Resumo: Introdução: O presente estudo versa a respeito da responsabilidade por defeito no produto no Direito do Consumidor sobre os cigarros eletrônicos, popularmente conhecidos como “vapes” ou “pods”. Dessa forma, analisar-se-á a responsabilidade das empresas tabagistas que produzem e distribuem cigarros eletrônicos por defeito no produto como, por exemplo, causar danos ou quiçá o óbito dos seus consumidores. Objetivo: o objetivo do presente trabalho é analisar a responsabilidade das empresas produtoras de cigarros eletrônicos perante os consumidores, estes consumindo e sendo vítimas de danos perante os produtos, conquanto configura defeito ou não no produto. Metodologia: o método utilizado no trabalho em questão é a citação jurisprudencial e a revisão de literatura, utilizando as obras de Flávio Tartuce, Daniel Amorim Assumpção Neves – além da jurisprudência brasileira a respeito dos produtos oriundos do tabaco e que possuem nicotina como forma exemplificativa das teses adotadas no artigo científico. Resultado: O resultado da presente pesquisa aponta para um enquadramento da escusa de culpa por parte da indústria tabagista na responsabilidade civil pela jurisprudência e pela doutrina, indo o autor do trabalho em questão na contramão da corrente majoritária. Conclusão: Conclui-se que as empresas destes produtos devem responder perante o judiciário.
Palavras-chave: responsabilidade; cigarros; tabagismo; defeito; CDC.
Sumário: Introdução; 1. Responsabilidade civil no CDC; 1.2. O vício no produto; 1.3 O defeito no produto; 2. As excludentes de responsabilidade civil pelo CDC; 2.1 As excludentes da não colocação do produto no mercado e da ausência de defeito; 2.2 A excludente da culpa ou fato exclusivo de terceiro; 2.3 A excludente da culpa ou fato exclusivo do próprio consumidor; 2.4 O enquadramento do caso fortuito ou força maior; 3. O cigarro como defeito no produto e a jurisprudência nacional; 4. O cigarro eletrônico: devem ser responsabilizadas as empresas tabagistas pelo defeito no produto?; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
No presente artigo, discutir-se-á o elemento objetivo das relações de consumo e sua responsabilidade civil: o produto e seu defeito. Mais precisamente, o cigarro eletrônico e a responsabilidade da indústria tabagista pelo defeito ou não inerente ao produto em questão, comercializado por todo o Brasil e muito utilizado pela nova geração, a parcela mais jovem da população.
O cigarro eletrônico – conhecido como ecigar, e-cigaretes, vapes ou pods –, inicialmente, surgiu como uma opção ao antitabagismo, uma alternativa a fim de se parar de fumar e evitar o vício. Todavia, o consumo deste produto, que se assemelha a uma caneta ou um pen-drive, aumentou exponencialmente ao longo do tempo, chegando à geração Z.
Jovens, principalmente a nova geração, o utilizam pensando que não prejudica a saúde como o cigarro convencional – seja ele de filtro ou branco ou mesmo o de palha. Entretanto, ele ainda sim libera uma substância presente nos cigarros convencionais: a nicotina. Esta é a maior substância com potencial de vício, estando ela presente também nos cigarros eletrônicos.
Vale ressaltar que este produto, diante dos fatos expostos, está causando a morte de milhares de jovens com pouquíssimo tempo de uso. Segundo o site de notícias Eu Atleta – da Globo – o cigarro eletrônico é responsável por uma nova doença que surgiu com seu uso: a EVALI (doença respiratória aguda). Esta é responsável, segundo o jornal, por causar a morte de 48 pessoas nos Estados Unidos da América, em 2.291 casos da nova enfermidade.
Diante dos fatos expostos, entra a questão no Brasil com o Código de Defesa do Consumidor, a Lei 8.078/1990, promulgado a fim de defender os consumidores brasileiros. Visto que tal produto entrou em voga no Brasil, como se aplicaria o CDC nesses casos? O CDC seria aplicável ao defeito no produto, diante disso, tendo em vista que mata e prejudica milhares de pessoas pelo Brasil e pelo mundo? Deveria o cigarro eletrônico ser regulado ou proibido? O “vape” e sua publicidade é abusiva, já que influenciadores os divulgam amplamente como um produto para pessoas elegantes?
Tais questões serão analisadas ao longo do presente artigo científico com a opinião embasada nas doutrinas de Flávio Tartuce, Daniel Neves, Sérgio Luís Boeira, Teresa Ancona Lopez e outros autores – estes como forma de exemplificação, apenas –, se há, de fato, o defeito alegado que existe no cigarro eletrônico ou se a responsabilidade entra na excludente por culpa exclusiva do consumidor.
Dessa maneira, seguir-se-á com a o primeiro tópico do estudo presente, sobre a responsabilidade civil no âmbito do CDC, o vício no produto, o defeito no produto, a análise jurisprudencial de casos dos tribunais brasileiros a respeito do cigarro convencional e a doutrina a respeito, além da publicidade abusiva ou omissa quanto ao cigarro eletrônico e, finalmente, a relação do cigarro eletrônico com o defeito inerente ao produto, excludente da responsabilidade civil por culpa exclusiva da vítima. Também, o autor concluirá o trabalho adicionando, ainda, as referências.
1.A RESPONSABILIDADE CIVIL NO ÂMBITO DO CDC
O Código de Defesa do Consumidor, dentro da responsabilidade civil – unificando os institutos do Direito do Consumidor e do Direito Civil brasileiros – consagra a ideia ou teoria do risco-proveito que significa, segundo TARTUCE (2024, p. 142):
“aquele que gera a responsabilidade sem culpa justamente por trazer benefícios, ganhos ou vantagens. Em outras palavras, aquele que expõe aos riscos outras pessoas, determinadas ou não, por dele tirar um benefício, direto ou não deve arcar com as consequências da situação de agravamento. Uma dessas decorrências é justamente a responsabilidade objetiva e solidária dos agentes envolvidos com a prestação ou fornecimento.”
Dessa forma, a responsabilidade no CDC é solidária, ou seja, todos da cadeia de produção respondem conjuntamente, ao mesmo tempo objetiva, devendo arcar com os custos e mesmo eximidos de culpa – pela própria teoria do risco-proveito e da reparação integral dos danos constante no Art. 6, VI do CDC. Além disso, vale ressaltar que se encontra a reparação integral dos danos e a teoria do risco-proveito nos Arts. 12, 14, 18, 19 e 20 do CDC, que serão comentados ao longo do artigo em questão. Diante disso, o consumidor não tem, em regra, o ônus da prova subjetivo, ou seja, que provar a culpa sob o vício ou defeito no produto dos réus, porquanto a responsabilidade é objetiva, não subjetiva.
Cabe ressaltar, diante do exposto, que há exceções à teoria do risco-proveito no âmbito do Código de Defesa do Consumidor. No caso de profissionais liberais, como aponta o Art. 14, § 4° do CDC, a responsabilidade civil sobre o vício ou fato do produto é subjetiva – devendo, nos termos do Direito Comercial ou Empresarial, ser de fato Empresários individuais ou profissionais liberais, mesmo que seja uma sociedade de advogados, dentistas ou médicos, como aponto o Art. 966, § Único do CC/2002.
Citar-se-á, como maneira de exemplificar o conteúdo, a ementa publicada pelo Jurisprudência em Teses do STJ (Edição n° 39), no ano de 2015, que afirma “em demanda que trata da responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço (Arts. 12 e 14 do CDC), a inversão do ônus da prova decorre da lei (ope legis), não se aplicando o art. 6°, inciso VIII, do CDC.”
Outra maneira de exemplificar, também, é o REsp 81.101/PR, em que é demonstrada na prática a aplicação do instituto
CIVIL E PROCESSUAL - CIRURGIA ESTÉTICA OU PLÁSTICA - OBRIGAÇÃO DE RESULTADO (RESPONSABILIDADE CONTRATUAL OU OBJETIVA) - INDENIZAÇÃO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. I - Contratada a realização da cirurgia estética embelezadora, o cirurgião assume obrigação de resultado (Responsabilidade contratual ou objetiva), devendo indenizar pelo não cumprimento da mesma, decorrente de eventual deformidade ou de alguma irregularidade. II - Cabível a inversão do ônus da prova. III - Recurso conhecido e provido
Diante do exposto, vê-se que a responsabilidade civil, seja por fato do produto ou por vício deste, é objetiva – com culpa presumida –, em regra por causa da teoria do risco-proveito, e excepcionalmente subjetiva, mas apenas em casos de profissionais liberais que porventura se encaixarem no Art. 966, § Único do CC/2002.
1.2 O VÍCIO NO PRODUTO
Começar-se-á com a definição de vício no produto. O vício no produto ocorre apenas se o defeito ficar apenas no produto, não causando danos aos consumidores – sejam eles determinados ou não. Afirma TARTUCE (2024, p. 150):
De outra forma, pode-se dizer que, quando o dano permanece nos limites do produto ou serviço, está presente o vício. Se o problema extrapola os seus limites, há fato ou defeito, presente, no último caso, o acidente de consumo propriamente dito.
Dessa maneira, o vício fica presente apenas no produto, não causando danos – sejam estéticos ou materiais – ao consumidor, ficando restrito ao próprio produto. Dessa maneira, exemplifica-se com o seguinte: o consumidor compra uma torradeira e ela para de funcionar, queimando. Diante desse exemplo, o defeito – sendo ou não de fábrica – fica limitado apenas no produto em questão, não explodindo e causando danos ao consumidor.
Outrossim, vale ressaltar que no vício do produto há, sim, solidariedade entre o fabricante e o comerciante. Dessa forma, se um consumidor, no exemplo da torradeira, comprou de uma determinada marca e um determinada loja, ambas as Reclamadas respondem solidariamente pelo vício no produto.
Aprofundando o vício no produto, vê-se que o Art. 18, § 6°, da Lei 8.078/1990 elenca algumas hipóteses de vício oculto ou aparente, também denominados de vícios por inadequação, adstritos apenas ao produto, que são:
I- Os produtos cujos prazos de vaidade estejam vencidos;
II- Os produtos deteriorados, alterados, adulterados, avariados, falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vida ou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles em desacordo com as normas regulamentares de fabricação, distribuição ou apresentação;
III- Os produtos que, por qualquer motivo, se revelem inadequados ao fim que se destinam.
Para que se considera o vício, deve-se considerar a vida útil do produto adquirido pelo adquirente. Observa-se, por exemplo, a obsolescência programada, que destrói aos poucos, a exemplo dos smartphones, a vida útil do produto a fim de gerar mais lucro para a empresa hiperssuficientes – grandes indústrias de aparelhos celulares, por exemplo.
Deve-se demonstrar também as hipóteses do Art. 18, § 1°, incisos I, II e III do CDC, exemplificado pelo presente autor pela sua prática de estágio no Procon Municipal de Ubá-MG.
Art. 18, § 1°:
I- A substituição do produto por outro da mesma espécie em perfeitas condições de uso;
II- A restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;
III- O abatimento proporcional do preço.
Dessa forma, se houver vício no produto, provado, o consumidor que sofreu com isso pode, dentre as três hipóteses – de maneira mais simples e didática – substituir o produto por outro novo; receber o dinheiro de volta, com perdas e danos; ou abater proporcionalmente o preço que pagou no produto. Tudo isso, em questão, com o fito de defender o consumidor vulnerável, nos termos do Art. 4, I do CDC, contra a hiperssuficiência das grandes empresas no sistema capitalista dos meios de produção.
Também, vale ressaltar os prazos decadenciais do Art. 26 do CDC, sendo eles:
Art. 26, incisos I, II e § 1° do CDC:
I- Trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;
II- Noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis;
Já o § 1º do Art. 26 do CDC, diz que: “Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término de execução dos serviços.”
Dessa maneira, para bens não duráveis é de 30 dias e de duráveis de 90 dias. Todavia, o § 1° do artigo citado, diz que se inicia a contagem do prazo a partir da entrega do produto ou ao fim da execução dos serviços fornecidos – mas somente se o vício for de fácil constatação ou aparente. Mas, se o vício for oculto, de acordo com o Art. 26, § 3°, se o vício for oculto, conta-se o prazo a partir do momento em que o consumidor souber do vício. A teoria em questão se chama teoria do actio nata, que se utiliza nos vícios rebiditórios, mas com aplicação no CDC – sendo aquele diferente dos vícios no produto, porquanto a relação cível é diferente da de consumo.
Diante do exposto, encerra-se a definição e o aprofundamento do vício no produto no âmbito do CDC, indo para o defeito no produto – que causa danos ao consumidor, não se restringindo o defeito apenas no produto, mas atingindo terceiros determinados ou indetermináveis.
1.3 O DEFEITO NO PRODUTO
O Defeito no produto ocorre quando este apresenta um defeito que atinge terceiros – como consta no Art. 12°, do CDC –, o que diferencia o instituto do vício no produto. Presente o defeito no produto ou fato do produto, o Código de Defesa do Consumidor admite o direito de regresso àquele que ressarciu o dano ante o culpado (Art. 13°, § Único da Lei 8.078/1990). Entretanto, é vedada a denunciação da lide para o exercício desse direito, como conta no Art. 88°, do CDC.
Analisar-se-á o § 1° do art. 12 do CDC, que considera algumas formas de defeito no produto pela Lei Consumerista. Diante disso, tem-se as seguintes teses doutrinárias a respeito dos incisos do § 1° do art. 12 do CDC, que são:
a) Defeito de projeto ou projeção: atingem a própria apresentação do produto ou a sua essência, gerando danos independentemente de fatores externos. Por exemplo: o cigarro convencional e o eletrônico, que serão aprofundados ao longo do presente artigo.
b) Defeitos de execução, produção ou fabricação: relativo a falhas de segurança na colocação do produto ou serviço no mercado de consumo.
c) Defeitos de informação ou comercialização: segundo MIRAGEM (2010, p. 369): “aqueles decorrentes da apresentação ou informações insuficientes ou inadequadas sobre a fruição ou riscos.”
Todos os tópicos estão presentes no art. 12, § 1°, incisos I, II e III do CDC – sendo o inciso I- sua apresentação; II- o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III- a época em que foi colocado em circulação.
A respeito dos prazos para se pleitear ação reparatória de danos, está contido no Art. 27° do CDC – decorrente da reparação integral dos danos do Art. 6°, VI – que “prescreve em cinco anos a pretensão à reparação dos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.” Dessa forma, tem-se também como no vício oculto no produto, a teoria do actio nata, ou seja, em que conta a pretensão da reparação dos danos do momento em que o consumidor tem ciência do dano causado e não da data do evento danoso.
Já na questão da solidariedade entre comerciante e fabricante, a responsabilidade daquele é subsidiária perante este, como consta no Art. 13°, incisos I, II e III do CDC, em que a responsabilidade atua na subsidiariedade quando: o fabricante, o construtor, o produtor ou o importador não puderem ser identificados ou quando não conservar adequadamente os produtos perecíveis. Diante disso, diferentemente do vício no produto, em que a responsabilidade objetiva é solidária entre fabricante e comerciante, no fato do produto ela é objetiva subsidiária do comerciante para o fabricante.
Diante do exposto, passa-se ao estudo do tópico a respeito das excludentes de responsabilidade civil pelo CDC.
2.AS EXCLUDENTES DE RESPONSABILIDADE CIVIL PELO CDC
Em primeiro plano, faz-se mister analisar no presente trabalho as excludentes da responsabilidade civil pelo Código de Defesa do Consumidor a fim de se chegar no artigo em questão ao seu cerne, que é a responsabilidade civil pelos danos por defeito do produto advindos do cigarro eletrônico.
Analisar-se-á as excludentes da responsabilidade civil a seguir, quais sejam: as excludentes da não colocação do produto no mercado e da ausência de defeito; a excludente da culpa ou fato exclusivo de terceiro; a excludente da culpa ou fato exclusivo do próprio consumidor (quiçá este é a mais importante para o presente trabalho); o enquadramento do caso fortuito ou força maior, além dos eventos internos e externos e o risco do empreendimento; e, por fim, os riscos do desenvolvimento como excludentes da responsabilidade civil pelo CDC.
2.1 AS EXCLUDENTES DA NÃO COLOCAÇÃO DO PRODUTO NO MERCADO E DA AUSÊNCIA DE DEFEITO
A excludente da não colocação do produto no mercado e da ausência de defeito no produto, encontram-se nos arts. 12°, § 3°, I do CDC, que, de acordo com TARTUCE (2024, p. 206):
“(...) Não haverá dever de indenizar por parte dos fornecedores e prestadores se não houver dano reparável. Como é notório, ausente o dano, ausente a responsabilidade civil, dedução que pode ser retirada, entre outros, do art. 927°, caput, do CC/2002. A verdade é que a ausência de dano não constitui excludente de responsabilidade civil, mas falta de um de seus pressupostos (...).”
Dessa maneira, excluído o dano, ou seja, não estando ele presente, não há que se falar em reparação integral dos danos (Art. 6°, VI, do Código de Defesa do Consumidor), visto que falta um de seus pressupostos da responsabilidade civil, que é o dano, colacionando TARTUCE (2023, p. 470): “Como é notório, para que haja pagamento de indenização, além da prova da culpa ou dolo na conduta é necessário comprovar o dano patrimonial ou extrapatrimonial suportado por alguém. Em regra, não há responsabilidade civil sem dano (...).”
Todavia, deve-se atentar que a reponsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor é objetiva, em regra, havendo apenas exceção em caso de profissionais liberais, quais sejam os que se amoldam ao Art. 966, § Único do CC/2002, que, de acordo com CRUZ (2024, p.107-116), a título de exemplo:
“Em princípio, pois, os profissionais intelectuais (advogados, médicos, professores, etc.) não são considerados empresários, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.”
“(...) Nos casos em que o exercício da profissão intelectual dos sócios das sociedades uni-profissionais (...) constituir elemento de empresa (...), elas serão consideradas sociedades empresárias.”
Dessa forma, diferencia-se o Direito do Consumidor do Direito Civil no que tange à responsabilidade civil pelo dano, um elemento básico desta.
2.2 A EXCLUDENTE DA CULPA OU FATO EXCLUSIVO DE TERCEIROS
Analisar-se-á, neste momento, a excludente da culpa dos fornecedores por fato exclusivo de terceiro. Este é a quebra do nexo de causalidade, em que um terceiro alheio àquela relação jurídica tem relação com o fornecedor, sendo uma relação, podendo ser, de confiança ou de pressuposição – gerando, diante do exposto, a responsabilidade objetiva, como leciona TARTUCE (2024, p. 219-220).
Diz, também, CAVALIERI FILHO (2008, p. 255):
“Terceiro que integra a corrente produtiva, ainda que remotamente, não é terceiro; é fornecedor solidário. Assim, se a enfermeira, por descuido ou intencionalmente, aplica medicamente errado no paciente – ou em dose excessiva – causando-lhe a morte, não haverá nenhuma necessidade do fornecedor do medicamento. O acidente não decorreu de defeito do produto, mas da exclusiva conduta da enfermeira, caso em que deverá responder o hospital por defeito do serviço.”
Dessa forma, tem-se o conceito de fato exclusivo de terceiro, que, segundo TARTUCE (2024, p. 221) a ideia não é próspera na jurisprudência nacional, tendo em vista que há uma estreita ligação de pressuposição entre o produto ou serviço.
Diante da tese exposta pelo presente autor do artigo e pelos doutrinadores citados, ir-se-á para o próximo tópico.
2.3 A EXCLUDENTE DA CULPA OU FATO EXCLUSIVO DO PRÓPRIO CONSUMIDOR
A culpa exclusiva do consumidor ou, com a terminologia mais adequada, o fato exclusivo do consumidor – é outro obstativo do nexo causal que conecta a conduta, seja ela dolosa ou culposa, com o resultado danoso do evento, todavia por parte exclusivamente do consumidor, retirando-se – dessa forma – a culpa do fornecedor.
Faz-se mister analisar a jurisprudência do tópico posterior que será abordado, com a decisão a respeito de culpa exclusiva do consumidor ou fato exclusivo deste, que conecta a conduta daquele por uso excessivo de tabaco após uma cirurgia estética, contraindicada a conduta pelo profissional da saúde que realizou o procedimento cirúrgico:
“Apelação cível. Ação monitória. Realização de cirurgia plástica embelezadora. Obrigação de resultado. Ausência de nexo causal. Culpa exclusiva da paciente. Uso indiscriminado de tabaco. Não havendo o reconhecimento na ação indenizatória (n° 1.06.0000582-0) proposta pela parte demandada (paciente) de defeito na prestação do serviço prestado por parte do autor (médico) e diante da prova inequívoca da realização de cirurgia e do acerto do valor da mesma entre as partes, justo se faz o pagamento da dívida existente por parte da ora apelante. Apelo desprovido. Unânime” (TJRS – Apelação cível 70036200970, Bagé – Quinta Câmara Cível – Rel. Des. Gelson Rolim Stockerm – j. 28.05.2010 – DJERS 09.06.2010).
Diante do julgado do TJRS exposto acima, vê-se que houve uso indiscriminado da substância nicotina, presente no tabaco, contraindicada pelo médico (autor), porém com uma dívida devida da cirurgia que a paciente (demandada) não se dispõe a pagar por ter acusado o autor do processo de culpa. Todavia, pelo uso indiscriminado da substância, cuja contraindicação do médico foi feita, tem-se a escusa de responsabilidade do autor, porquanto foi excludente de responsabilidade cível por fato da própria vítima.
2.4 O ENQUADRAMENTO EM CASO FORTUIPT E FORÇA MAIOR COMO EXCLUDENTES DA RESPONSABILIDADE CIVIL NAS RELAÇÕES DE CONSUMO, ALÉM DOS EVENTOS INTERNOS E EXTERNOS
O caso fortuito é um evento imprevisível que pode ocorrer, segundo a melhor doutrina e a jurisprudência nacionais, por fatores internos ou externos. Estes são excludentes de responsabilidade civil, já aqueles são de responsabilidade objetiva dos fornecedores não relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor.
“O primeiro – fortuito interno – é aquele que tem relação com o negócio desenvolvido, não excluindo a responsabilização civil. O segundo – fortuito externo – é totalmente estranho ou alheio ao negócio, excluindo o dever de indenizar” (TARTUCE. 2024, p. 226).
Já a força maior, é um evento previsível, todavia impossível de ser evitado. Dessa maneira, também admite sua forma interna e externa, sendo a primeira responsabilidade objetiva sem exclusão deste, e a segunda com exclusão da responsabilidade civil no âmbito consumerista.
3.O CIGARRO COMO DEFEITO NO PRODUTO, A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA NACIONAIS
O cigarro era tido como um produto glamourizado e elegante, com diversas propagandas ou publicidades – hoje consideradas abusivas pelo Art. 37°, do CDC – em que se endeusava o fumo. Todavia, na atualidade existe um forte antitabagismo, a moda contra o cigarro e pró-saúde, reduzindo o número de fumantes – mas ainda assim, falecendo vários fumantes do século XX, pelo uso excessivo do tabaco. Um importante motor do tabagismo foram o american way of life – responsável por difundir na indústria cultural, nos termos de ADORNO (2021), o tabagismo (cinema, literatura, rádio, televisão e etc.) –, o enorme lucro das indústrias tabagistas como a Marlboro, Lucky Stricke e Souza Cruz, que lucram em cima da morte de milhares de pessoas.
Nas lições de TARTUCE (2024, p. 248):
“Na verdade, parece-me que a permissão para o uso totalmente livre e indiscriminado do cigarro foi um erro histórico da humanidade, por óbvio influenciado por questões econômicas e pelo poderia político latente das empresas de tabaco. Trata-se de um erro que necessita ser corrigido. A afirmação pode parecer forte, sobretudo para as pessoas que compõe as gerações anteriores. Entretanto, para as gerações sucessivas, o erro é perfeitamente perceptível, em especial se for considerada a cultura contemporânea da saúde e do bem-estar de vida (wellness life).”
Diante disso, vê-se que o cigarro destruiu e destrói milhares de vidas. Como colaciona BOEIRA (2002, p. 86) o cigarro é responsável por doenças crônicas como câncer de pulmão, câncer de estômago, intestino, fígado, mama, esôfago, boca, colo do útero, próstata e bexiga. Dessa forma, fica claro diante da exposição de Sérgio Luís Boeira, com sua tese de doutorado da UFSC de 2002, os males causados pelo cigarro, atualmente conhecidos por toda a população.
Outrossim, decorrente das mortes causadas pelo tabagismo, vê-se que na jurisprudência nacional o tema é controvertido, como alguns exemplos de tribunais que atribuem a culpa exclusiva da vítima (TJRJ – Acórdão 2005.001.40350 – Quarta Câmara Cível – Rel. Des. Mario dos Santos Paulo – j. 07.02.2006), outros que apontam a licitude do objeto comercializado (TJDF – Recurso n° 2001.01.1.012900-6 – Acórdão 313.218 – Segunda Turma Cível – Rel. Des. Fábio Eduardo Marques – DJDFTE 14.07.2008, p. 87), já outros tribunais aludem ao livre arbítrio do fumante (TJSC – Acórdão 2005.029372-7, Criciúma – Segunda Câmara de Direito Civil – Rel. Des. Newton Janke – DJSC 27.11.2008, p.72).
Os argumentos apontados a contra a indenização cível pelas empresas tabagistas pelo tratamento doloroso e porventura pelo óbito dos fumantes são:
a) Ausência de nexo de causalidade entre o cigarro e o dano;
b) Licitude da atividade e exercício regular de direito por parte da empresa;
c) Livre-arbítrio;
d) Vedação do venire contra factum proprium;
e) Culpa exclusiva da vítima.
Diante dos argumentos apresentados, refutar-se-á cada um deles utilizando da melhor doutrina contemporânea.
O primeiro ponto é a ausência de nexo de causalidade entre o cigarro e o dano. Dessa forma, contra-argumentando TARTUCE (2024, p. 260):
“A respeito do nexo causal, insta deixar bem claro que a responsabilidade civil das empresas de tabaco é objetiva, diante da comum aplicação do Código de Defesa do Consumidor. De maneira subsidiária, em diálogo das fontes, pode ainda ser utilizado o art. 931, do Código Civil, que trata da responsabilidade objetiva referente aos produtos colocados em circulação. Desse modo, não restam dúvidas de que o cigarro é um produto defeituoso (...).
Em reforço, podem ainda ser subsumidos os dispositivos consumeristas que tratam da proteção da saúde e da segurança dos consumidores (arts. 8° a 10 da Lei 8.078;1990).”
Desse modo, o cigarro é um produto defeituoso, no sentido de fato do produto, em que as empresas, no âmbito do CDC, devem sim serem responsabilizadas objetivamente por colocar tais produtos no mercado, visto que elas apresentam um vício de criação – o que contraria os dispositivos dos artigos 8° a 10° do Código de Defesa do Consumidor –, pois gera danos, com nexo de causalidade, entre o produto apresentado no mercado e o resultado, o dano ao bem jurídico da vida – este tutelado pela Constituição Federal de 1988 –, gerando sim nexo de causalidade.
Diz ainda TARTUCE (2024, p. 260): “Essa é a essência contemporânea do conceito de defeito: o dano causado ao consumidor.”
A respeito da atividade regular de um direito das indústrias tabagistas, que não agem na ilicitude ao comercializar seus produtos, alega TARTUCE (2024, p. 261) que o direito civil brasileiro autoriza a responsabilidade civil por atos lícitos, que tenham nexo de causalidade. Aduz ainda:
“Em suma, comercializar cigarros pode até ser considerado lícito, diante de um erro histórico cometido pela humanidade. Porém, comercializar o produto sem as corretas informações de seus males – já conhecidos pelas próprias empresas – gerando danos, configura um ilícito por equiparação (art. 927, caput, do Código Civil) [...]” (TARTUCE, p. 262).
Ainda que seja lícita a produção e a comercialização de cigarros, o art. 927, caput, do CC/2002, deve ser reparado o dano causado – inclusive pelo Art. 6°, VI do CDC – o causador dele, mesmo que a atividade seja lícita, será ilícita por equiparação – bystander.
No tocante ao livre arbítrio, há uma interessantíssima questão, quiçá política, doutrinária a respeito. O livre-arbítrio, na pós-modernidade, não mais existe, dando espaço para o dirigismo do Estado na proteção dos vulneráveis e dos valores fundamentais (TARTUCE, 2024, p.263).
Sobre a vedação do contraditório entre as partes, a boa-fé objetiva não vence preceitos de ordem pública, como a saúde pública, porquanto a CF/1988 está, dentro da Teoria Geral do Direito, de inspiração Kelseniana, acima das normas ordinárias – como o próprio Código Civil.
Também, o último ponto é a culpa exclusiva da vítima. Resolve-se tal questão com a teoria do risco-concorrente, pois a empresa tabagista tem um risco-proveito ao comercializar o tabaco em cigarros, fixando-se a indenização via ponderação das circunstâncias fáticas e a assunção do risco assumido pelas partes – além do exposto, o Art. 17 do CDC colaciona que os fumantes passivos (que ficam perto dos fumantes ativos, sendo influenciados biologicamente pelo tabaco ao inalar a fumaça destes) são consumidores bystanders ou por equiparação.
Diante dos argumentos expostos, o presente autor do artigo em questão é completamente favorável às teses adotadas por Flávio Tartuce a despeito do antitabagismo, porquanto o combate a este é uma questão de saúde pública – preceito este de ordem pública, constitucional e acima da pirâmide Kelseniana do ordenamento jurídico brasileiro –, devendo as empresas tabagistas serem, sim, responsabilizadas objetivamente pelo Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que há um risco-proveito da empresa tabagista no fornecimento dos cigarros para o público – inclusive a oferta vinculando diretamente os fornecedores no âmbito consumerista – e devendo o Estado intervir a fim de se garantir os valores fundamentais do Estado Democrático de Direito aliado à proteção dos vulneráveis.
4.O CIGARRO ELETRÔNICO: DEVEM SER RESPONSABILIZADAS AS EMPRESAS TABAGISTAS PELO DEFEITO NO PRODUTO?
Muito em voga na atualidade está o cigarro eletrônico, que, como citado na introdução, vem causando doenças graves em jovens da geração Z, como a EVALI – matando esta 48 enfermos nos Estados Unidos. Dessa forma, fica o questionamento: devem as empresas produtoras e comercializadoras de cigarros eletrônicos serem responsabilizadas objetivamente, no âmbito consumerista, pelos danos causados aos consumidores?
Primeiramente, cabe analisar, que os “vapes” são objetos ilícitos, de acordo com a regulamentação da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Dessa forma, mesmo com a proibição da autarquia, os ecigars ainda são comercializados nas redes sociais, com publicidade abusiva – nos termos do art. 37°, §§ 1° e 3° do CDC – porquanto ainda permanece a venda a publicidade, mesmo estando o produto como ilícito na decisão da ANVISA, mesmo na ilicitude do objeto – tornando o negócio jurídico, na tese do eminente jurista Pontes de Miranda, inválido, todavia ele se encontra eficaz, o que não deveria ocorrer.
Em segundo plano, vale ressaltar ainda, que a aplica-se na área do CDC a responsabilidade objetiva – devido ao produto ser inerentemente defeituoso –, ou seja, sem culpa – por causa da vulnerabilidade do consumidor constante no Art. 4, inc. I da Lei 8.078/1990, pois as indústrias tabagistas fabricantes de “pods” ferem os Arts. 8° a 10° do CDC, que versam sobre o fornecimento de produtos ou serviços que trazem prejuízos à saúde dos consumidores. Também, o nexo de causalidade é existente na relação entre a conduta, seja dolosa ou culposa, das grandes marcas tabagistas de “ecigaretes”, e o dano causado – de forma mais rápida que o cigarro convencional – aos usuários de nicotina.
Diante disso, apesar do produto ser lícito, isto não exclui a responsabilidade civil pelo defeito inerente ao produto, pois o CC/2002 prevê que, apesar de ser lícito, a informação inadequada que fere o Art. 31, do CDC – pois a comercialização não é regulamentada, porque é proibida, o que faz com que não tenha a mesma regulamentação e as informações a respeito do produto que o cigarro convencional tem. Além disso, há a questão do risco-proveito na comercialização dos “vapes”, porque as empresas de cigarros eletrônicos tiram um proveito com a sua comercialização, o que prejudica os consumidores.
Também, finalmente, vale ressaltar que não há verdadeiro livre-arbítrio na sociedade pós-moderna, porquanto o que predomina é o dirigismo estatal, este resguardando os vulneráveis e os valores fundamentais da República Federativa do Brasil.
CONCLUSÃO
Diante do exposto, tal problema requer uma solução. O presente autor sugere que as empresas tabagistas produtoras de cigarros eletrônicos devem ser responsabilizadas como os cigarros convencionais, tendo em vista que a nicotina é a principal substância presente nos cigarros comuns (seja os de palha ou de filtro branco) e os eletrônicos, cujas doenças que ambos causam serem similares e, além disso, aplicar-se analogia entre ambos os julgados – os cigarros convencionais para os cigarros eletrônicos.
Por fim, portanto, cabe também, nos termos do Art. 1° do CDC – o princípio do protecionismo do consumidor – dá competência para o Ministério Público agir, tendo em vista que ele é o fiscal da sociedade, com multas para os fabricantes de cigarros eletrônicos, junto à união dos Procons brasileiros em ação civil pública (nos termos de sua Lei 7,347/1985) que em seu Art. 1° colaciona que em demandas coletivas envolvendo danos materiais e morais, cabe a intervenção do Ministério Público;
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Graduando em Direito UNIFAGOC, escritor de artigos científicos nas áreas Direito do Consumidor, Direito Empresarial, Direito Civil e Direito Econômico.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GARCIA, Erick Labanca. Responsabilidade civil por defeito no produto: os cigarros eletrônicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 nov 2024, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/ArtigOs/67083/responsabilidade-civil-por-defeito-no-produto-os-cigarros-eletrnicos. Acesso em: 23 dez 2024.
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