RESUMO: A presente pesquisa faz análise da Lei nº 13.718/2018, que inseriu o novo delito de importunação sexual, quanto à sua função de preencher o vácuo normativo. O objetivo geral é analisar as divergências verificadas entre os delitos de estupro de vulnerável e importunação sexual, bem como nas doutrinas. Além disto, esta pesquisa apresenta objetivos outros, como identificar a importunação sexual, além de buscar os elementos que permitem as divergências doutrinárias, pesquisar as divergências entre os delitos de estupro de vulnerável e enfatizar a importância dos elementos que permitem as divergências. Este artigo tem como metodologia de trabalho, método qualitativo, explicativo e bibliográfico. Por fim, restou demonstrado os principais pontos e divergências no ordenamento jurídico brasileiro sobre o tema exposto.
PALAVRAS-CHAVE: Importunação sexual. Estupro de vulnerável. Controvérsias de normas.
ABSTRACT: This research analyzes Law N. 13.718/2018, which inserted the new offense of sexual harassment, as to its function of filling the normative vacuum. The general objective is to analyze the divergences between the offenses of vulnerable rape and sexual harassment, as well as in doctrines. In addition, this research has other objectives, such as identifying sexual harassment, in addition to seeking the elements that allow for doctrinal differences, researching the differences between the offenses of rape of the vulnerable and emphasizing the importance of the elements that allow for the differences. This article uses a qualitative, explanatory and bibliographic method as a working methodology. Finally, the main points and divergences in the Brazilian legal system on the subject exposed were demonstrated.
KEYWORDS: Sexual harassment; vulnerable rape; Norm disputes.
INTRODUÇÃO
O Direito Penal, no cenário jurídico contemporâneo, está intrinsecamente envolvido com o exercício da pretensão punitiva do Estado, a qual surge pela ofensa de um bem jurídico, sendo características inerentes a este ramo do direito público a subsidiariedade e a fragmentariedade, que decorrem diretamente dos princípios da intervenção mínima, da adequação social e da lesividade.
Desse modo, é possível afirmar que o Direito Penal é uma resposta ao estado de beligerância próprio à vida em sociedade, e busca assim a paz social, caracterizada pela ausência de ofensas aos bens jurídicos.
Todavia o Código Penal Brasileiro vigente, por ser um código antigo concebido em 1940, exibe algumas lacunas normativas, visto que a sociedade como um todo sofreu diversas mudanças ao longo de tantas décadas. Nesse contexto, a inserção de novas condutas criminosas ao conjunto penal pré-existente acaba, por vezes, gerando certas inquietudes relacionadas com eventuais desproporcionalidades verificadas em relação à quantidade e/ou à qualidade das penas imputadas.
Assim é que, desde a alteração do Código Penal em 2009, passaram a existir divergências entre os doutrinadores acerca da pena do crime de estupro de vulnerável, por perceberem a sua desproporcionalidade quando aplicada na hipótese de prática de atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Isso restou escancarado em 2017 e 2018, com casos de crimes contra a dignidade sexual, divulgados pela mídia e que ficaram conhecidos como os casos do metrô de São Paulo.
De tal modo, com a vigência da nova Lei Nº 13.718/18 e a inclusão do crime de importunação sexual, abre-se a possibilidade de afastar a aplicação de uma sanção extremamente rigorosa a atos libidinosos de menor gravidade, aplicando penas intermediárias, bem como evitando impunidades e injustiças no tocante à restrição da liberdade individual.
A Lei Nº 13.718/18 do Crime de Importunação Sexual introduziu no ordenamento jurídico diversas modificações de forma a criar um crime intermediário entre o delito de Importunação ofensiva ao pudor e o crime hediondo de Estupro, gerando muita divergência quanto à tipificação destes crimes, tanto na doutrina quanto na jurisprudência.
É imprescindível o entendimento de ambos para melhor utilização dos tipos penais e sua aplicação de forma correta, uma vez que a aludida lei altera a ação penal dos crimes previstos nos Capítulos I e II do Título VI, do Código Penal, afastando a regra da ação penal pública condicionada e adotando em geral a ação penal pública incondicionada, ainda que a vítima seja maior e capaz. Enfim altera e acrescenta novas causas de aumento de pena para os crimes contra a dignidade sexual e, especialmente, para os crimes de estupro e estupro de vulnerável.
Revoga, ainda, expressamente o artigo 61 da Lei das Contravenções Penais, ou seja, a Contravenção Penal de “Importunação Ofensiva ao Pudor”. Diante deste contexto e mediante o crime de importunação sexual, busca-se a importância dos elementos que permitem as divergências entre os delitos de estupro de vulnerável e importunação sexual, bem como a divergências doutrinárias acerca deste objeto.
O Código Penal Brasileiro atual, por ser um código antigo concebido em 1940, apresenta algumas lacunas normativas, visto que a sociedade como um todo sofreu diversas mudanças ao longo de tantas décadas. Uma delas foi escancarada em 2017 e 2018 com casos de crimes contra a dignidade sexual, relacionados a masturbação dentro de transportes públicos, os quais não possuíam tipos penais adequados para subsunção.
Diante desse problema, foi aprovada a Lei 13.718 em 25 de setembro de 2018, a qual alterou alguns crimes contra liberdade sexual e criou novos tipos penais como o art. 215- A e o art. 218-C, com o intuito de melhor subsumir crimes como os ocorridos nos transportes públicos, diferenciando-os do crime de estupro e da contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor.
Sendo assim, há uma clara relevância jurídica da análise da nova lei quanto a sua adequação perante os casos concretos sob a ótica da proporcionalidade e taxatividade, sendo um ponto de grande polêmica social e jurídica, que chama atenção por representar preocupação no cotidiano de muitos brasileiros e que ainda não apresenta um respaldo jurídico adequado, tornando-se alvo de debates, despertando o interesse do autor em razão do interesse pelo direito penal e pelo amplo debate jurídico-social a ser explorado. É indiscutível, portanto, a relevância do tema. Nesse pouco tempo de vigor da lei, mostram-se recorrentes nos tribunais estaduais e em tribunal superior decisões oscilantes.
Por meio da classificação doutrinária, serão elucidadas as condutas da Importunação Sexual e Estupro de vulnerável, dispostos nos arts. 215-A e 217-A do Código Penal, destacando separadamente, alguns aspectos para consideração do ato ilícito.
Desse modo, o objetivo geral deste artigo é analisar as divergências verificadas entre os delitos de estupro de vulnerável e importunação sexual, bem como suas doutrinas. Além disto, esta pesquisa apresenta objetivos outros, como identificar a importunação sexual, além de buscar os elementos que permitem as divergências doutrinárias, pesquisar as divergências entre os delitos de estupro de vulnerável e enfatizar a importância dos elementos que permitem as divergências.
Este artigo tem como metodologia de trabalho, método qualitativo, explicativo e bibliográfico. A atividade básica na pesquisa bibliográfica é a investigação em material teórico sobre o assunto de interesse e é utilizada como ponto de partida para todos os tipos de pesquisa, facilitando a investigação através do estudo do conhecimento armazenado tradicionalmente em livros e documentos, foram consultadas várias literaturas relativas ao assunto em estudo, artigos publicados na internet e que possibilitaram que este trabalho tomasse forma para ser fundamentado.
Por fim, buscar-se-á encerrar o presente estudo com as considerações finais, demonstrando os principais pontos e divergências no ordenamento jurídico brasileiro sobre o tema exposto.
1. DOS CRIMES SEXUAIS NA LEGISLAÇÃO VIGENTE
Desde a modificação do Código Penal em 2009, passa a existir divergências entre os doutrinadores acerca da pena do crime de estupro de vulnerável, por entenderem ser desproporcional a depender de casos concretos, em atos libidinosos diversos da conjunção carnal.
Desta maneira, com a vigência da nova Lei 13.718/18 e a inclusão do crime de importunação sexual, abre-se a possibilidade de afastar a aplicação de uma sanção extremamente rigorosa a atos libidinosos de menor gravidade, aplicando penas intermediárias, bem como evitando impunidades e injustiças no tocante à restrição da liberdade individual.
Em 2017, uma grande polêmica acerca dos crimes sexuais teve início após um caso específico em São Paulo, além de alguns outros casos semelhantes, no qual um homem ejaculou sobre uma mulher dentro de um ônibus coletivo em São Paulo, conduta essa que não estava detalhadamente tipificada no Código Penal Brasileiro. Como anteriormente à Lei Nº 13.718/18 ainda não existia o delito de Importunação sexual, a conduta seria classificada ou como estupro, ou como contravenção de importunação ofensiva ao pudor, já que não havia um crime de potencial ofensivo intermediário.
Assim, tais casos em 2017 explicitaram uma lacuna normativa a ser urgentemente solucionada em razão da desproporcionalidade das penas a serem aplicadas na época, sendo severas ou brandas demais. Em virtude dessa lacuna, o legislador propôs o Projeto de Lei Nº 5.252/2016, o qual, dentre outras alterações, criava um novo delito: a importunação sexual, no art. 215-A, do Código Penal Brasileiro. Assim, aprovado pelo Congresso Nacional, foi encaminhado para sanção presencial e em seguida sua publicação. Porém, ao ser publicada a nova lei, a Lei Nº 13.718/18, o Poder Executivo realizou uma alteração relevante na redação do art. 215-A.
De tal modo, segundo Silva (2016), havia uma ampla divergência doutrinária acerca da tipificação de atos libidinosos cometidos sem violência ou grave ameaça, tendo em vista a existência de um verdadeiro precipício entre as sanções aos crimes possíveis de serem enquadrados ao caso, sendo diametralmente opostas, uma tanto quanto rigorosa e a outra completamente insignificante.
No crime de importunação sexual, pune-se o agente que praticar ato libidinoso contra alguém e sem sua anuência, com intuito de satisfazer a própria lascívia ou de outrem. Consoante preceitua o artigo 215-A do Código Penal:
Art. 215-A. Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro: Pena – reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o ato não constitui crime mais grave.
De tal modo, conforme Cunha (2019), trata-se de elementares do tipo penal a prática de ato libidinoso em desfavor de alguém, a ausência de consentimento da vítima e a finalidade do agente em satisfazer seu desejo ou de terceiro.
De acordo com o doutrinador Rogério Sanches Cunha, libido é o desejo sexual. Assim, ato libidinoso é toda conduta de satisfação do desejo ou apetite sexual da pessoa, desde que não consista em conjunção carnal, isto é, penetração ou cópula (CUNHA, 2019). Para configurar o elemento do delito, tal ação deve ser dirigida a alguém, seja uma pessoa determinada ou um grupo de pessoas, logo o ato deve ter destinatário específico (NUCCI, 2019).
Complementando, outro elementar do tipo penal do delito de importunação sexual é a falta de consentimento do ofendido, assim, a contrário sensu o assentimento da vítima configura excludente de tipicidade, tornando um fato atípico. Ademais, o crime foi instituído com o objetivo de proteger a liberdade e dignidade sexual das pessoas, no caso de consentimento dos envolvidos, não haverá crime, mas legítimo exercício da liberdade sexual (NUCCI, 2019). É importante destacar que a regra da atipicidade da conduta, é passível de debate. Há quem entenda que se tratando de pessoa vulnerável, seria impossível consentir validamente, ocorrendo, em tese, estupro de vulnerável. Lado outro, se o agente se utiliza de violência ou grave ameaça restaria tipificado o crime de estupro.
Segundo Costa (2020), os crimes contra dignidade sexual, com o texto originário do Código Penal, possuíam ação penal privada, com algumas exceções em que ela passaria a ser condicionada à representação ou incondicionada, a depender da circunstância excepcional. Posteriormente, com a redação de 2009 anterior à atual, os crimes sexuais passaram a possuir ação penal condicional à representação como regra, salvo algumas exceções em que se tornava incondicionada, como nos casos de vítima menor de 18 anos ou vítima vulnerável, crime praticado mediante violência real ou que tenha resultado lesão corporal grave ou morte, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) na Súmula 608, a qual estabelece que o crime de estupro praticado mediante violência real seja procedido via ação penal pública incondicionada, e inúmero julgados dos tribunais pátrios:
[...] 2. A ação penal nos crimes contra a liberdade sexual praticados mediante violência real, antes ou depois do advento da Lei 12.015/2009, tem natureza pública incondicionada. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, diante da constatação de que os delitos de estupro, em parcela significativa, são cometidos mediante violência, e 15 procurando amparar, mais ainda, a honra das vítimas desses crimes, aderiu à posição de crime de ação pública incondicionada, que veio a ser cristalizada na Súmula 608, em pleno vigor. 3. Para fins de caracterização de violência real em crimes de estupro, é dispensável a ocorrência de lesões corporais. (HC 125360, rel. min. Alexandre de Moraes, 1ª T, j.27-02-2018, DJE 65 de 06-04- 2018)
[...] 13. O art. 225 do Código Penal, na redação anterior à Lei 12.015/2009, enunciava que os crimes contra a liberdade sexual, praticados contra crianças ou adolescentes, só se processavam por meio de ação penal privada. Contudo, em duas situações específicas, ao Ministério Público caberia a tarefa de propor a ação penal: i) no caso de vítima pobre; ou ii) quando o crime fosse praticado com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador. 14. A possibilidade do ajuizamento da ação penal pública nos casos envolvendo violência sexual contra criança ou adolescente sempre suscitou intensos debates na doutrina e na jurisprudência. 15. E o fato é que a Lei 12.015/2009 modificou o tratamento da matéria, passando a prever a ação penal pública incondicionada nas hipóteses de violência sexual contra menor de 18 anos. Veja-se, a propósito, a nova redação do art. 225 do Código Penal: "Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável." 16. Ademais, conforme lembrado pelo Relator originário, a própria Súmula 608 do STF admitia ainda uma terceira hipótese de propositura da ação penal pública incondicionada no caso de crime de estupro: "No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada”. (HC 123.971, rel. min. Teori Zavascki, red. p/ o ac. min. Roberto Barroso, P, j. 25- 2-2016, DJE 123 15-6-2016)
Portanto, conforme a Súmula 608 do STF e os julgados citados anteriormente, o crime de estupro, praticado mediante violência real, era submetido à ação penal pública incondicionada antes mesmo da nova redação da Lei Nº 13.718/18, a qual reforçou ainda mais o enunciado da súmula em tela. Porém, com a nova lei de 2018, não só os crimes de estupro, especificamente aqueles cometidos com violência real, seriam submetidos a ação penal pública incondicionada, senão todos os crimes dispostos nos capítulos I e II do Título VI. Na prática, acaba aplicando-se a ação penal pública incondicionada a todos os crimes sexuais, em virtude do artigo 100 do Código Penal, o qual dispõe que “a ação penal será pública, salvo quando a lei expressamente declarar como privativa do ofendido”.
Com o advento da Lei Nº 12.015/09 o legislador escolheu por revogar o artigo 214 do Código Penal que previa:
Art. 214 - constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Pena - reclusão de dois a sete anos. Parágrafo único. Se o ofendido é menor de catorze anos: Pena - reclusão, de seis a dez anos (sem grifo no original).
Revogou também o artigo 224 do mesmo Código que complementava a ante mencionada norma ao constar que era presumida a violência, se a vítima não fosse maior de catorze anos, fosse alienada ou débil mental e o agente conhecia essa circunstância ou não poderia por qualquer outra causa oferecer resistência.
Desta maneira, com a inclusão do artigo 217- A do Código Penal, foi retirada a elementar referente à necessidade de o ato ser praticado mediante violência ou grave ameaça, seja ela real ou presumida, para a caracterização do delito. Nessa senda, há a presunção de vulnerabilidade, analisada objetivamente, ou seja, sem avaliar a casuística e o discernimento da vítima, bem como sua vida sexual pregressa (CUNHA, 2017).
Ademais, passou a ser um tipo misto alternativo, ao tratar como condutas incriminadoras a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso, podendo ser isoladas ou cumuladas, implicando como um único crime, desde que sejam praticados no mesmo local e hora (NUCCI, 2009).
Tendo como base os ensinamentos de Guilherme de Souza Nucci, o delito de estupro de vulnerável se trata de um crime comum, haja vista não demandar um sujeito ativo especial, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Outrossim, é um delito material, ou seja, exige um resultado naturalístico consistente no constrangimento da liberdade sexual do vulnerável para a sua consumação. Ademais, tem a forma de execução livre, podendo ser cometido por meio de qualquer ato libidinoso (NUCCI, 2019).
Pune-se a título de dolo, devendo o agente ter plena consciência de que age contra pessoa vulnerável (CUNHA, 2019). Tendo em visto que o erro quanto à vulnerabilidade da vítima isenta-o de pena, excluindo o próprio tipo penal, em consonância com o disposto no artigo 20 do Código Penal.
A norma penal pune aquele que tem conjunção carnal ou pratica outro ato libidinoso diverso com pessoa menor de 14 (quatorze) anos ou por doença mental é incapaz de discernir para prática do ato ou por qualquer outra causa não tenha condições de oferecer resistência (SALIM e AZEVEDO, 2017).
São elementares desse crime a conjunção carnal ou outro ato libidinoso e o sujeito passivo em estado de vulnerabilidade presumida (CAPEZ, 2019). No tocante à conjunção carnal, esta pode ser entendida como a cópula vagínica, isto é, a introdução do pênis na cavidade vaginal da mulher. Em relação ao outro verbo nuclear do tipo “praticar” ato libidinoso diverso, este será tratado em um tópico específico. Ademais, a norma penal exige para tipificação do delito que o sujeito passivo seja vulnerável na data dos fatos. O doutrinador Fernando Capez explica que vulnerável é toda pessoa em situação de fragilidade ou perigo, neste aspecto a lei não alude sobre a capacidade de consentir ou a maturidade sexual da vítima, mas ao fato de possuir uma maior fraqueza seja moral, fisiológica, social, biológica ou cultural (CAPEZ, 2019). Nesse ponto, o legislador delimita de forma objetiva o estado de vulnerabilidade dos menores de 14 anos.
Ao analisar uma norma jurídica, não se deve limitar ao preceito frio e literal da lei, sendo necessário amoldar o caso fático aos vetores de interpretação constantes nos princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade, a fim de garantir na atuação estatal através de seu jus puniendi uma pena justa e eficaz, resolvendo possíveis controvérsias que possam surgir em casos concretos.
Com o objetivo de averiguar as decisões majoritárias, bem como os fundamentos utilizados pelos Tribunais em seus julgamentos acerca da possibilidade de desclassificar o crime de estupro de vulnerável para o crime de importunação sexual, restará minudenciar os resultados obtidos, bem como ponderar sobre as decisões. Consoante entendimento do Tribunal de Justiça do Distrito Federal em decisão de Revisão Criminal não seria possível a desclassificação da figura prevista no artigo 217-A do Código Penal para a do artigo 215-A do mesmo dispositivo:
REVISÃO CRIMINAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA IMPORTUNAÇÃO SEXUAL. LEI N. 13.718/18. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. IMPOSSIBILIDADE. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL PRATICADOS COM MENOR DE 14 ANOS. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA E GRAVE AMEAÇA. CONDUTA QUE SE AMOLDA AO TIPO PENAL DO ARTIGO 217-A, DO CÓDIGO PENAL. PEDIDO REVISIONAL IMPROCEDENTE. 1. O artigo 215-A, introduzido pela Lei nº 13.718/18, tipificou o crime de importunação sexual que prevê penas de um a cinco anos para quem pratica contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Em seu preceito secundário, o legislador previu expressamente a aplicação subsidiária da norma às condutas que não constituam crimes mais graves. 2. Os atos libidinosos praticados pelo requerente com menor de 14 (quatorze) anos, consistentes em tirar suas roupas e a dela, passar os dedos na genitália da criança e chupar seus mamilos a ponto de deixar vestígios constatados em laudo pericial não se subsumem à mera importunação sexual, mas em conduta que se amolda ao tipo penal do artigo 217-A, do Código Penal, razão pela qual não prospera o pedido de aplicação da lei mais benéfica com a consequente desclassificação do crime para o previsto no artigo 215- A, da Lei nº 13.718/18. 3. Revisão criminal julgada improcedente (TJ-DF 07214757220188070000 - Segredo de Justiça 0721475-72.2018.8.07.0000, Relator: Demetrius Gomes Cavalcanti. Data de Julgamento: 08/07/2019, Câmara Criminal, Data de Publicação: Publicado no PJe: 12/07/2019)
Nesse sentido, em decisão unânime em consonância com o relator, este utilizou como fundamento a gravidade do ato libidinoso empregado pelo revisionário, além da presunção de violência ou grave ameaça tendo em vista a idade da vítima na data dos fatos, qual seja: 07 anos. No caso em análise, o agente do crime praticou condutas invasivas ao se despir e acariciar as partes íntimas da infante com intuito lascivo, esbarrando no princípio da subsidiariedade expressa, cujas circunstâncias fáticas levariam a tipificação de um crime mais grave. Noutro sentido, o mesmo Tribunal de Justiça do Distrito Federal em decisão contrária entendeu pela desclassificação para o crime de importunação sexual:
APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. DESCLASSIFICAÇÃO. IMPORTUNAÇÃO SEXUAL. CP, ART. 215-A. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO 1. Conforme se depreende das provas colacionadas aos autos, tem-se que o apelante praticou atos libidinosos, diversos da conjunção carnal, não com a finalidade de satisfação da própria lascívia, mas valendo-se das circunstâncias minuciosamente narradas, em especial da confiança nele depositada pelos genitores da menor, com o fim de apenas importunar a menor. 2. A conduta delituosa perpetrada pelo apelante amolda-se ao crime de importunação sexual, razão pela qual desclassifico a conduta para esse crime (CP, art. 215- A). 3. Recurso parcialmente provido (TJ-DF 20170910026634 - Segredo de Justiça 0002592-28.2017.8.07.0009, Relator: J.J. Costa Carvalho, Data de Julgamento: 30/05/2019, 1ª TURMA CRIMINAL, Data de Publicação: Publicado no DJE: 13/06/2019)
Adveio divergência quanto à possibilidade de desclassificação, tendo prevalecido o princípio da proporcionalidade, classificando a conduta como o crime de importunação sexual, tendo em vista que na situação abordada o agente se limitou ao toque por cima da vestimenta do menor. No julgado supracitado, o desembargador salientou que o fato de se tratar de vítima criança, deverá ser valorado na culpabilidade ou nas circunstâncias do crime no momento da fixação da pena-base, consoante pressupõe o artigo 59 10 do Código Penal. Em contrapartida, o Superior Tribunal de Justiça na sexta Turma deliberou pelo desprovimento do pleito defensivo de aplicação do artigo 215-A do Código Penal:
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. ART. 217-A DO CÓDIGO PENAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O TIPO PREVISTO NO ART. 65 DO DECRETO-LEI N.º 3.688/1941. ATOS LIBIDINOSOS DIVERSOS DA CONJUNÇÃO CARNAL. CARACTERIZAÇÃO DO DELITO DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL. FATOS INCONTROVERSOS. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ENUNCIADO N.º 7 DA SÚMULA DESTA CORTE. PLEITO DE APLICAÇÃO DO ART. 215-A: CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL. IMPOSSIBILIDADE. VIOLÊNCIA PRESUMIDA. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. (...) 2. No caso, a Corte local ressaltou expressamente no acórdão a existência de autoria e materialidade, ao reconhecer que “[...] aproveitou-se da ausência de qualquer outra pessoa no local para passar o dedo na vagina da criança” (fl. 274), ficando incontroversa a conduta praticada pelo Agravante. 3. A Lei n.º 13.718, de 24 de setembro 2018, entre outras inovações, tipificou o crime de importunação sexual, punindo-o de forma mais branda do que o estupro, na forma de praticar ato libidinoso, sem violência ou grave ameaça. 4. Contudo, esta Corte Superior de Justiça firmou o entendimento no sentido de que a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso configura o crime previsto no art. 217-A do Código Penal, independentemente de violência ou grave ameaça, bem como de eventual consentimento da vítima. Precedentes. 5. Agravo regimental desprovido (AgRg no AREsp 1361865/ MG, Rel. Ministra Laurita Vaz, SEXTA TURMA, julgado em 07/02/2019, DJe 01/03/2019)
De tal modo, depreende-se que prevalece no Superior Tribunal de Justiça o entendimento pela impossibilidade de desclassificação do crime de estupro de vulnerável para o de importunação sexual, pois naquele existiria a presunção de violência ou grave ameaça na conduta do agente e neste não há a previsão dessa coação física ou psicológica. Ocorre que, após o advento da Lei 12.015/09, lei esta já mencionada em capítulo apropriado, foi revogada a norma que previa ser presumida a violência, tornando presumida apenas a vulnerabilidade do infante menor de 14 anos, logo, o impossibilitando de consentir validamente qualquer ato sexual. Desse modo, não há a previsão de violência nos tipos penais citados, porém é compatível à figura do não consentimento da vítima, seja ele presumido, expresso ou tácito.
Outrossim, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal indeferiu a ordem do Habeas Corpus para manter a condenação original por estupro de vulnerável do impetrante, consoante matéria veiculada ao site do STF:
Por maioria de votos, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do Habeas Corpus (HC) 134591 e manteve a condenação de um adulto em razão de um beijo lascivo dado em uma criança de cinco anos de idade. (...) O réu foi condenado pelo juízo da 1ª Vara Criminal de Igarapava (SP) a oito anos de reclusão, em regime inicial semiaberto, por estupro de vulnerável (artigo 217-A do Código Penal). Em exame de apelação penal, o Tribunal de Justiça estadual (TJ-SP) desqualificou o ato para a contravenção penal de molestamento (artigo 65 da Lei de Contravenções Penais) e impôs ainda pena de multa. O Ministério Público interpôs recurso e o relator no STJ deu provimento para restabelecer a condenação proferida em primeira instância. No habeas corpus impetrado no STF, a defesa afirmava que a pena é desproporcional à conduta, pois o ato praticado foi um único beijo em lugar próximo a outras pessoas. De acordo com a defesa, embora a conduta do réu seja “condenável e reprovável”, não teria havido conotação sexual no beijo ou danos psicológicos 69 Revista Científica Fagoc Jurídica - Volume IV - 2019 permanentes à vítima. (...) Em voto proferido na sessão de 18/12/2018, o ministro Alexandre de Moraes afastou a ocorrência de ilegalidade ou de constrangimento ilegal na decisão do STJ que manteve a condenação e observou que houve um ato clássico de pedofilia. Segundo ele, o fato definido como crime na lei (ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos) existiu, e não é possível desclassificar a conduta para molestamento. “Não houve conjunção carnal, mas houve abuso de confiança para um ato sexual”, afirmou. O ministro destacou que a conotação sexual, para determinadas faixas etárias, é uma questão de abuso de poder e de confiança, pois, embora uma criança de cinco anos não entenda a questão sexual, os reflexos serão sentidos na adolescência, dificultando que tenham confiança em outras pessoas no momento de se relacionar. O julgamento foi retomado na sessão desta terça-feira (1º) com o voto-vista do ministro Luiz Fux pela manutenção da sentença de primeiro grau, por entender que o ato configura o delito de estupro de vulnerável. A ministra Rosa Weber votou no mesmo sentido. Na sessão de dezembro, o relator do HC, ministro Marco Aurélio, votou pela manutenção da decisão do TJ-SP, pois considera que o chamado beijo lascivo não configura estupro. O ministro observou que, anteriormente, havia dois tipos penais – estupro e atentado violento ao pudor – com penas diversas. Mas, que com a alteração no Código Penal introduzida pela Lei 12.015/2009, as duas condutas foram reunidas no conceito mais abrangente de estupro de vulnerável, estipulando pena de 8 a 15 anos de reclusão para o delito de constranger menor de 14 anos a conjunção carnal ou a prática de ato libidinoso diverso. Segundo ele, a conduta do réu restringiu-se à consumação de beijo lascivo, o que não se equipara à penetração ou ao contato direto com a genitália da vítima, situações em que o constrangimento é maior e a submissão à vontade do agressor é total. O ministro Luís Roberto Barroso também considerou a pena excessiva e votou pela concessão do HC para desclassificar a conduta e determinar que o juízo de primeira instância emita nova sentença com base no artigo 215-A do CP (praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro), cuja pena varia de um a cinco anos de reclusão. (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2019)
Dessa maneira, o posicionamento preponderante baseou-se no fundamento de que, apesar de não ter ocorrido a conjunção carnal, houve a subsunção do fato à norma penal do artigo 217-A caput do Código Penal e que a conotação sexual dessas vítimas menores de 14 anos se dá por um abuso de poder e de confiança, acarretando problemas psicológicos durante a adolescência. Não obstante ser necessário, segundo Cunha (2017), valorar o fato da tenra idade da vítima, a pena tem como protagonista o sentenciado, devendo ser aplicada, de acordo com o caso concreto, no intuito de prevenir que o agente volte a delinquir, bem como retribuir o mal causado.
Logo, as consequências geradas nas vítimas deveriam ser valoradas durante a aplicação da pena base, após um exame psicológico, não influenciando na caracterização do crime imputado ao agente.
Na atual conjuntura em que a luta pelos direitos humanos se aviva constantemente, o Direito se caracteriza como regulador das relações sociais, sendo o responsável pela organização da sociedade. Considerando esse cenário em que as normas legais tenham que se atualizar regularmente, de acordo com o contexto social e jurídico da atualidade, a Lei nº 13.718/2018 surgiu com o intuito de instituir muitas tipificações de condutas relacionada a dignidade sexual humana, dentre elas o crime de importunação sexual para conter condutas que não são lesivas ao ponto de serem enquadradas como estupro, mas que causam constrangimento à vítima.
As modificações trazidas pela lei supramencionada objetivam fortalecer a proteção aos direitos humanos, em especial aos dos grupos mais fragilizados pelo passado histórico marcado pelo preconceito e desigualdade de direitos. O crime de importunação sexual (art. 215-A C.P.) tipifica condutas que não se enquadram no crime de estupro (art. 213 C.P.), devido à ausência de violência ou grave ameaça, ao mesmo tempo em que recupera características do atentado violento ao pudor (art. 214 C.P. – revogado), englobado ao crime de estupro em 2009. Dessa forma amplificando o rol de condutas criminalizadas, repreendidas e punidas, assim ocasionando maior segurança jurídica e fortalecendo a função preventiva das leis penais.
É visível que a Lei nº 13.718/2018, em vários aspectos, é mais gravosa que o sistema vigente anteriormente a ela. Vê-se que as alterações legislativas acompanham as mudanças da sociedade e atende às expectativas sociais, como anteriormente mencionado. Sendo assim, o desenvolvimento da lei buscou adaptar-se às tendências internacionais das legislações de países mais desenvolvidos, que contemplam tipos penais intermediários. Objetivando, assim, o preenchimento de lacunas legislativas que causavam grande insegurança nos cidadãos e que dificultavam o enquadramento de determinadas condutas que eram realizadas na prática, mas não eram tipificadas em lei.
Ademais, ao averiguar-se os julgados de órgãos colegiados dos Tribunais Estaduais e Superiores referentes ao tema, foi possível concluir que a jurisprudência majoritária tende a decidir pela impossibilidade de desclassificação do crime de estupro de vulnerável para o de importunação sexual, por não avaliar como uma espécie de novatio legis in mellius, considerando a vulnerabilidade presumida do sujeito passivo do crime, preconizando o princípio da especialidade e a presunção de violência dos menores de 14 anos, violência ficta ou real não subsistente no artigo 215-A do Código Penal. Acontece que, não obstante a existência de princípios próprios aplicáveis ao Direito Penal, em se tratando de um conflito aparente de normas, faz-se mister julgar com base nos princípios constitucionais existentes, a fim de evitar excessos de punição.
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Artigo publicado em 23/11/2021 e republicado em 01/05/2024
Formado em Administração pela Faculdade Martha Falcão em Manaus/Amazonas. Bacharelando em Direito na Faculdade Santa Teresa em Manaus/Amazonas.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRAGA, João Matheus Campelo. As divergências entre doutrina e jurisprudência quanto aos crimes de estupro de vulnerável e importunação sexual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 maio 2024, 04:58. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /57574/as-divergncias-entre-doutrina-e-jurisprudncia-quanto-aos-crimes-de-estupro-de-vulnervel-e-importunao-sexual. Acesso em: 29 dez 2024.
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