RESUMO: Este artigo objetiva a análise da tolerância do ordenamento jurídico brasileiro ao casamento infantil, por meio do suprimento judicial de idade nas exceções à idade núbil prevista na redação original do art. 1.520 do Código Civil de 2002 até o alteração legislativa realizada pela Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019. Este trabalho se justifica tendo em vista que o Brasil ocupa o ranking de quarto lugar do mundo em números absolutos de mulheres casadas com a idade de até 15 anos, bem como em razão da carência de trabalhos específicos sobre casamento infantil no Brasil e da alteração promovida principalmente na legislação civil. Utiliza abordagem social e jurídica sobre o tema, por meio da pesquisa bibliográfica, predominantemente da doutrina civilista. Conclui que a redação original do art. 1.520 do Código Civil de 2002, previa duas exceções ao casamento abaixo da idade núbil, para evitar a imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez, o que demonstrava razoável tolerância do ordenamento jurídico brasileiro acerca do casamento infantil, que foi mitigada em razão de sucessivas alterações na legislação penal, como a alteração do artigo 107, incisos VII e VIII, do Código Penal, revogados pela Lei 11.106/2005 e a Lei 12.015/2009 que inseriu o artigo 217-A no Código Penal, relativo ao crime de estupro de vulnerável e que após a alteração trazida pela Lei nº 13.811/2019, o art. 1.520 do Código Civil de 2002 passou a prever que não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, sendo o objetivo legislativo expresso na ementa da lei, o de suprimir as exceções legais permissivas do casamento infantil, entretanto, não há consenso na doutrina acerca da impossibilidade absoluta do casamento por pessoas com menos de 16 anos, tampouco acerca da natureza jurídica de tal vedação, se constitui causa de nulidade ou de anulabilidade ou vedação legal sem cominação de sanção, conforme art. 166, VII, do Código Civil/2002. Assim, para parte da doutrina, ainda há certa tolerância do ordenamento jurídico brasileiro ao casamento infantil de quem não atingiu a idade núbil.
Palavras-chave: Casamento Infantil. Exceções à idade núbil. Suprimento Judicial. Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019.
1.INTRODUÇÃO
O Brasil ocupa o ranking de quarto lugar do mundo em números absolutos de mulheres casadas com a idade de até 15 anos, sendo que 11% das meninas entre 20 e 24 anos (cerca de 887 mil mulheres) casaram-se até os 15 anos. Este país também é o quarto em números absolutos de meninas casadas com idade inferior a 18 anos, cerca de 3 milhões de mulheres com idades entre 20 e 24 anos se casaram antes de 18 anos (36% do total de meninas casadas nessa mesma faixa etária) – segundo dados da Promundo em parceria com a Plan International Brasil (no Maranhão) e a Universidade Federal do Pará.
De acordo com tal pesquisa, a gravidez é ao mesmo tempo causa e efeito do casamento infantil: enquanto causa está relacionada ao desejo, geralmente de um dos familiares da menina, em razão de gravidez não planejada e sob o argumento de proteger a reputação da menina/família e de o homem assumir a responsabilidade pela menina e pelo futuro filho; enquanto consequência, a gravidez precoce é comum entre meninas casadas e geram subsequentes problemas de saúde maternal, neonatal, infantil e aumento do risco de morte a ela relacionado.
Diante desse assustador panorama, bem como em razão da carência de trabalhos específicos sobre casamento infantil no Brasil e das alterações promovidas na legislação penal e civil, propõe-se a reflexão sobre o seguinte problema: havia no ordenamento jurídico brasileiro uma tolerância ao casamento infantil? E ainda, após a Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019, tal suposta tolerância deixou de existir?
Explica-se que o título do presente trabalho utiliza o conceito de “criança” presente no artigo 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto nº 99.710/1990, que afirma ser criança todo ser humano com menos de dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.
Assim, em que pese o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelecer em seu artigo 2º que criança é a pessoa com até doze anos de idade incompletos e adolescente é a pessoa entre doze e dezoito anos, o termo casamento infantil será utilizado para relação matrimonial de pessoas abaixo de 18 (dezoito) anos, ressalvando-se que o objeto deste trabalho trata especificamente acerca do casamento de menores de 16 (dezesseis) anos.
No primeiro tópico, abordar-se-ão os aspectos sociais relacionados ao casamento infantil, destacando os lugares nos quais tal prática é mais comum, com breve panorama em alguns países para contextualizar o problema no Brasil, bem como refletir acerca de quais as causas e consequências do matrimônio na vida de crianças, de que forma ele acontece e onde é mais comum.
No segundo tópico, apresentar-se-á uma análise jurídica do problema proposto, primordialmente no âmbito cível, discutindo-se acerca das hipóteses de exceção à idade núbil, na redação original do art. 1.520 do Código Civil de 2002, tanto no caso de evitar imposição ou cumprimento de pena criminal, quanto no caso de gravidez. Em seguida, analisou-se a alteração promovida pela Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019 e as discussões doutrinárias acerca da possibilidade ou não do casamento de quem não atingiu a idade núbil.
2.PRINCIPAIS CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DO CASAMENTO INFANTIL
O Banco Mundial apresentou pesquisa apontado que 15 milhões de meninas se casam anualmente, em todo o mundo, antes dos 18 anos (SAKHONCHIK; RECAVARREN; TAVARES, 2017). A UNFPA e o UNICEF preveem que até 2030 serão 1 bilhão de crianças casadas antes dos 18 anos (ONUBR, 2017). Mais de 65% das meninas menores de 18 anos são casadas no Níger, Chade e na República Central Africana; já em Bangladesh, Burkina Faso, Guiné, Mali, Moçambique e Sudão do Sul, esse percentual é de 50% (SAKHONCHIK; RECAVARREN; TAVARES, 2017).
Diante de tais dados, poder-se-ia acreditar que o casamento infantil é um problema apenas da África Subsaariana e da Ásia, entretanto, apesar de ser uma infeliz realidade que casamentos precoces sejam comuns nessas regiões, matrimônios com criança são realidade neste país, em termos numéricos: o Brasil lidera o ranking de casamentos infantis na América Latina e o quarto do mundo (ONU MULHERES BRASIL, 2017). Nesse sentido:
No conjunto de evidências sobre casamento na infância e adolescência na América Central e América Latina, o Brasil se destaca pelo alto contraste entre o ranking elevado do país em números absolutos e a falta de pesquisas sobre o assunto. De acordo com uma estimativa, o Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em números absolutos de mulheres casadas até a idade de 15 anos, com 877 mil mulheres com idades entre 20 e 24 anos que se casaram até os 15 anos (11%). O Brasil é também o quarto país em números absolutos de meninas casadas com idade inferior a 18: cerca de 3 milhões de mulheres com idades entre 20 e 24 anos casaram antes de 18 anos (36% do total de mulheres casadas nessa mesma faixa etária) (TAYLOR, 2015, p. 09).[1]
Tais números refletem uma realidade construída desde o Brasil Colônia, Del Priore (2006) conta o caso de Escolástica Garcia, menina que se casou aos 9 anos contra sua vontade, por temor aos parentes e sofreu maus-tratos do marido. Traz também vários relatos de casamentos infantis ao longo do século XIX, a percepção dos estrangeiros sobre tal acontecimento, menina de 10 anos esposa de um homem de 65, diversas situações que faziam pensar que se tratava de avô, filha e netos, mas que na realidade eram marido, mulher e filhos. Observem-se as chocantes histórias:
Delicioso é o quadro de um capitão da marinha americana que põe em seu colo uma menina de 13 anos para contar-lhe histórias. Vem, então, a saber que era esposa de um sexagenário e mãe de uma criança pequena. Outra gafe? A do estrangeiro que havia feito elogios à filha mais jovem de um senhor de certa idade, extraordinariamente bela, uma das mais lindas que havia visto na América. Depois de afirmar ser ela afortunada por ter um pai tão afeiçoado, ouviu em um tom nada gentil: “Pai? Eu sou marido, ela é minha esposa! Mas perdôo o equívoco já que tenho filhas, para dizer a verdade quase para serem mães dela”. Pano rápido. (PRIORE, 2006, p. 169)
Os relatos são inúmeros. Um inglês conta de sua surpresa ao conversar com o ouvidor da comarca de São João del Rey, que se queixava do pouco tempo de vida que lhe restava, da difícil existência de solteiro e da pretensão de se casar. Pouco tempo depois, o senil contraiu núpcias com uma menina de 12 anos. Aliás, era essa a idade recomendada para meninas se casarem, entre 12 e 16 anos, uma moça com vinte já era quase uma solteirona. Del Priore (2006) chama a atenção para o fato de que as meninas eram levadas para a escola aos 7 ou 8 anos de idade, o que ocasionava na sua rápida passagem pela tentativa de alfabetização, pois pouco tempo depois eram requeridas pelo matrimônio e suas consequências.
Causa estranheza a gravidade do assunto aqui proposto e a escassez de pesquisas no Brasil sobre o tema. Destaca-se o que este trabalho se baseou no relatório “Ela vai no meu barco: casamentos na infância e adolescência no Brasil” (TAYLOR et al., 2015, realizado em São Luís e Belém, através de entrevistas, e buscou apresentar quais as causas e consequências do casamento na vida de meninas.
O relatório apresenta como principais fatores de motivação dos casamentos infantis: a gravidez; o desejo – dos pais e/ou do futuro marido – em controlar a sexualidade das meninas e comportamentos considerados “de risco”; o desejo de assegurar a estabilidade financeira através do casamento; a vontade das meninas; resultado da preferência e poder dos homens adultos, pois se casam com meninas mais novas por achar que elas são mais atraentes, mais fáceis de controlar, além de que homens adultos são percebidos como “melhor de vida” que homens jovens (TAYLOR et al., 2015).
A gravidez é tanto causa quanto consequência de matrimônios infantis, pois, se meninas casam antes de estarem grávidas, o próximo passo é provavelmente ter um filho, geralmente as crianças casadas não possuem poder de escolha sobre o próprio corpo, por vezes, não lhes é permitido usar qualquer tipo de contraceptivo, sob pena de serem agredidas ou causarem a desconfiança do cônjuge (TAYLOR et al., 2015).
Ademais, meninas grávidas estão mais suscetíveis a diversas violações de direitos humanos, por exemplo, ter o direito à educação negado – por serem forçadas ou não conseguirem mais frequentar a escola, em razão dos cuidados que um filho necessita – ter o direito à saúde negado – quando são obrigadas a não utilizar qualquer meio para evitar a gravidez, além de estarem mais expostas à morte em decorrência de complicações na gravidez ou no parto, “cerca de 70 mil adolescentes em países em desenvolvimento morrem anualmente de causas relacionadas à gravidez e ao parto” (UNFPA, 2013, p. 18).
Ao contrário do senso comum, o motivo da gravidez de meninas tão novas não costuma ser a banalização do sexo, pesquisas mundiais indicam que aproximadamente 90% das meninas que têm filhos são casadas (UNFPA, 2013). A gravidez na infância e adolescência, está, pois, intimamente ligada ao casamento precoce.
Outra ideia que precisa ser desmistificada é com quem meninas se casam. A pesquisa da PROMUNDO indica que geralmente crianças se casam com homens mais velhos, pois eles são vistos como mais indicados para cuidar ou educar as meninas, financeira e emocionalmente, meninos da mesma idade das meninas ou um pouco mais velhos são considerados sem responsabilidade, incapazes de manter uma família, por isso não são aprovados pelos pais. A diferença média de idade marital é de 9,1 anos (TAYLOR et al., 2015).
Além disso, o homem mais velho deseja a menina exatamente pelo fato dela ser mais jovem, para ele, a “novinha” é mais atraente e o faz se sentir mais jovem. A pesquisa também indica que homens preferem meninas virgens, apesar da virgindade não ser classificada por eles como essencial, ainda é vista como representativa de valor, pois dessa forma o marido se sente mais seguro, tem menos ciúmes, a menina gera pouca desconfiança (TAYLOR et al., 2015).
A idealização da maternidade também é um fator a ser considerado como influenciador dos casamentos e da gravidez. Meninas desde cedo são ensinadas a brincar de boneca, a compreender que seu lugar é o lar, cuidando do seu marido e filhos. Muitas garotas desejam se casar no intuito de fazer viver esse sonho, ter um bebê de verdade para cuidar, sem saber exatamente o que isso significará na sua vida, uma diminuição de oportunidades em quase todas as esferas. O relatório sobre maternidade precoce da UNFPA (2013) reconhece que a maioria dos programas e recursos de proteção à gravidez tem sido aplicados em meninas de 15 a 19 anos, entretanto, o grupo mais vulnerável é o de meninas de 14 anos ou menos (geralmente entre 10 e 14 anos) e a necessidade de criar políticas que alcancem essas crianças.
O casamento infantil também acontece por vontade das meninas, o PROMUNDO (TAYLOR et al., 2015) apresentou dados de que na pesquisa realizada em São Luís e Belém essa hipótese é menos frequente, porém existe. Geralmente as meninas aceitam se casar por pressão dos pais e/ou do homem, mas, em alguns casos, elas tomam a iniciativa em contrair matrimônio. As causas que levam a tal atitude são diversas, tanto podem estar relacionadas com o desejo de fugir da restrição de sua mobilidade ou sexualidade pelos pais, para alcançar independência e liberdade, até fugir de maus-tratos ou abusos sexuais de um dos membros da família.
Podem ser citadas como principais consequências do casamento infantil: a gravidez e todos os problemas maternais, neonatais e infantis relacionados a ela; limitação do direito à educação de meninas; limitações à mobilidade e ao convívio social de meninas casadas, frustrando as expectativas imaginadas por elas; exposição à violência do parceiro íntimo, incluindo estupros maritais e acentuada desigualdade de gênero nas relações envolvendo meninas muito jovens e homens muito velhos (TAYLOR et al., 2015). Nesse mesmo sentido assevera a pesquisa realizada pelo Banco Mundial:
[...] as meninas que se casam antes dos 18 têm uma probabilidade maior de serem expostas à violência do parceiro e ao abuso sexual do que as que se casam mais tarde.3 Elas também representam até 30% do abandono escolar feminino na educação secundária e tendem a ter filhos mais cedo.4 O casamento infantil responde ainda pela maioria dos casos de gravidez na adolescência,5 taxas mais altas de mortalidade materna e infantil, 6 nível educacional mais baixo e menores rendas.7 Por outro lado, as jovens que se casam e engravidam mais tarde têm maior probabilidade de serem mais saudáveis e terem melhor educação. (SAKHONCHIK; RECAVARREN; TAVARES, 2017, p. 01)
Além disso, o Banco Mundial alertou para o fato de que quando uma menina pode legalmente se casar antes dos 18 anos, ela tem menos oportunidade de escolher seu futuro. A pesquisa mostrou que das 158 economias onde a idade legal para o casamento é 18 anos, 139 apresentam exceções, tais como o consentimento dos pais ou judicial ou a gravidez para que meninas se casem mais cedo (o que gera uma proporção de 3 a cada 4 países) e 63 não possuem punição para o casamento precoce, o que também é o caso do Brasil (SAKHONCHIK; RECAVARREN; TAVARES, 2017).
O casamento infantil também tem impacto na economia dos países, pois acaba por gerar um ciclo de pobreza, da mãe que não pode se qualificar profissionalmente e que por isso provavelmente receberá salários menores e não ofertará uma boa condição de vida para seu filho ou filha, que possivelmente também viverá em situação de pobreza (SAKHONCHIK; RECAVARREN; TAVARES, 2017).
Destarte, é de se reconhecer que o casamento infantil é um problema que viola vários direitos humanos das meninas, tanto que estão presentes nos novos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), acontece no Brasil em decorrência de aspectos culturais e das brechas da legislação que deixam as crianças em situação de vulnerabilidade, por isso merece atenção e estudo para evitar a continuidade da violação de meninas-mães brasileiras.
3.EXCEÇÕES À IDADE NÚBIL: ANÁLISE DO ART. 1.520 DO CÓDIGO CIVIL ATÉ A LEI Nº 13.811, DE 12 DE MARÇO DE 2019
O Código Civil/2002 disciplina acerca da capacidade civil para o casamento em seu artigo 1.517, estabelece a idade núbil aos 16 (dezesseis) anos para homens e mulheres, sendo necessária a autorização dos pais ou dos representantes legais para o casamento até a completude da maioridade civil – atualmente 18 anos. Se houver recusa injusta pelos pais ou representantes[2], ou se existir divergência entre eles[3], os nubentes entre 16 e 18 anos podem buscar o poder judiciário para obter autorização ao matrimônio, por meio do suprimento judicial de consentimento.
Sucede que o art. 1.520 do mesmo diploma, antes da Lei nº 13.811, de 2019, dispunha sobre as exceções à idade núbil, permitindo que o enlace matrimonial ocorresse entre menores de 16 anos nos casos de gravidez e para evitar imposição ou cumprimento de pena, esta era a previsão legal do suprimento judicial de idade, observe-se: “Código Civil/2002: Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1.517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez” (BRASIL, 2002).
Far-se-á análise deste artigo de lei pormenorizadamente. Primeiro, tratar-se-á da exceção à idade núbil para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal. Na pesquisa bibliográfica realizada, encontraram-se os seguintes posicionamentos: autores que discordam desta possibilidade de suprimento judicial e apresentam fundamentos; autores que concordam e apresentam justificativa, por fim, autores silentes sobre o assunto, que apenas repetem o texto de lei, sem fazer qualquer comentário acerca do tema debatido nesta monografia.
O posicionamento majoritário coletado foi que não é possível o suprimento judicial de idade para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal porque tal hipótese foi revogada tacitamente em razão da alteração do artigo 107, incisos VII e VIII, do Código Penal, revogados pela Lei 11.106/2005[4]. Explica-se:
Esta concepção existe porque tais incisos previam a extinção da punibilidade em razão do casamento do agente com a vítima, nos crimes contra o costume – estupro (art. 213), atentado violento ao pudor (art. 214), posse sexual mediante fraude (art. 215), atentado ao pudor mediante fraude (art. 216), sedução (art. 217), corrupção de menores (art. 218) e rapto (art. 219 e 220), todos do Código Penal, antes da alteração da Lei 11.106/2005 – e pelo casamento da vítima com terceiro, nos mesmos crimes, desde que a ação delituosa ocorresse sem violência real ou grave ameaça e que a ofendida não requeresse a continuidade do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração. Acerca do tema, acertadamente dispõe Maria Berenice Dias:
Sem voltar ao passado, em que a preservação da família se sobrepunha ao interesse do Estado de punir a prática de um crime, em boa hora foi afastada a transformação da mulher em excludente da criminalidade. As duas hipóteses previstas na lei penal (CP 107 VII e VIII), que identificavam o casamento causa de extinção da punibilidade nos delitos “contra os costumes”, foram revogadas. Admitir o casamento do réu com a vítima como forma de evitar a imposição ou o cumprimento de pena criminal nada mais significava do que chancelar o estupro, absolvendo o autor de um crime hediondo, agravado pelo fato de ser a vítima uma adolescente. Com essa salutar alteração da lei penal, há que se reconhecer ter ocorrido a derrogação tácita de parte do art. 1.520 do CC (DIAS, 2015, p. 155, grifo no original e grifo nosso, respectivamente).
Da mesma forma ensinam os autores Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2012), pois consideram que em razão de o casamento do réu ou de terceiro com a vítima não mais constituir hipótese de extinção da punibilidade, restou prejudicada a primeira parte do artigo 1.520 para evitar imposição ou cumprimento de pena, observe-se:
[...] A legislação civil vigente (art. 1.520 do CC), em caráter extraordinário, admite que o casamento se realize mesmo quando não atingida a idade núbil (16 anos) em duas hipóteses: para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez.
Contudo, os incisos VII e VIII do art. 107 do Código Penal, que previam a extinção da punibilidade pelo casamento da vítima, nos crimes contra os costumes, foram revogados pela Lei nº 11.106/05. Com isso, tendo em vista que não constitui mais hipótese de extinção da punibilidade o casamento do réu com a vítima ou de terceiro com a vítima, a primeira hipótese de casamento abaixo da idade núbil, constante no art. 1520 do Código Civil, restou prejudicada. (ALMEIDA; RODRIGUES JÚNIOR, 2012, p. 110-111)
Na mesma esteira, explicam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2016) que o casamento deixou de ter o efeito de extinção da punibilidade nos antigos crimes contra os costumes, observe-se:
A outra hipótese de suprimento de idade deve levar em conta as disposições da Lei nº 11.106/05, que revogou o inciso VII do art. 107 do Código Penal, que, conectado ao art. 1.520 do Código Civil, comtemplava a extinção de punibilidade do agente que viesse a casar com a vítima, nos crimes contra os costumes, bem como a extinção da punibilidade pelo casamento da ofendida com terceiro, em tais delitos. Em consequência dessa mudança na legislação penal, o casamento deixou de produzir o efeito da extinção da punibilidade nesses crimes [...] (FARIAS; ROSENVALD, p. 220, 2016, grifo nosso)
No mesmo sentido, Carlos Roberto Gonçalves (2009):
A prática de crime contra os costumes contra o menor ou a menor ou o estado de gravidez, constituem as condições para o requerimento de suprimento judicial de idade. Todavia, a Lei n. 11.106, de 28 de março de 2005, revogou, além de outros dispositivos, o inciso VII do art. 107 do Código Penal. Em consequência, o casamento deixou de evitar a imposição ou cumprimento de pena criminal, nos crimes contra os costumes de ação penal pública. (GONÇALVES, 2009, p. 37)
O autor Cristiano Vieira Sobral Pinto (2017) afirma que não será possível o casamento da menor com aquele que praticou o crime de estupro de vulnerável, em razão das alterações trazidas pela Lei 12.015/09, que inseriu no Código Penal o art. 217-A e o art. 225, parágrafo único. Este estabelece que a ação penal será pública incondicionada se a vítima for menor de 18 anos ou pessoa vulnerável, significa dizer que o Ministério Público não depende de representação para oferecer denúncia, levando em conta tais alterações, o doutrinador mencionado conclui: “não sendo mais a ação penal de natureza privada, o casamento não funcionará como perdão” (PINTO, 2017, p. 855).
Por sua vez, o doutrinador Flávio Tartuce (2017) mudou de posicionamento ao longo das edições publicadas e da entrada em vigor das Leis 11.106/2005 e 12.015/2009. Ele explicou seu entendimento inicial, divergente da maioria da doutrina - esta acreditava que a Lei 11.106/2005 derrogou ou revogou tacitamente parte do art. 1.520 do Código Civil, pois, se não havia mais que se falar em extinção da punibilidade, estaria vedado o casamento do menor com o autor do crime.
Tartuce (2017) acreditava que não houve revogação da norma civil, pois em alguns casos o menor poderia exercer a opção de se casar com quem praticou o crime contra os costumes, isso porque a ação penal era de natureza privada, em consequência, estar-se-ia diante de um caso de perdão tácito ou renúncia, pois a celebração do casamento seria ato incompatível com a vontade de ver o agente delituoso punido.
Ato contínuo, o mesmo autor explica que o magistrado poderia autorizar o casamento se a menor declarasse o desejo de viver com o pai da criança e demonstrasse discernimento para tanto, provado por perícia psicológica e porque a vontade da menor seria relevante nesse caso, conforme orientação do Enunciado nº 138 do CJF/STJ da III Jornada de Direito Civil: “A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto” (CJF, 2017).
Tartuce (2017) debateu inclusive sobre a adequação social da aplicação da norma penal: “seria adequado enviar o criminoso, pai dessa criança que ainda vai nascer, para a cadeia?” (TARTUCE, 2017, p. 55). Apresentou exemplo no limiar do debate, caso de uma menina de 13 anos que teve relacionamento amoroso com rapaz de 18 e engravidou. Entretanto, reconheceu que muitas situações na prática não são românticas como a apresentada.
Aliás, o quadro narrado pelo autor, longe de ser regra, é exceção nos casamentos infantis, pelos motivos expostos no primeiro tópico, principalmente porque a família das meninas muito jovens que mantêm relações amorosas estáveis acredita que um homem mais velho terá mais condições de educar a criança-mãe e também arcar com o ônus financeiro de constituir família (TAYLOR et al., 2015).
Ademais, o doutrinador em debate acreditava que cada caso deveria ser analisado conforme suas peculiaridades, motivo pelo qual não defendia a tese de derrogação ou revogação parcial tácita do art. 1.520 do Código Civil, em sua redação original. Todavia, após a edição da Lei 12.015/2009, mudou seu posicionamento, pois a referida norma inseriu o artigo 217-A no Código Penal, que, segundo o autor, trouxe a ideia de presunção absoluta de vulnerabilidade. Além disso, tal crime passou a ser de ação penal pública incondicionada, motivo pelo qual o casamento não poderia funcionar como perdão tácito ou renúncia, literalmente:
Pois bem, a segunda lei penal, a Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, parece ter encerrado o debate anterior, não sendo mais possível o casamento da menor com aquele que cometeu o crime antes denominado como estupro presumido, em hipótese alguma. Isso porque o Código Penal, ao tratar dos crimes sexuais contra vulnerável, passou a prever em seu art. 217-A que é crime “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. O tipo penal passou a ser denominado como estupro de vulnerável, sendo certo que a vulnerabilidade encerra uma presunção absoluta ou iure et de iure.
Outro ponto fulcral da alteração consta no novo art. 225, parágrafo único, do Código Penal, segundo o qual, havendo pessoa vulnerável, a ação penal do crime sexual é pública incondicionada.
Desse modo, não sendo mais a ação penal de natureza privada, não pode o casamento funcionar como forma de perdão tácito do crime, conforme outrora era exposto. Em suma, desaparece o fundamento principal da tese que era anteriormente defendida por este autor. (TARTUCE, 2017, p. 58)
Por outro lado, os autores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2017) afirmam: “Também se justifica o casamento abaixo da idade núbil para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal.” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 1114). Para tanto, reconhecem que o artigo 1.520 foi profundamente esvaziado pelas alterações na legislação penal, todavia, em alguns casos específicos, o magistrado pode apresentar solução diversa.
Nesse sentido, os escritores citados apresentam o fundamento de que se o juiz verificar que houve namoro sério, “numa ambiência psicológica de maturidade inequívoca das partes envolvidas, especialmente a incapaz” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2017, p. 1115), conjuntamente com a aquiescência dos pais, poderia reconhecer a atipicidade do fato criminoso, consequentemente, justificar a autorização para se casar. Nesse diapasão, seria possível inclusive o trancamento da ação penal, pois esta careceria de justa causa.
Salienta-se que os doutrinadores em questão são contraditórios ao tratar da maturidade do infante ora para justificar o casamento de pessoa com menos de 14 anos, que possua discernimento suficiente para ter relacionamento sério, ora para afirmar que uma menina de 13 anos de idade e grávida pode casar, entretanto, não deve exercer os demais direitos relacionados a uma vida civil, ou seja, a ela não devem ser aplicados os efeitos da emancipação em decorrência do casamento[5], em atenção ao princípio da proteção integral de crianças e adolescentes. Em outras palavras: a menina com treze anos ou menos possui maturidade inequívoca para casar e ser mãe, porém, é imatura para quaisquer outros atos da vida civil.
Por outro lado, Maria Helena Diniz (2012) é silente acerca do tema do suprimento judicial de idade, ela se resume a falar da diferença entre incapacidade para o casamento e impedimento matrimonial. Afirma que a incapacidade é geral, enquanto o impedimento é circunstancial, relacionado à falta de legitimação.
Coletadas as principais informações sobre a primeira parte do artigo 1.520 do CC/02 em sua redação original, tratar-se-á da segunda hipótese de suprimento judicial de idade, qual seja, no caso de gravidez. Nessa seara, a maioria da doutrina pesquisada afirma que houve derrogação tácita do artigo 1.520 do Código Civil, no que diz respeito a evitar imposição ou cumprimento de pena, significa dizer que, conforme tais autores, a hipótese de gravidez continuava plenamente válida.
Dias (2015) lembra que a gravidez pode decorrer de relação sexual ou de inseminação artificial, entretanto, acredita que esse não deveria ser critério para autorizar o casamento de menina menor de 16 anos, pois não encontra justificativa plausível para tal possibilidade, uma vez que a prole está protegida independentemente do casamento, não existe mais, no ordenamento jurídico, a hipótese de legitimar os filhos por meio do matrimônio. Ademais, a autora indigna-se com a contradição do instituto jurídico, nos seguintes termos:
Em caso de gravidez, se houve o casamento sem autorização, não é cabível sua anulação por motivo de idade (CC 1.551). Assim, para uma jovem casar com menos de 16 anos, basta engravidar! Fora dessa hipótese não é possível o casamento ser autorizado, nem judicialmente. Não obstante, há uma perversa consequência: impossibilitadas de casar, as meninas menores de 16 anos acabam vivendo em união estável, o que as coloca em situação de vulnerabilidade. (DIAS, 2015, p. 156)
Os autores Cristiano Vieira Sobral Pinto (2017), Renata Barbosa de Almeida e Walsir Edson Rodrigues Júnior (2012), Carlos Roberto Gonçalves (2009), Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2017), Paulo Nader (2016), afirmam ser possível o suprimento judicial de idade em razão da gravidez, sem tratar especificamente sobre o casamento de meninas menores de 14 anos.
Destaca-se que, em relação às meninas menores de 14 anos, esta autora já defendia, antes mesmo da alteração realizada pela Lei nº 13.811/2019, a impossibilidade de suprimento judicial de idade de menor de 14 anos, em razão da previsão do crime de estupro de vulnerável após alteração legislativa que inseriu o art. 217-A no Código Penal, pela Lei nº 12.015, de 2009, tendo em vista a aplicação do critério cronológico, a perspectiva do Direito como integridade, como ordenamento jurídico e sistema coerente que não aceita antinomias e a teoria do direito em sua tridimensionalidade, para aprofundamentos, indica-se a leitura da obra (OLIVEIRA, 2017).
Sendo assim, pela redação anterior do art. 1.520 do Código Civil, apesar de existir debate social acerca do tema, não havia discussão jurídica relevante sobre o suprimento judicial de idade em razão da gravidez de meninas de 14 ou 15 anos, uma lacuna legislativa brasileira que possibilitava o casamento infantil.
Ocorre que a Lei nº 13.811/2019 alterou a redação do art. 1.520 do Código Civil que passou a prever: “Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código. (Redação dada pela Lei nº 13.811, de 2019)” (BRASIL, 2019).
Consoante a redação trazida pela Lei nº 13.811/2019, a alteração no art. 1.520 do CC/02 tem o objetivo de “suprimir as exceções legais permissivas do casamento infantil” (BRASIL, 2019), apesar da disposição legislativa expressa na ementa, a interpretação doutrinária acerca do tema não é unânime, conforme se analisará.
Para parte da doutrina, a alteração legislativa foi suficiente para impossibilitar o casamento de pessoas com menos de 16 anos (idade núbil), mesmo na hipótese de gravidez, além disso, a autorização pelos pais também exige a idade mínima de 16 anos. Nesse sentido, veja-se:
Cabe lembrar que deixou de ser possível o casamento, no Brasil, de pessoas com menos de 16 anos (Lei n. 13.811/2019). Nem mesmo em hipótese de gravidez esse casamento é possível. De fato, nada recomenda que tenhamos casamentos antes dos 16 anos. A experiência demonstra que não costuma ser saudável o casamento tão cedo - quando o livre desenvolvimento da personalidade está começando. Estudos são interrompidos, projetos de vida são abandonados, a própria alegria da adolescência é esvaziada. Os pais só poderão autorizar o casamento de filhos que tenham pelo menos 16 anos. O suprimento de idade, assim, feito pelos pais, exige essa idade mínima. (FARIAS; BRAGA NETTO; ROSENVALD, 2022, pág. 1.195)
Maria Berenice Dias (2021) destaca ainda que os menores de 16 anos não podem se casar, nem mesmo em caso de gravidez, assim como não cabe autorização pelos pais, tampouco suprimento judicial de idade. Todavia, ressalta que a desatenção quanto à alteração legislativa gera vários questionamentos, os quais serão abordados ainda neste tópico.
Do mesmo modo, Rolf Madaleno (2022) entende que após a Lei nº 13.811/2019, restou expressamente proibido o casamento de menores de 16 anos, ante a supressão das exceções legais à idade núbil, vejamos:
A idade núbil acontece aos 16 (dezesseis) anos, sendo exigida para o casamento a autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais (CC, art. 1.517), sendo expressamente proibido o casamento de menores de 16 anos em concordância com a Lei 13.811/2019, que conferiu nova redação ao artigo 1.520 do Código Civil, de modo a suprimir as exceções legais ao casamento infantil, tornando proibido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil. (MADALENO, 2022, p. 439)
Ademais, também no sentido da proibição expressa do casamento de menor de 16 anos após a Lei nº 13.811, de 2019, dispõem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2022).
Por outro lado, Flavio Tartuce (2024) discorda da corrente doutrinária que entende ser o casamento infantil nulo de pleno direito, a denominada nulidade virtual, em razão da proibição da prática do ato sem cominar sanção, nos termos do art. 166, VII, segunda parte, do Código Civil de 2002[6], isto porque a Lei nº 13.811/2019 não revogou expressamente o art. 1550, I, do CC/02, que dispõe sobre a anulabilidade do casamento de quem não completou a idade mínima para se casar, tampouco o art. 1.551 do CC/02, conforme o qual não se anulará por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez.
No mesmo sentido, continua Flavio Tartuce (2024), não houve a revogação expressa do art. 1.553 do Código Civil de 2002[7], que trata acerca da convalidação do casamento de quem não atingiu a idade núbil, confirmando-se o casamento com a autorização dos representantes legais, caso seja necessária, ou mesmo com suprimento judicial, bem como permanecem hígidos o art. 1.552, incisos I, II e III, do CC/02[8], que trata sobre ação anulatória do casamento de menores de 16 anos e o art. 1.560, §1º, do CC/02, que traz o prazo decadencial de 180 para anulação do casamento contado da data em que o adolescente dizer 16 anos e da data do casamento para seus representantes legais ou ascendentes, veja-se:
Também não estão revogados, expressa ou tacitamente, os dispositivos que consagram regras específicas a respeito da ação anulatória, caso do art. 1.552 do Código Civil: “a anulação do casamento dos menores de dezesseis anos será requerida: I- pelo próprio cônjuge menor: II - por seus representantes legais; III - por seus ascendentes”. O mesmo se afirma quanto ao prazo decadencial de 180 dias para a demanda, conforme o art. 1.560, §1º.”, da Lei Geral Privada:“extingue-se, em cento e oitenta dias, o direito de anular o casamento dos menores de dezesseis anos, contado o prazo para o menor do dia em que perfez essa idade; e da data do casamento, para seus representantes legais ou ascendentes"`. Todos esses comandos são específicos quanto á anulação do casamento, negócio jurídico especial, devendo prevalecer sobre as regras gerais sobre a teoria geral do negócio jurídico, previstas na Parte Geral da codificação privada. (TARTUCE, 2024, p. 2876)
No tocante às críticas trazidas por Maria Berenice Dias (2021), ela destaca a diferença entre incapacidade e impedimento para o matrimônio, sendo a incapacidade pessoal, impede o casamento com qualquer pessoa, e o impedimento relacional, atinge somente situação específica, determinada pessoa frente a outra.
Nesse sentido, a autora supracitada afirma a contradição do art. 1.550, I, do Código Civil de 2002, ao prever a anulabilidade do matrimônio de quem não completou a idade núbil, mas, ao mesmo tempo, inserir no capítulo da capacidade para o casamento, uma incapacidade absoluta no art. 1.520 do Código Civil de 2002. Além disso, assevera que não é possível afirmar que o casamento é nulo, pois não foi inserido no rol de nulidades do art. 1.521 do Código Civil de 2002, assim como não se trata de hipótese de impedimento, tampouco é anulável, por não constar no rol de anulabilidade do art. 1550 do Código Civil.
Desse modo, resta evidenciado que o dispositivo restou absolutamente fora do lugar. Em absoluta contradição com o inc. I do art. 1.550, que diz ser anulável o casamento de quem não completou a idade mínima para casar. No capítulo que cuida da capacidade para o casamento, foi inserida uma incapacidade absoluta (CC 1.520): Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código. A remissão ao art. 1.517 é mais do que inútil. E a expressão “em qualquer caso” parece significar que, se for celebrado, o casamento é absolutamente nulo. [...]
A proibição também não foi inserida no rol legal das nulidades (CC 1.521). Como não está lá, não se poderia dizer que o casamento é nulo, pois assim é reconhecido o casamento por infringência a impedimento (CC 1.548 II). Do mesmo modo, também não se pode dizer que o casamento seria anulável, por não se encaixar em nenhuma das previsões de anulabilidade (CC 1.550). (DIAS, 2021, p. 522, grifos no original)
Sendo assim, atingida a idade núbil de 16 anos, não há controvérsia jurídica acerca da impossibilidade do casamento infantil, por ausência de vedação legal.
Por outro lado, apesar da redação da Lei nº 13.811/2019, não há consenso na doutrina acerca da impossibilidade absoluta do casamento por pessoas com menos de 16 anos, tampouco acerca da natureza jurídica de tal vedação, se constitui causa de nulidade ou de anulabilidade ou vedação legal sem cominação de sanção, conforme art. 166, VII, do Código Civil/2002.
4.CONCLUSÃO
Viu-se que, a despeito da pouca visibilidade do tema, o casamento infantil é um problema grave no Brasil e que tem como causas principais a gravidez, a intenção de controlar a sexualidade da menina, o desejo de estabilização financeira por meio do casamento, bem como a preferência e poder dos homens adultos sobre meninas que consideram mais atraentes e fáceis de controlar.
Como consequências do casamento infantil destacou-se a gravidez e os problemas maternais, neonatais e infantis relacionados a ela; bem como as limitações ao direito à educação, à mobilidade e ao convívio social das meninas, além da exposição à violência do parceiro íntimo, incluindo estupros maritais e acentuada desigualdade de gênero nessas relações.
A redação original do art. 1.520 do Código Civil de 2002 dispunha sobre as exceções à idade núbil, permitindo que o enlace matrimonial ocorresse entre menores de 16 anos para evitar imposição ou cumprimento de pena ou nos casos de gravidez. Quanto à primeira parte do dispositivo, o posicionamento majoritário da doutrina coletada foi que não é possível o suprimento judicial de idade para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal, porque tal hipótese foi revogada tacitamente em razão da alteração do artigo 107, incisos VII e VIII, do Código Penal, revogados pela Lei 11.106/2005 e em razão da Lei 12.015/2009 que inseriu o artigo 217-A no Código Penal.
Quanto à segunda parte da redação original do art. 1.520 do Código Civil, a maioria da doutrina pesquisada entendeu que a hipótese de suprimento judicial em razão da gravidez permanecia plenamente válida, sendo que parte não especificava a idade, se possível com 15 e 14 anos de idade ou menos.
Em relação às meninas menores de 14 anos, esta autora já defendia, antes mesmo da alteração realizada pela Lei nº 13.811/2019, a impossibilidade de suprimento judicial de idade de menor de 14 anos, em razão da previsão do crime de estupro de vulnerável após alteração legislativa que inseriu o art. 217-A no Código Penal, pela Lei nº 12.015, de 2009, tendo em vista a aplicação do critério cronológico, a perspectiva do Direito como integridade, como ordenamento jurídico e sistema coerente que não aceita antinomias e a teoria do direito em sua tridimensionalidade.
Sendo assim, na redação original do art. 1.520 do Código Civil, havia duas exceções ao casamento abaixo da idade núbil, o que demonstra razoável tolerância do ordenamento jurídico brasileiro acerca do casamento infantil, que foi mitigada em razão de sucessivas alterações na legislação penal, conforme interpretações e doutrina trazida.
Após a alteração trazida pela Lei nº 13.811/2019, o art. 1.520 do Código Civil de 2002 passou a prever que não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, sendo o objetivo legislativo expresso na ementa da lei, o de suprimir as exceções legais permissivas do casamento infantil. Ainda assim, o tema não é pacífico na doutrina.
Para parte da doutrina, a alteração legislativa foi suficiente para impossibilitar o casamento de pessoas com menos de 16 anos (idade núbil), mesmo na hipótese de gravidez, não sendo possível autorização dos pais ou mesmo suprimento judicial em tal hipótese. Assim, segundo essa corrente, não haveria mais espaço no ordenamento jurídico brasileiro para o casamento infantil fora da idade núbil.
Por outro lado, parte da doutrina discorda da nulidade de pleno direito do casamento abaixo da idade núbil, em razão de não haver revogação expressa (tampouco tácita, conforme essa corrente) de dispositivos que trazem a hipótese de anulabilidade do casamento de quem não completou a idade mínima para se casar (art. 1550, I, do CC/02) ou a impossibilidade de anulação do casamento em razão da idade de que resultou gravidez (art. 1.551 do CC/02), assim como dos arts. art. 1.552, incisos I, II e III, art. 1.553 e art. 1.560, §1º, do CC/02.
Desse modo, é cediço que atingida a idade núbil de 16 anos, não há controvérsia jurídica acerca da impossibilidade do casamento infantil, por ausência de vedação legal.
Por outro lado, apesar da redação da Lei nº 13.811/2019, conclui-se que não há consenso na doutrina acerca da impossibilidade absoluta do casamento por pessoas com menos de 16 anos, tampouco acerca da natureza jurídica de tal vedação, se constitui causa de nulidade ou de anulabilidade ou vedação legal sem cominação de sanção, conforme art. 166, VII, do Código Civil/2002. Assim, para parte da doutrina, ainda há certa tolerância do ordenamento jurídico brasileiro ao casamento infantil de quem não atingiu a idade núbil.
Destarte, o presente trabalho visa a contribuir acerca do debate social e jurídico sobre o casamento infantil, tendo em vista os poucos materiais escritos no Brasil a respeito do tema, bem como contribuir com reflexões acerca da redação original do art. 1.520 do Código Civil, bem como a alteração promovida pela Lei nº13.811, de 12 de março de 2019 e sua consequência quanto à tolerância ou não do casamento infantil de quem não atingiu a idade núbil.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019. Confere nova redação ao art. 1.520 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), para suprimir as exceções legais permissivas do casamento infantil. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13811.htm#art1>. Acesso em: 22 set. 2024.
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[1] Texto literal: “Porcentagens na faixa etária 20 a 24 da Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher (PNAD) de
2006: pag. 161, Tabela 2: “Idade na primeira união,” disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/pnds/img/relatorio_final_PNDS2006_04julho2008.pdf (Essas porcentagens são as mesmas usadas em UNICEF, 2014. The State of the World’s Children 2014 In Numbers: Every Child Counts). Fonte de números absolutos usados no ‘ranking’ Statistics and Monitoring Section, Division of Policy and Strategy, UNICEF (2013), feito em Vogelstein, 2013. O cálculo do ‘ranking’ foi baseado em uma população de mulheres entre 20 a 24 anos (2011). Devido à falta de dados disponíveis, o ‘ranking’ exclui a China, Bahrein, Irã, Israel, Kuwait, Líbia, Omã, Catar, Arábia Saudita, Tunísia e Emirados Árabes Unidos, entre outros países.” (TAYLOR et al., 2015, p. 09)
[2]Código Civil/2002: “Art. 1.519. A denegação do consentimento, quando injusta, pode ser suprida pelo juiz.” (BRASIL, 2002).
[3] Código Civil/2002: “Art. 1.517. O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil.
Parágrafo único. Se houver divergência entre os pais, aplica-se o disposto no parágrafo único do art. 1.631.” (BRASIL, 2002).
[4] Código Penal/1940: “Art. 107 - Extingue-se a punibilidade: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
VII - pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código; (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)
VIII - pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração; (Revogado pela Lei nº 11.106, de 2005)”
[5] Código Civil/2002: “Art. 5º A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade: [...]
II - pelo casamento;”
[6] Código Civil/2002: “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: [...] VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.” (BRASIL, 2002)
[7] Código Civil/2002: “Art. 1.553 O menor que não atingiu a idade núbil poderá, depois de completá-la, confirmar seu casamento, com a autorização de seus representantes legais, se necessária, ou com suprimento judicial.” (BRASIL, 2002)
[8] Código Civil/2002: “Art. 1.552 A anulação do casamento dos menores de dezesseis anos será requerida: I - pelo próprio cônjuge menor; II - por seus representantes legais; III - por seus ascendentes.” (BRASIL, 2002).
Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e pós-graduada em Direito Constitucional pela Faculdade IBMEC São Paulo e Instituto Damásio de Direito. Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OLIVEIRA, TALITY MAKERLY SOUSA DE. Casamento Infantil: análise da tolerância do ordenamento jurídico brasileiro nas exceções à idade núbil no Código Civil de 2002 até a alteração da Lei nº 13.811, de 12 de março de 2019 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 set 2024, 04:07. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/66544/casamento-infantil-anlise-da-tolerncia-do-ordenamento-jurdico-brasileiro-nas-excees-idade-nbil-no-cdigo-civil-de-2002-at-a-alterao-da-lei-n-13-811-de-12-de-maro-de-2019. Acesso em: 23 dez 2024.
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