Boko Haram, e apenas não foi liberta porque se recusa a renunciar à sua fé[11].
A insurgência do Boko Haram tem sido um obstáculo para o desenvolvimento educacional na Nigéria. Por consequência de sua ideologia, o Boko Haram declara guerra contra a educação ocidental, especialmente no norte da Nigéria. No estado de Borno, os ataques haviam destruído mais de 882 salas de aula a partir de agosto de 2013; no estado de Yobe, todas as escolas foram fechadas de junho a setembro 2013. Em 6 de março de 2014, o governo federal fechou cinco faculdades federais (Unity Schools) nos Estados de Adamawa, Borno e Yobe, ordenando que aproximadamente 10.000 alunos mudassem para outras escolas. Pais, temendo ataques, têm retirado milhares de crianças de escolas em uma região que já apresenta o maior déficit educacional no país (AWORTU, 2015, p. 217).
Os ataques de Boko Haram também aprofundaram as linhas de falha religiosas e regionais invertendo alguns dos ganhos duros do país na construção da unidade e da estabilidade nacionais. Seus assaltos a cristãos e igrejas e seu objetivo declarado de estabelecer um estado islâmico em todo o Norte não são compartilhados pela maioria dos muçulmanos. O impacto religioso da seita também afetou o mercado de trabalho, pois cristãos e muçulmanos trabalham com suspeitas uns contra os outros. Além disso, a insurgência do Boko Haram também colocou um grave perigo para a segurança das vidas e propriedades na Nigéria. Os sérios desafios de segurança resultaram na negação dos direitos humanos fundamentais dos nigerianos (AWORTU, 2015, p. 218).
Em um comunicado emitido em 24 de abril de 2011, um porta voz do Boko Haram chamado Alzawahiri informou que continuaria a “lutar até que o Islã esteja bem estabelecido e os muçulmanos recuperem sua liberdade por toda a Nigéria. Nós nunca nos renderemos e não precisamos de anistia. A única solução para o que está acontecendo é o governo se arrepender, renunciar à democracia, largar a constituição e adotar as leis do Alcorão Sagrado” (ADENRELE, 2012, p. 22).
A ONU descreve a crise humanitária no nordeste da Nigéria como uma das piores atualmente no mundo, com 7,7 milhões de pessoas que precisam de assistência humanitária[12].
5 ENFRENTAMENTOS: COMO A NIGÉRIA E O MUNDO TÊM LIDADO COM O BOKO HARAM?
Quando dos primeiros conflitos provocados pelo Boko Haram, a resposta utilizada pelo governo da Nigéria foi, naturalmente, o uso da força policial. Há suspeitas de que a polícia teria procedido a execuções extrajudiciais, o que apenas teria aumentado a intensidade da violência na reação do Boko Haram. Walker (2012, p. 13) acredita que as táticas empregadas por agências de segurança do governo contra o Boko Haram têm sido consistentemente brutais e contraproducentes. Sua confiança na execução extrajudiciais como uma tática em "lidar" com qualquer problema na Nigéria não só criou Boko Haram como é conhecido hoje, mas também o sustém e lhe dá combustível para expandir. As táticas da polícia também tornaram os membros do Boko Haram mais difíceis de capturar. Os povos de Maiduguri e de Kano temem, na maior parte, mais à polícia e ao exército do que ao Boko Haram. As pessoas comuns não iriam à polícia para relatar atividades suspeitas em seus bairros (WALKER, 2012, p. 13).
Além disso, em 2013, foi criada a Força Operacional Civil Conjunta (CJFT, na sigla em inglês), uma milícia composta por civis e apoiada pelo exército para o combate ao Boko Haram. Essa milícia, contudo, agregou crianças e adolescentes em seus postos, o que gerou grande comoção por parte das organizações defensoras de direitos humanos, culminando na libertação dos menores[13].
Por outro lado, é difícil vislumbrar um diálogo pacífico significativo entre o governo e o Boko Haram. Em março de 2012, houve uma tentativa de negociar um cessar-fogo, que falhou. No início 2011, um membro do grupo, afirmando ser um porta-voz, disse que se o governo devolvesse as mesquitas do grupo em Maiduguri e Bauchi e permitisse que seus membros adorassem em paz, o grupo desistiria de suas atuações. Pouco depois, outro membro do Boko Haram informou que a mensagem não emanava do núcleo do grupo. Após inquéritos, concluiu-se que havia ocorrido uma remoção interna dos membros mais moderados. Em uma chamada telefônica posterior, Abu Dujana afirmou que "divisões internas foram eliminadas." A suspeita é de que os membros dissidentes foram mortos (WALKER, 2012, p. 11).
Em Janeiro de 2012, um grupo que reivindicava ser uma facção moderada do Boko Haram enviou uma fita à autoridade nacional da televisão, informando que estava pronto para negociar. Quatro dias depois, meia dúzia de pessoas foram publicamente decapitadas em Maiduguri por pessoas que afirmavam pertencer ao Boko Haram. Suspeita-se que estes dois eventos estão vinculados: "quando o Boko Haram mata seus próprios, eles os decapitam, e relatos de decapitações parecem subir quando há conversas de negociação" (WALKER, 2012, p. 11).
Algumas das demandas declaradas do Boko Haram são praticamente impossíveis de realizar e são muitas vezes contraditórias. Por exemplo, o Boko Haram afirma que quer quebrar a Nigéria em dois, norte e sul, mas também que toda a Nigéria deve vir à lei da Sharia e se converter ao Islã. Também exigiu que Goodluck Jonathan, presidente da Nigéria no período de 2011 a 2014, se convertesse ao Islã (WALKER, 2012, p. 11).
Entretanto, há outras demandas que podem ser abertas a discussão. O grupo exigiu que os membros que foram presos pelo governo fossem liberados, todos os bens que foram retirados de seus membros fossem restaurados, e as pessoas responsáveis pela execução de Mohammed Yusuf fossem punidas. Estas são demandas políticas e podem fazer parte de uma negociação (WALKER, 2012, p. 11).
De todo modo, a recusa do Boko Haram em dialogar pode ser explicada pelo seguinte (i) conferir senso de legitimidade ao seu adversário; (II) temor de ser percebido como fraco por seus membros, seu adversário (o governo), e pelo público; (III) medo de dar falsas esperanças ao círculo eleitoral e ao governo do Boko Haram; (IV) a reunião é demorada; (v) falta de confiança no processo acentuado por decepções anteriores; (vi) medo de travar-se em uma posição apertada etc. (EBONYI, 2019, p. 564).
A principal técnica usada atualmente para combater o Boko Haram é a apreensão em massa no local dos ataques. Em vez de questionar as pessoas apreendias, Walker (2012) informa que a polícia as intimida e extorque. Qualquer informação sobre os esconderijos do Boko Haram recebida pela polícia enseja uma atuação violenta: a polícia e o exército descem sobre o suposto esconderijo, todas as armas em chamas, independente da presença de transeuntes inocentes, que muitas vezes são capturados e mortos na linha de fogo. Outras táticas incluem a manutenção em cativeiro, como reféns, de membros da família de pessoas que supostamente seriam membros do Boko Haram. A Human Rights Watch relatou que, em casos de extorsão que não dizem respeito ao contexto do Boko Haram, a polícia matou pessoas que supostamente não conseguiriam garantir a quantia necessária para sua libertação. É razoável suspeitar que situações similares estão acontecendo no nordeste da Nigéria no que concerne às famílias dos membros do Boko Haram. Oliver Owen, um pesquisador de doutorado sobre a polícia nigeriana, disse que a única maneira de melhorar a situação é promover reformas policiais fundamentais que incorporam ideias de estratégias de policiamento comunitário. Aumentando os contatos da polícia dentro da Comunidade, e tornando a polícia mais responsável, permitirá à polícia reunir mais informações sobre as atividades do grupo (WALKER, 2012, p. 13).
O governo nigeriano criou uma força especial com características militares em Maiduguri, no estado de Borno, composta por elementos do Exército, da Marinha, da Força Aérea, do Departamento de Segurança do estado e da Polícia nigeriana, com vista à rentabilização de recursos e à melhor fluidez de informação entre os serviços de segurança. Cerca de 30.000 efetivos do Exército e da Polícia foram para lá deslocados, nessa altura, para reforçar e controlar o “estado de emergência” decretado e lutar contra o Boko Haram. O governo fechou também as fronteiras entre o Norte da Nigéria e os estados vizinhos para impedir que elementos do grupo fugissem para os países vizinhos e recebessem ajuda dos grupos jihadistas estrangeiros que operam na região. No entanto, devido à dimensão das suas fronteiras, a capacidade do governo nigeriano tem sido limitada diante da ação do grupo. Os esforços contraterroristas são marcados pela incapacidade da Polícia nigeriana em trabalhar a informação e efetuar investigações forenses, o que leva que algumas confissões sejam conseguidas sob tortura, possibilitando que muitos dos culpados escapem ao julgamento. As medidas contraterroristas são também contraproducentes devido à brutalidade perpetuada pelas forças de segurança que frequentemente cometem exageros. A resposta do governo ao fundamentalismo islâmico não parece ser adequada nem duradoura. Por um lado, a ausência de equipamento e de fundos nos serviços de segurança dificulta uma ação eficaz contra o grupo. Por outro lado, a deficiente coordenação entre os diferentes serviços de segurança torna difícil o tratamento de informação relevante. Ao nível das forças de segurança, há ainda o receio de que alguns dos seus membros possam ser corruptos ou membros infiltrados do Boko Haram, pelo que esse problema pode ser mais grave (CIERCO, 2016, p. 137).
Para Cierco (2016), a abordagem predominantemente militar para conter a ação terrorista perpetuada pelo Boko Haram continua gerando tensões entre o governo e a população local, sendo por isso necessário desenvolver uma estratégia diferente que implique significativas reformas políticas e de governo, aumentando a participação dos cidadãos na vida do Estado. O Estado tem apostado na resposta armada à violência, por meio de operações conjuntas entre o Exército e a Polícia como resposta a incidentes específicos, assim como a adoção de estratégias de contraextremismo e radicalização. Nesse sentido, têm sido contratados clérigos islâmicos para pregar e ensinar um Islã moderado na rádio e na televisão, gerindo a percepção do público e evitando a radicalização da população vulnerável, em especial dos jovens. Para além dessas estratégias, o governo desenvolveu também um quadro legislativo e da justiça criminal capaz de combater o extremismo do Boko Haram. Contudo, apesar desse reportório de estratégias operacionais e de governo, as tensões e controvérsias relativamente à adequação dessas medidas mantêm-se no país, sendo o Estado fortemente criticado.
As abordagens para terminar com a insurgência do Boko Haram divergem na Nigéria. Alguns defendem que a força tem de ser combatida com a força, e que o governo federal deve reorganizar e mobilizar a Polícia e as Forças Armadas juntamente às agências de segurança estrangeiras para terminar com as atividades do grupo. Outros sugerem o diálogo com o grupo, por meio de líderes de seitas religiosas e de Organizações Não Governamentais (ONGs). O futuro de um bom governo e de uma reforma do setor da segurança na Nigéria passa pela criação de uma constituição que aborde a natureza complexa das relações entre o governo e os grupos étnicos, a contenção da corrupção e o desenvolvimento de uma sociedade civil ativa e participativa. Têm sido efetuados esforços para modernizar o Exército, por meio da introdução de ideias democráticas, promover o diálogo entre a sociedade civil e os militares, bem como procurar sensibilizar os militares para a não intervenção em assuntos de caráter político.
Apenas a introdução de reformas socioeconômicas sustentáveis poderá reduzir a insatisfação da população e promover a estabilidade no país. O reforço do Estado, com um melhor governo, garantindo o fornecimento de serviços básicos, como a educação, a saúde, o desenvolvimento de infraestruturas, promovendo a participação dos cidadãos no nível político, proporcionará a necessária legitimidade ao governo e é o melhor caminho para conter o extremismo religioso e o terrorismo no Norte da Nigéria. Como refere David Cook (2011, p. 89), “a resposta do governo nigeriano ao Boko Haram necessita de ser integrada numa estratégia política, econômica e de segurança que ofereça uma promessa de melhoria às populações do Norte e que limite o apelo do grupo e dos seus potenciais sucessores”. O sucesso resultará da possibilidade de várias entidades trabalharem em conjunto, respeitando-se mutuamente e em conformidade com as leis e autoridades constituídas, porque sem paz e segurança não pode haver desenvolvimento sustentável (CIERCO, 2016, p. 137).
Com a aplicação da recente estratégia nacional de contraterrorismo e de um plano de revitalização da economia que ajude os mais afetados pela violência, bem como com a ajuda da comunidade internacional, talvez seja possível garantir o aparecimento de resultados positivos. Contudo, estes só serão possíveis com o trabalho conjunto das comunidades religiosas e das ONGs, assegurando programas de âmbito familiar, cultural e religioso que realcem os valores nacionais.
Estabelecer um processo de diálogo e angariar o apoio de setores muçulmanos mais moderados, com total respeito pelos direitos humanos, pode também contribuir para aumentar a proximidade étnica e religiosa. Muitos dos nigerianos estão insatisfeitos com o Estado, considerado fonte de desigualdade e de corrupção, que falhou no cumprimento das suas mais elementares funções: segurança e bem-estar. Para devolver a segurança à Nigéria, é necessário que todos se envolvam em melhorar o funcionamento do Estado, gerindo e aproveitando melhor as suas riquezas em proveito da população. Por isso, Cierco (2016) acredita que a resposta ao fenômeno extremista tem de ser dada em médio/longo prazo, de forma holística e robusta, combatendo as suas causas mais profundas e reforçando o aparelho do Estado.
O perpetuar do conflito entre o Estado nigeriano e o grupo Boko Haram, para além das consequências nefastas a nível econômico, tem também efeitos a nível humano, gerando refugiados e pessoas deslocadas, conflitos e tensões interétnicas, colocando em causa a unidade nacional. Esta é, assim, uma das questões que o Estado tem de resolver urgentemente. Só assim será possível iniciar novamente o caminho para a estabilidade e promover o desenvolvimento daquela que poderá vir a ser a maior potência da África Ocidental. (CIERCO, 2016, p. 139).
Beatrice Awortu (2015), professora do Departmento de História e Estudos Diplomáticos da Universidade Ignatius Ajuru, em Port Harcourt, Nigéria, propões as seguintes recomendações no que concerne ao Boko Haram e ao governo nigeriano (AWORTU, 2015, p. 219):
O governo nigeriano deve declarar um estado completo de emergência em todos os Estados afetados no norte e declarar guerra em escala total contra o terrorismo desprovido de sentimentos políticos e étnicos.
Os patrocinadores e fontes de financiamento do Boko Haram devem ser rastreados. A melhor maneira de derrotar um homem em uma batalha é aleijar sua economia.
O governo deve combinar palavras com a ação em lidar com os desafios de segurança na Nigéria. Isto deve incluir equipar os militares, reorganizando a força policial, liquidação de disputas políticas, econômicas e religiosas sem favoritismo.
O governo deve colocar máquinas em vigor através de um esforço colaborativo entre as agências nacionais e estaduais de orientação, áreas governamentais locais, governantes tradicionais, jovens, mulheres e grupos religiosos na realização de campanha de re-orientação no norte da Nigéria. Isso ajudará a abordar os equívocos sobre a educação ocidental, as atividades governamentais e outras questões usadas por Boko Haram para convencer os jovens a apoiá-los. Além disso, também ajudará a abordar a questão da queda escolar para que o Boko Haram não aproveite a oportunidade de recrutá-los.
Além disso, a pobreza deve ser abordada em todo o país através da geração de emprego pelos governos a todos os níveis, a colaboração entre o governo e o setor privado, renovando as empresas e capacitando jovens e mulheres através da aquisição de competências programas e práticas agrícolas. Estas medidas não podem ser alcançadas sem que o governo aborde a questão da corrupção, que é a principal causa de pobreza na Nigéria.
Finalmente, o governo da Nigéria deve fazer parceria com a comunidade internacional para abordar a insurgência do Boko Haram. O terrorismo é um fenômeno global, portanto, é aconselhável que ele também deve ser abordado através da colaboração global.
Adetoro Adenrele (2012), professor do Departamento de Estudos Sociais do Federal College of Education no Ogun State, Nigéria, também oferece sugestões de enfrentamento (ADENRELE, 2012, p. 25):
Por entender que a questão do Boko Haram é mais política do que religiosa, é necessário que as pessoas e o governo da Nigéria respeitem o princípio da democracia e garantam eleições livres e justas.
Há a necessidade de o governo federal da Nigéria ter um controle mais rigoroso dos postos fronteiriços no norte da Nigéria, a fim de evitar imigrantes ilegais da região do Magrebe para o país. Isso exigiria o estabelecimento de uma patrulha fronteiriça conjunta entre a Nigéria, Chade, Níger, Camarões e Benin repúblicas usando equipamentos de vigilância pesada, como helicópteros bem equipados e satélites.
Um programa de alívio da pobreza permanentemente bem estruturado, desprovido de patrocínio político, é urgentemente exigido na Nigéria. Isso exige a intensificação dos esforços para integrar as escolas Almajiri nos programas de educação básica universal (UBE) com salas de aula bem mobiliadas, professores qualificados, compra de uniformes e refeições no meio do dia para os estudantes do norte da Nigéria. De igual forma, os clérigos e professores devem ser treinados. O esforço do governo federal para tornar a eletricidade estável deve ser intensificado para incentivar os programas de alívio de pobreza. Isso sugere que mais faculdades técnicas e centros vocacionais devem ser construídos por todos os três níveis de governo na Nigéria.
A longo prazo, há a necessidade de reestruturação federal na Nigéria, de tal forma que cada uma das seis zonas geopolíticas deve controlar o seu próprio orçamento anual, mas contribuindo apenas 10 por cento do mesmo para manter as agências federais. O Presidente só se torna um presidente coordenador com cada zona geopolítica liderada por um vice-presidente apoiado por legislaturas zonais. Não deve haver mais legislaturas no nível federal, mas as agências federais devem ser governadas por tábuas nomeadas com representações iguais das seis zonas geopolíticas. Desse modo, seria possível conter a corrupção.
Anthony Ebonyi (2019), professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Abuja, Nigéria, em recente artigo, também tece recomendações. Defende que a abordagem do diálogo deve ser explorada com mais veemência por parte do governo, especialmente tendo em vista a reconhecida incapacidade dos militares para combater eficazmente a insurgência do Boko Haram. Recomenda, também, que os governos federais concedam anistia a alguns dos membros arrependidos de Boko Haram. Deve oferecer um emprego significativo e sustentável para os educados, enquanto os analfabetos entre eles poderiam ser orientados a adquirir certas habilidades, tais como alfaiataria, carpintaria, mecânico de automóveis, soldagem, reparação de aparelhos móveis etc., após o que poderiam ser concedidos empréstimos sem juros ou garantias para estabelecerem seu próprio negócio e tornarem-se trabalhadores independentes. Para garantir que a integração resultante das atividades dos insurgentes seja revertida, Ebonyi sugere a adoção de programas contínuos de sensibilização juvenil sobre as consequências negativas da adesão ao grupo Boko Haram, tanto pelo governo como por entidades não governamentais. Como medida de longo prazo, no entanto, os governos federais e estaduais devem deliberadamente olhar para a persistente situação socioeconômica do Norte, especialmente em termos de educação e emprego, com vista a reduzir os conflitos violentos perpetrados pelo Boko Haram (EBONYI, 2019).
6 CONCLUSÃO
Em 2024 o Boko Haram completou 15 anos desde o início da fase violenta de sua atuação. De acordo com a pesquisa realizada, existe um consenso de que o Boko Haram deve ser combatido, ou seja, que não há que se falar em tolerância religiosa como respaldo para a atuação de grupos que buscam, por meios violentos, impor determinada fé ou crença. Não há, contudo, consenso quanto à melhor forma de combater o Boko Haram.
Como se viu, todas as tentativas utilizadas até agora foram frustradas; as abordagens que buscavam diálogo foram rechaçadas pelo Boko Haram, e as tentativas violentas apenas desencadearam reações ainda mais violentas.
No entanto, ainda existe esperança de que a situação da Nigéria seja modificada. O arcebispo Ignatius A. Kaigama, da arquidiocese de Jos, na Nigéria, palestrou no dia 1 de março de 2019 na conferência “International Religious Freedom: A New Era for Advocacy in Response to a New Age of Challenges and Threats”, organizada pela Missão Observadora Permanente da Santa Sé ante a ONU, juntamente com a ONG Comitê sobre Liberdade de Religião ou Crença[14]. Em sua apresentação na ONU, o arcebispo informou que no sul da Nigéria as relações entre muçulmanos e cristãos são cordiais. Cristãos e muçulmanos convivem pacificamente, casam e celebram as festas juntos. Pode-se converter do islamismo ao cristianismo e vice-versa, sem ameaças à vida de alguém. O diálogo inter-religioso e a coexistência pacífica entre grupos distintos é plenamente possível, e o sul da Nigéria, em que pese sua maioria cristã, é um exemplo disso.
Essa é mais uma evidência, aliás, de que o problema do Boko Haram não é o fato de ser um grupo islâmico, e sim os meios utilizados para atingir os seus objetivos. O Boko Haram põe em prática a versão do Alcorão que indica que "qualquer um que não é governado por o que Allah revelou está entre os transgressores" (Alcorão 6.49), mas ignora que o mesmo Alcorão (109.6) afirma "a você seja sua religião, e a mim minha religião" (ADENRELE, 2012, p. 21). Se o próprio profeta Maomé admitia a coexistência com religiões distintas, por que o Boko Haram se nega a fazê-lo? Por esse motivo, muitos muçulmanos atribuem ao Boko Haram a característica de hereges (WALKER, 2012, p. 9).
Ademais, como também restou demonstrado, a Nigéria é marcada por problemas complexos, aos quais muitos atribuem a gênese do Boko Haram. A pobreza extrema, falta de oportunidades de estudo ou de ingresso no mercado de trabalho, e a corrupção em todas as esferas do governo tornam a adesão ao Boko Haram uma opção atraente aos jovens do Norte da Nigéria. Segundo o Arcebispo Ignatius Kaigama, “Não há segurança social para os jovens. Você encontra aqueles que se formaram na universidade em todo lugar. Eles estão ociosos e, portanto, muito suscetíveis à manipulação por fanáticos políticos, por fanáticos religiosos e extremistas étnicos”. Acrescentou que “Esta é a esperança da Nigéria. Se [o governo] puder dar uma atenção muito séria às necessidades dos jovens… e torná-los relevantes, dar-lhes algo para fazer como contribuição para a nação, acho que ajudaria a desintoxicar e também remover aquele veneno negativo [extremismo] político, religioso ou étnico injetado neles”[15].
Diante de todo o exposto, é possível concluir que a melhor forma de combater o Boko Haram na Nigéria, a longo prazo, é possibilitar uma verdadeira transformação da sociedade, erradicando a corrupção e a pobreza, proporcionando oportunidades de estudo, trabalho e desenvolvimento pessoal – a esse processo, que se desenvolve ao longo da história, Norbert Elias atribui o conceito de “processo civilizador” (ELIAS, 1993). Apenas num contexto de estabilidade social, em que a violência não é uma opção, é que se afiguram possíveis o diálogo e a coexistência de ideias plurais.
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[1] https://www.portasabertas.org.br/categoria/noticias/boko-haram-conheca-a-historia-do-grupo-extremista-que-ameaca-a-nigeria. Acesso em 19 Set. 2019.
[2] https://www.unocha.org/nigeria/about-ocha-nigeria. Acesso em 09 Out. 2019.
[3] https://www.portasabertas.org.br/categoria/noticias/leah-sharibu-continua-em-cativeiro-por-nao-negar-jesus. Acesso em 09 Out. 2019.
[4] Inteiro teor disponível em: http://www.achpr.org/pt/instruments/achpr/. Acesso em 16 jun. 2018.
[5] https://www.portasabertas.org.br/categoria/noticias/boko-haram-conheca-a-historia-do-grupo-extremista-que-ameaca-a-nigeria. Acesso em 19 Set. 2019.
[6] https://www.hbo.com/documentaries/stolen-daughters-kidnapped-by-boko-haram. Acesso em 10 Out. 2019.
[7]https://www.dw.com/pt-br/como-o-sequestro-de-276-meninas-pelo-boko-haram-ainda-ressoa-na-nig%C3%A9ria-dez-anos-depois/a-68811642. Acesso em 12 Ago. 2024.
[8] https://www.portasabertas.org.br/categoria/noticias/boko-haram-conheca-a-historia-do-grupo-extremista-que-ameaca-a-nigeria. Acesso em 19 Set. 2019.
[9] https://www.portasabertas.org.br/categoria/noticias/boko-haram-conheca-a-historia-do-grupo-extremista-que-ameaca-a-nigeria. Acesso em 19 Set. 2019.
[10] https://portasabertas.org.br/artigos/quem-e-o-grupo-extremista-boko-haram. Acesso em 12 Ago. 2024.
[11] https://www.portasabertas.org.br/categoria/noticias/refem-e-morta-pelo-boko-haram-e-outras-sao-ameacadas. Acesso em 19 Set. 2019.
[12] https://www.portasabertas.org.br/categoria/noticias/refem-e-morta-pelo-boko-haram-e-outras-sao-ameacadas. Acesso em 19 Set. 2019.
[13] https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,nigeria-desmobiliza-quase-900-criancas-soldados-que-lutavam-contra-o-boko-haram,70002823487. Acesso em 09 Out. 2019.
[14] https://pt.aleteia.org/2019/04/07/nigeria-desafios-dos-cristaos-perante-o-boko-haram/. Acesso em 09 Out. 2019.
[15] https://pt.aleteia.org/2019/04/07/nigeria-desafios-dos-cristaos-perante-o-boko-haram/. Acesso em 09 Out. 2019.
Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Constitucional e Direitos Humanos Fundamentais pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Mestra em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná . Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VOLCOV, Andrea Kessler Gonçalves. Boko Haram e violação de direitos humanos: um conflito religioso ainda sem solução Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 ago 2024, 04:55. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/66220/boko-haram-e-violao-de-direitos-humanos-um-conflito-religioso-ainda-sem-soluo. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Helena Vaz de Figueiredo
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