Resumo: Este artigo explora as dinâmicas complexas entre avanços legislativos e desafios persistentes na proteção dos direitos das mulheres no Brasil, com foco na nova Lei n° 14.994/2024 e nas escusas absolutórias. A Lei n° 14.994/2024 representa um marco recente na luta contra a violência de gênero, introduzindo penas mais severas e reforçando o arcabouço legal contra o feminicídio. No entanto, a permanência das escusas absolutórias para delitos patrimoniais em contextos familiares destaca uma área de retrocesso que ainda precisa ser abordada. Sob a lente crítica do constitucionalismo feminista, este artigo analisa como essas isenções legais perpetuam desigualdades de gênero e minam a proteção integral das mulheres. Além disso, discute-se a importância do controle de convencionalidade, que alinha as normas nacionais aos padrões internacionais de direitos humanos, como os estabelecidos pela Convenção de Belém do Pará e a Lei Maria da Penha. Através desta análise, busca-se promover um sistema jurídico mais justo e equitativo, que efetivamente proteja as mulheres contra todas as formas de violência e discriminação.
Palavras-chave: Constitucionalismo feminista; Escusas absolutórias; Violência de gênero; Lei Maria da Penha; Convenção de Belém do Pará; Controle de convencionalidade; Direitos das mulheres; Feminicídio; Igualdade de gênero; Reformas legislativas.
Introdução
Este artigo tem como objetivo explorar a incompatibilidade das escusas absolutórias com os direitos das mulheres, analisando como o constitucionalismo feminista pode oferecer uma lente crítica para reavaliar esses conceitos no contexto jurídico brasileiro. A discussão se baseia em um artigo publicado no Jota, que propõe a não isenção de punição para crimes patrimoniais relacionados ao gênero, como furtos entre cônjuges, em violação ao princípio da igualdade. A introdução do controle de convencionalidade, alinhado com tratados internacionais e legislações nacionais como a Lei Maria da Penha, é central para a proteção dos direitos das mulheres contra todas as formas de violência, incluindo a patrimonial.
1. Constitucionalismo Feminista como Método de Análise
O constitucionalismo feminista busca redefinir a relação entre o direito constitucional e o feminismo, desafiando e reexaminando a concepção tradicional de constitucionalismo através de uma lente de gênero. De acordo com estudiosas como Beverley Baines, Daphne Barak-Erez e Tsvi Kahana, o constitucionalismo deve garantir que a democracia não leve à violação dos direitos humanos ou à opressão das minorias, abordando questões de gênero que são frequentemente marginalizadas.
Um princípio central do constitucionalismo feminista é a promoção da igualdade de gênero. Esforços nesse sentido devem incluir a igualdade material e o reconhecimento das mulheres, além de desafiar estereótipos e preconceitos ocultos nas leis. A luta por igualdade vai além do formalismo legal, buscando também a justiça social e a segurança em contextos domésticos e públicos.
Cristiane Peter propõe o uso do constitucionalismo feminista como método integral para abordar problemas jurídico-constitucionais. Essa abordagem busca promover um constitucionalismo inclusivo, que aborde questões de gênero de forma plural e tolerante, iluminando aspectos frequentemente marginalizados pelo Direito Constitucional Contemporâneo.
Sob a perspectiva do constitucionalismo feminista, as escusas absolutórias podem ser vistas como incompatíveis com os direitos das mulheres, uma vez que podem perpetuar dinâmicas de poder e desigualdade de gênero no âmbito familiar. A isenção de pena para crimes patrimoniais em contextos conjugais ignora as complexidades e as nuances das relações de poder entre homens e mulheres, potencialmente desconsiderando situações em que a mulher é economicamente dependente ou vulnerável.
3. Controle de Convencionalidade e Direitos Humanos
O controle de convencionalidade é um mecanismo jurídico que assegura a compatibilidade dos atos normativos internos com as normas internacionais, como tratados, costumes, e resoluções de organizações internacionais. Este controle pode manifestar-se de duas formas: através de um efeito negativo, que invalida normas e decisões nacionais contrárias às normas internacionais (controle destrutivo ou saneador), ou através de um efeito positivo, que interpreta as normas nacionais de modo a alinhá-las com as normas internacionais (controle construtivo).
Existem duas principais subcategorias de controle de convencionalidade: o controle de matriz internacional e o controle de matriz nacional. O controle de matriz internacional, também chamado de controle autêntico ou definitivo, é exercido por órgãos internacionais independentes, como tribunais de direitos humanos, que garantem que os Estados não atuem como juízes em causa própria.
Por outro lado, o controle de matriz nacional é realizado pelos próprios juízes e autoridades internas, que analisam a compatibilidade das leis nacionais com as normas internacionais incorporadas. Este controle foi consagrado na França em 1975 e inclui não apenas juízes, mas também autoridades administrativas e membros do Ministério Público, podendo ser preventivo, como na análise de projetos de lei.
Embora ambos os controles busquem assegurar a conformidade com normas internacionais, eles podem chegar a conclusões diferentes. Enquanto o controle internacional pode declarar uma norma incompatível com tratados de direitos humanos, o controle nacional pode considerá-la compatível, devido a diferenças nos parâmetros de análise, hierarquia e interpretação das normas.
Para garantir a efetividade dos tratados internacionais, é essencial que os controles de convencionalidade nacional e internacional dialoguem entre si, respeitando as interpretações dos órgãos internacionais e assegurando que os direitos humanos sejam universalmente protegidos.
A aplicação do controle de convencionalidade, em consonância com a Convenção de Belém do Pará, é essencial para assegurar que as normas internas respeitem os direitos humanos fundamentais. A supraconstitucionalidade dos direitos humanos, conforme a Convenção de Viena de 1969, reforça que normas internas não devem impedir o cumprimento de pactos humanitários internacionais.
4. Impacto da Convenção de Belém do Pará e da Lei Maria da Penha
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará, foi estabelecida como uma resposta à violência sistemática contra mulheres na América. Ratificada pelo Brasil em 1995, a Convenção visa garantir que toda mulher tenha direito a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público quanto privado, e abrange violência física, sexual e psicológica em diversas esferas, incluindo familiar, comunitária e estatal.
A Convenção delineia os direitos das mulheres, que incluem a liberdade de violência e discriminação, e o direito de viver sem padrões estereotipados de comportamento. Ela também afirma a necessidade de proteção integral dos direitos humanos das mulheres, como a integridade física e moral, liberdade pessoal, e igualdade perante a lei.
Os deveres dos Estados são explicitados, incluindo a obrigação de adotar políticas para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, além de modificar práticas legais e culturais que a toleram. Isso inclui a implementação de medidas de proteção e mecanismos judiciais para garantir acesso a reparações justas.
No contexto da incompatibilidade das Escusas Absolutórias com os Direitos das Mulheres, em uma Análise à luz do constitucionalismo feminista, a Convenção de Belém do Pará é fundamental. Ela reforça a necessidade de revisar normas internas, como as escusas absolutórias, que podem perpetuar a violência patrimonial contra mulheres ao isentar de punição certos crimes em contextos familiares. A perspectiva do constitucionalismo feminista propõe um reexame dessas normas sob uma lente de gênero, garantindo que os direitos das mulheres sejam respeitados e protegidos conforme os padrões internacionais estabelecidos pela Convenção.
A Convenção também destaca a importância de programas educativos e culturais que promovam a igualdade de gênero e a erradicação de preconceitos. Com sua aplicação, espera-se que os Estados, incluindo o Brasil, alinhem suas legislações internas com os compromissos internacionais, assegurando que normas como as escusas absolutórias não minem a proteção dos direitos das mulheres.
A Lei Maria da Penha, promulgada em 2006, representa um marco na proteção dos direitos das mulheres no Brasil, sendo uma resposta direta a tratados internacionais como a CEDAW e a Convenção de Belém do Pará. A lei visa coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, tratando-a como uma violação dos direitos humanos. Ela se aplica a contextos de gênero em relações domésticas, familiares ou íntimas de afeto, independentemente de coabitação ou orientação sexual. A violência pode ser física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial.
A lei introduz medidas protetivas de urgência, como o afastamento do agressor e a proibição de contato com a vítima. Em 2019, foram feitas alterações para fortalecer essas proteções, incluindo o ressarcimento ao Estado por custos relacionados à violência, a apreensão de armas do agressor, e garantias educacionais para dependentes da vítima.
No âmbito penal, a Lei Maria da Penha estabelece que crimes de lesão corporal leve em contexto de violência doméstica são de ação penal pública incondicionada, afastando a aplicação de medidas despenalizadoras comuns. O Supremo Tribunal Federal (STF), na ADI n. 4.424, confirmou a constitucionalidade dessas disposições, destacando a necessidade de tratamento diferenciado para promover a igualdade material entre homens e mulheres.
A Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 19) reforçou a constitucionalidade da lei, argumentando que o tratamento diferenciado é necessário para corrigir desigualdades históricas. A Lei Maria da Penha não se aplica a homens em situações similares, pois eles não enfrentam o mesmo contexto de discriminação e subordinação. Em resumo, a Lei Maria da Penha e suas subsequentes alterações buscam criar um ambiente legal que proteja efetivamente as mulheres da violência de gênero, promovendo a igualdade e justiça social.
5. Contextualização das Escusas Absolutórias
As escusas absolutórias refletem a intenção do legislador em preservar a harmonia familiar ao isentar de pena delitos patrimoniais cometidos entre cônjuges e entre ascendentes e descendentes. O artigo 181 do Código Penal estabelece essa imunidade em duas situações principais: quando a vítima é cônjuge, na constância da sociedade conjugal, e quando a vítima é ascendente ou descendente, sem considerar a natureza do parentesco.
6. Nova Lei n° 14.994/2024: Um Passo na Luta Contra a Violência de Gênero
A Lei n° 14.994/2024, originada do Projeto de Lei n° 4.266/2023, foi promulgada em resposta ao alarmante aumento nos casos de feminicídio no Brasil, com o objetivo de endurecer o tratamento penal para crimes de violência de gênero. Em 2023, apenas, o Brasil registrou 1.467 feminicídios e 2.797 tentativas, o maior número desde a tipificação do feminicídio em 2015. A senadora Margareth Buzetti, autora do projeto, destacou a necessidade de agravar penas para crimes que frequentemente precedem o feminicídio, como lesão corporal e ameaças, visando reduzir a impunidade e reforçar a proteção dos direitos das mulheres.
A nova lei estabelece o feminicídio como crime autônomo, com penas mais severas, refletindo a intenção legislativa de demonstrar intolerância à violência de gênero. Além disso, ela amplia as penas para crimes de violência doméstica e lesão corporal por razões de gênero, e introduz majorantes para crimes contra a honra e a contravenção de vias de fato.
A Lei n° 14.994/2024 também promove alterações no campo da execução penal, restringindo direitos dos presos e aumentando o controle por meio de monitoramento eletrônico. Além disso, modifica o Código de Processo Penal para garantir prioridade de tramitação em casos de violência de gênero e isenção de custas processuais para as vítimas.
Contudo, a lei não está isenta de críticas. Alguns especialistas apontam que o aumento das penas pode não ser suficiente para enfrentar as complexas raízes sociais da violência de gênero, podendo até revitimizar as mulheres ao retirar sua capacidade de manifestar vontade em processos legais. A lei também levanta debates sobre o simbolismo penal e a efetividade das medidas propostas, sendo essencial um acompanhamento contínuo para avaliar seu impacto real na proteção das mulheres.
A promulgação da Lei n° 14.994/2024 destaca a necessidade de uma abordagem integrada que combine medidas legais com políticas públicas eficazes para prevenir a violência de gênero e promover a igualdade de direitos. A legislação deve ser continuamente revisada e aprimorada para garantir que responda adequadamente às necessidades das mulheres e contribua para a erradicação da violência de gênero no Brasil.
A nova legislação reforça o arcabouço legal destinado à proteção das mulheres, inspirado pela crescente conscientização sobre a violência de gênero e suportada por dados alarmantes de feminicídios. A lei não apenas eleva as penalidades para crimes relacionados à violência doméstica, mas também busca prevenir a violência através de medidas de monitoramento eletrônico e restrições aos direitos dos agressores durante a execução penal. Esta abordagem, alinhada com as diretrizes da Lei Maria da Penha e da Convenção de Belém do Pará, assinala um compromisso renovado com a prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher.
Por outro lado, as escusas absolutórias em delitos patrimoniais permanecem um entrave significativo à plena realização dos direitos das mulheres. Estas isenções de pena, previstas no artigo 181 do Código Penal, são aplicáveis a crimes cometidos entre cônjuges e em relações familiares, sob a justificativa de preservar a harmonia familiar. No entanto, sob o viés do constitucionalismo feminista, tais disposições são criticadas por ignorarem as dinâmicas de poder e controle econômico que frequentemente caracterizam essas relações. As escusas absolutórias, ao perpetuarem a impunidade em delitos patrimoniais, contrariam os princípios de igualdade de gênero e proteção contra a violência patrimonial defendidos pela Lei Maria da Penha e pela Convenção de Belém do Pará.
O constitucionalismo feminista oferece uma lente crítica para avaliar tanto os avanços quanto os retrocessos nas políticas de proteção às mulheres. Ele desafia a manutenção das escusas absolutórias, propondo uma revisão das normas que privilegiam estruturas de poder patriarcais sob a fachada de harmonia familiar. A erradicação dessas isenções é fundamental para assegurar que o sistema jurídico não apenas reconheça, mas ativamente proteja os direitos das mulheres, promovendo um ambiente de equidade e justiça.
Conclusão
A análise da incompatibilidade das escusas absolutórias com os direitos das mulheres revela a necessidade urgente de reavaliar essas normas sob a perspectiva do constitucionalismo feminista. As escusas absolutórias, ao isentarem de pena crimes patrimoniais em contextos familiares, perpetuam desigualdades e dinâmicas de poder que são prejudiciais à proteção dos direitos das mulheres. Através da lente do constitucionalismo feminista, é possível identificar e desafiar essas normas, promovendo um ambiente jurídico mais inclusivo e equitativo.
O controle de convencionalidade surge como um mecanismo essencial para garantir que as normas nacionais estejam alinhadas com os padrões internacionais de direitos humanos, como os estabelecidos pela Convenção de Belém do Pará. Esta Convenção, juntamente com a Lei Maria da Penha, oferece um arcabouço robusto para a proteção das mulheres contra todas as formas de violência, incluindo a patrimonial. Ao aplicar o controle de convencionalidade, os Estados são incentivados a revisar e reformar legislações internas que possam minar os direitos das mulheres, promovendo a igualdade de gênero e a erradicação de preconceitos enraizados.
Para se alinhar verdadeiramente aos princípios da Convenção de Belém do Pará e da Lei Maria da Penha, é essencial que o Brasil continue a evoluir suas políticas de proteção às mulheres, eliminando normas que perpetuam desigualdades. A Lei n° 14.994/2024 simboliza um passo importante nessa direção, mas a coexistência com as escusas absolutórias destaca a necessidade de uma reforma legal abrangente que aborde todas as formas de violência e discriminação de gênero.
Portanto, é imperativo que o sistema jurídico brasileiro, e outros que enfrentem desafios semelhantes, utilizem o constitucionalismo feminista e o controle de convencionalidade como ferramentas para efetivar a proteção dos direitos das mulheres. A revisão das escusas absolutórias sob essa perspectiva não apenas fortalece o compromisso com os direitos humanos, mas também assegura que a legislação interna evolua para refletir um compromisso genuíno com a igualdade e a justiça social. Assim, espera-se que, através de um diálogo contínuo entre normas nacionais e internacionais, possamos avançar rumo a uma sociedade mais justa e igualitária para todas as mulheres.
Referências
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GILABERTE, Bruno; MARTINELLI, João Paulo; DE BEM, Leonardo Schmitt. Nova Lei do Feminicídio: Comentários à Lei 14.994/2024. Belo Horizonte: Editora D'Plácido.
Advogada, graduada em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais e Pós Graduada em Direito Público e Direito Civil e Processual Civil pela Faculdade Legale
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CARDOSO, RAPHAELA NATALI. Reavaliando a Proteção Jurídica das Mulheres: Desafios e Avanços no Brasil sob a Perspectiva do Constitucionalismo Feminista e Normas de Proteção contra a Violência de Gênero Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 dez 2024, 04:36. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67401/reavaliando-a-proteo-jurdica-das-mulheres-desafios-e-avanos-no-brasil-sob-a-perspectiva-do-constitucionalismo-feminista-e-normas-de-proteo-contra-a-violncia-de-gnero. Acesso em: 26 dez 2024.
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