MARIA SOCORRO RODRIGUES COELHO [1]
(orientadora)
RESUMO: o presente artigo trata de uma investigação sobre a relação entre direito e justiça. Como problema de pesquisa, tem-se: qual é a relação entre o direito e a justiça na Questão 57, Artigo 1, da Suma Teológica? Nessa perspectiva, o estudo empreendido apresenta a descrição e discussão de um fato jurídico a partir do entendimento de Santo Tomás de Aquino. Para isso, levantaram-se meios de esclarecer determinados fundamentos e ideias gerais de organização dos quais se podem deduzir a lógica utilizada pelo teólogo na formação de seu raciocínio. Objetiva-se, de tal modo, a compreensão de um fenômeno jurídico a partir de uma revisão de literatura sobre a justiça e o direito tal como pensados pela teoria clássica. O estudo foi desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica com abordagem dedutiva, tendo a articulação do problema de pesquisa se dado com o auxílio de artigos científicos e teses de doutorado e dissertações de mestrado anteriormente publicados, bem como de livros disponíveis para estudo. A partir de todo o esforço analítico, verificou-se que o cristianismo, e mais especificamente a teoria da justiça elaborada por Aquino, influenciou a trajetória do direito em seus fundamentos, especialmente no que se refere à teoria do direito natural.
Palavras-chave: Filosofia do Direito, relação entre direito e justiça, método dialético, Santo Tomás de Aquino.
ABSTRACT: This article deals with an investigation into the relationship between law and justice. As a research problem, one has: what is the relationship between law and justice in Question 57, article 1, of the Summa Theologica? In this perspective, the study undertaken presents the description and discussion of a legal fact from the understanding of Saint Thomas Aquinas. For this, means were raised to clarify certain foundations and general ideas of organization from which the logic used by the theologian in the formation of his reasoning can be deduced. The objective is, therefore, the understanding of a legal phenomenon from a literature review on justice and law as understood by classical theory. The study was developed through bibliographic research with a deductive approach, with the articulation of the research problem taking place with the help of previously published scientific articles and doctoral theses and master's dissertations, as well as books available for study. From all the analytical effort, it was found that Christianity, and more specifically the theory of justice developed by Aquino, influenced the trajectory of law in its foundations, especially with regard to the theory of natural law.
Keywords: Philosophy of Law, relationship between law and justice, dialectical method, Saint Thomas Aquinas.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A pergunta que orienta a elaboração do presente artigo se volta ao estudo do direito dentro da concepção aquiniana de justiça. Eis, pois, o problema investigado: qual é a relação entre o direito e a justiça na Questão 57, Artigo 1, da Suma Teológica?
De tal modo, como objeto de reflexão tem-se o Tratado da Justiça, localizado na Secunda Secundae, na Suma Teológica; em seu bojo, encontram-se as premissas da justiça articuladas por Santo Tomás de Aquino. Mais especificamente, discute-se o artigo que dá início às formulações concebidas no tratado.
Paralelamente, questões secundárias, necessárias para uma melhor compreensão do tema, também são abordadas; tratam-se dos objetivos específicos, sendo eles: a) a relevância do pensamento do filósofo para a ciência do direito e b) a apresentação do procedimento que Aquino utiliza para estruturar o seu raciocínio. Com efeito, fundamenta-se a escolha do problema de pesquisa no interesse de refletir acerca dos fundamentos da ciência jurídica, sobre a tradição clássica do direito, mais especificamente no que tange ao conceito do justo, assim como a respeito da doutrina tomista e o papel exercido por Aquino na história e filosofia do direito, sendo esta última o campo no qual se situa o tema em discussão.
A investigação é um passo inicial dentro do universo de pesquisa das questões jurídicas e políticas do pensamento de Santo Tomás de Aquino. Para tanto, este artigo evidencia-se como descrição de um aspecto do pensamento jurídico de um dos maiores expoentes da filosofia medieval, tendo, portanto, caráter introdutório ao problema do direito na Suma Teológica.
Para além destas considerações iniciais, o artigo se organiza em três capítulos, seguidos da conclusão. Num primeiro momento, apresenta-se Santo Tomás de Aquino, o procedimento argumentativo por ele utilizado e a relevância de sua doutrina para o direito. Em seguida, faz-se considerações sobre a justiça tal como ela é concebida por Aquino, delimita-se a dimensão da justiça em que se concentra o presente estudo e realiza-se um panorama sobre o Tratado da Justiça. Por último, é estabelecida a relação entre o direito e a justiça a partir da contextualização do direito na questão 57, Artigo 1, da Suma Teológica.
O desenvolvimento do estudo se dá com base em revisão bibliográfica sobre a teoria de justiça de Sto. Tomás de Aquino, através de consulta de obras físicas, teses e dissertações. Emprega-se o método dedutivo, partindo-se do geral ao específico para delinear uma das proposições de uma teoria que integra os pilares do direito contemporâneo.
Por fim, como objetivo geral pretende-se analisar a relação existente entre o direito e a justiça a partir de uma perspectiva clássica. Isso porque trata-se de um paradigma essencial para se compreender o direito e a sua evolução.
2 AS BASES DO PENSAMENTO DE SANTO TOMÁS DE AQUINO
2. 1 A influência da doutrina tomista no Ocidente: relevância social, política e jurídica
Parece hoje incomum que uma doutrina concebida na Idade Média possa ser útil à análise e ao estudo do direito e seus fenômenos na contemporaneidade.
Não por acaso a obra tomista, enfoque desta pesquisa, é pouco mencionada dentro da maioria dos círculos acadêmicos. Geralmente, fala-se apenas da existência de uma corrente de direito natural tomista, e em geral por curtos períodos durante aulas introdutórias ou em um capítulo inicial de qualquer livro de Introdução ao Estudo do Direito ou Filosofia do Direito.
Vários são os motivos que desestimulam a recepção da obra de Santo Tomás de Aquino na modernidade, especialmente no meio jurídico. A título de exemplo, Michel Villey (2014) diz que há uma espécie de ignorância deliberada acerca dos escritos do teólogo, resultado de uma “moral utilitarista” que nos sujeita demasiadamente ao primado da prática.
Com isso, quer dizer que há pouco espaço, em nosso tempo, para teorias especulativas. A doutrina tomista, portanto, iria de encontro ao cientificismo característico de nossa época porque é produto de um estudo teórico em que predominam os raciocínios abstratos.
Para além dos obstáculos que se impõem à admissão de um pensamento visto como ultrapassado pelo senso comum, num sistema majoritariamente técnico, tem-se ainda um importante fator que se mostra uma barreira à aceitação do pensamento de Santo Tomás de Aquino no debate: o fato de ser uma doutrina teológica.
Em seu livro A Formação do Pensamento Jurídico Moderno, quando dá início a apresentação do seu curso e introduz a filosofia do direito nos teólogos do cristianismo, Villey (2009) descreve três objeções que vêm à tona quando se discute estudos teológicos no direito.
Em primeiro lugar, a incompetência na matéria de teologia, na qual poucos possuem alguma profundidade. Depois, há o fato de ser o objeto da teologia, ou seja, o estudo sistemático sobre Deus, a ciência de Deus, um tema aparentemente desconexo, alheio ao direito. Por último, o contraste entre a filosofia e a teologia, tanto em método quanto em fontes, porque esta funda seus argumentos em revelações e aquela, em “fontes racionais” (Villey, 2009).
Contudo, tais ressalvas, preconceitos, receios, desinteresse acerca da obra de Santo Tomás de Aquino ignoram o fato de que as ideias do autor são alvo da investigação de grandes filósofos modernos e contemporâneos do direito e da política, como Carl Schmidt, Walter Benjamin, e mais recentemente Giorgio Agamben, Roberto Espósito etc. Todos estes ressaltam em suas obras o vínculo originário entre teologia, política e direito.
Reforça a relação intrínseca entre essas áreas a tese de Villey (2009), segundo a qual todos os grandes problemas da filosofia do direito estariam interligados à teologia, ainda que dogmaticamente. O teórico ratifica a importância da dimensão religiosa no campo jurídico, defendendo a necessidade de pensá-la em contraposição ao laicismo presente nas universidades: “O laicismo universitário levou a desconhecer em grande medida que a filosofia do direito de nossa história europeia conservou por muito tempo uma dimensão religiosa, que seus problemas eram abordados, primeiro, sob o ângulo teológico” (Villey, 2009).
Excluir, portanto, a religião do debate seria uma forma de esquecimento das estruturas que moldaram o direito ao longo da história. Tal atitude resultaria, também, num desfalque à análise das próprias questões humanas, que perdem seu prisma metafísico. Percebe-se, então, que o desconhecimento quanto aos impactos desse pensamento na história, tanto as repercussões que a obra tomista possui no seio jurídico quanto no Ocidente como um todo, vão muito além do que a princípio se imagina.
Toda essa indiferença e resistência em reconhecer as teses aquinianas como hipóteses para a compreensão de problemas típicos da modernidade é, contudo, compreensível. De fato, existe um problema contextual e axiológico que impossibilita uma comunicação plena entre a realidade medieval e a contemporânea, porque ambas se distinguem historicamente.
Assim como deve haver uma concordância a respeito do que se fala, sobre o sentido dos termos, deve haver também um entendimento entre o próprio sistema de valores discutidos, o que torna complexa a tarefa de se pensar a contemporaneidade a partir da visão de uma outra época. No caso do aprofundamento acerca das teses de Tomás de Aquino, tal dificuldade surge porque o homem atual não compartilha das certezas e do imaginário que formularam as concepções do homem medieval (CORREAS, 2018, p. 35).
Tiago Adão Lara (1999, p. 124) reafirma essa complexidade de entrosamento quando manifesta a dificuldade que tem em expor “a leitores impregnados de mentalidade científica e técnica os arrazoados e as teorias de pensadores medievais”, que possuíam “coordenadas diferentes daquelas que hoje demarcam os limites de compreensão da nossa cultura”.
Essa, aliás, é uma discussão fortemente presente na literatura em geral, pois diversas são as vezes nas quais interpretações equivocadas são feitas a partir de julgamentos precipitados ou diferenças ideológicas e temporais, algo que foi retratado na peça Júlio César, escrita por Shakespeare (2007), quando Cícero diz que “os homens os fatos interpretam conforme bem entendem, sem dar crédito aos fins dos próprios fatos”.
Nesse ponto, observa-se que as contribuições de Aquino ao Ocidente foram tanto sociais quanto jurídicas e políticas. Para exemplificar o que se afirma, e dando enfoque aos pensadores medievais cristãos, dentre os quais se encontra Santo Tomás de Aquino, fala-se que uma das grandes contribuições do cristianismo ao Ocidente foi “a desmistificação do direito europeu a partir de bases racionais e cognitivas”; neste caso, o Direito Penal Ocidental teria se afastado de sua herança sacrificial e redefinido suas formas punitivas, passando do sacrifício à pena (BARBOSA, 2017).
Essa foi uma das transições entre a sociedade de outrora; nisso, ocorreram mudanças no sistema penal da época, na forma como se concebia o homem e na própria organização da sociedade.
Isso só foi possível graças à grande influência, por meio da Igreja Católica, do cristianismo no Estado. Com a substituição do Império Romano, fez-se necessário que uma nova organização jurídica surgisse e passasse a vigorar e regular a sociedade e suas relações. Foi partindo dessa questão que surgiu a ideia de direito como possibilidade de harmonizar todos os tipos de relações em sociedade (VILLEY, 2009).
Nesse caso, os ensinamentos de Aquino foram determinantes para a “construção de preceitos fundamentais quanto às necessidades de atuação do Estado, suas funções e responsabilidades para seus cidadãos, bem como as formas de governo, educação, relações financeiras em sociedade” (VILLEY, 2009).
Atesta-se, pois, o papel que a influência de Aquino desempenha dentre os medievos, que até o presente momento repercutem na maneira como se exprime a vida em sociedade, as relações particulares e até mesmo a associação verticalizada do Estado com os indivíduos.
À ciência do direito, Aquino realizou o que é considerado um de seus maiores feitos: empregou a filosofia, até então inconciliável, à serviço da teologia. Quando Villey afirma que na história do direito a obra de Santo Tomás de Aquino está “na origem de uma revolução”, quer dizer que foi ela a responsável pela mudança de paradigma que foi explorada acima e que essa transformação se deu num momento de transição de uma época para outra.
Amplas são as discussões acerca dessa temática. Conforme Menezes (2008, p. 164-165), a investigação sobre os temas jurídicos feita por Tomás de Aquino fundamentou, no mínimo, três campos do direito moderno: o campo das liberdades individuais, a utilidade social da noção de propriedade e a orientação da lei humana como base para o debate sobre a justiça.
Que o indivíduo, por um lado, escape ao controle do Estado, que, se não seu corpo, pelo menos sua alma seja livre já que destinada a um fim superior ao estado terrestre, eis algo que é contrário à filosofia política tanto de Platão como de Aristóteles [...]. Eis a contribuição do cristianismo, que a síntese maravilhosamente ampla e prudente de São Tomás não deixou de registrar. E daí surgirão um dia, quando a Igreja Católica for despojada de seu poder, nossa liberdade de consciência, nossa liberdade de opinião, nossas liberdades individuais (VILLEY, 2009, p. 165).
Seria, pois, no regime teocrático da cristandade que se teria dado início às liberdades individuais, por exemplo.
Limitando-se, agora, ao mundo jurídico, a teoria formulada por Aquino acerca do direito natural, hoje vista como uma das possíveis hipóteses de refundamentação do direito, é um ponto de bastante interesse e um dos motivos que levou ao redescobrimento de Aquino no campo do direito.
Quem melhor desenvolve essa tese é Correas (2018), que pretendeu assimilar a atual situação da teoria do direito e os eventos que a tornaram o que é hoje. Ele identifica três características predominantes na filosofia moderna que, transpostas à esfera jurídica, explicariam a conjuntura vivenciada pelo direito na pós-modernidade.
Eventualmente, a filosofia moderna perdeu a noção teleológica da natureza, criou uma nova concepção do sujeito e imanentizou o pensamento. No campo do direito, esses conceitos converter-se-iam em a) perda da noção clássica da lei natural, b) nascimento da noção moderna de direitos humanos e c) fundamentação imanente do direito.
Resumindo, abandonou-se o exercício de relacionar fatos a uma causa final, nasceu uma nova noção de sujeito autônomo e a metafísica foi excluída do debate, tendo a ideia de transcendência sido deixada de lado. O direito perdeu um alicerce fundamental para sua razão de ser e por isto novas tentativas de refundamentá-lo viriam a surgir para tentar suprir a esterilidade que hoje o condiciona (CORREAS, 2018).
Ante todo o exposto, tem-se que a tarefa que Santo Tomás de Aquino tomou para si durante a fase clássica do direito canônico foi a de elaborar teses que corresponderiam às necessidades de sua época. E é por meio dela que ele reconcilia o cristianismo com fontes pagãs e elabora uma doutrina rica em discursos relacionados a diversas áreas.
No presente artigo, restringe-se a discussão da contribuição de Aquino para o direito a apenas a uma ínfima parte de sua obra, mais especificamente no que diz respeito ao direito e a justiça.
2.2 O procedimento argumentativo de Santo Tomás de Aquino
Para adentrar propriamente no conteúdo a ser tratado, é preciso que se compreenda o método empregado por Santo Tomás de Aquino na formulação de seu raciocínio. Em princípio, tem-se que Aquino possuia uma sólida base lógica, pois acreditava que a tarefa de ordenar a razão cabia à lógica. Ressalte-se uma importante distinção: a razão não se confunde com o intelecto, é antes um artifício que deve ser moldado pela lógica para se chegar a uma intelecção. Não é, portanto, a razão que conhece o inteligível, mas o intelecto.
Aquino se utiliza da lógica para compor os argumentos e ordená-los conforme a razão até que sistematize ou atinja alguma conclusão. Constrói o silogismo a partir de um axioma, mas este não basta por si só, pois é necessário que haja as chamadas “segundas premissas”, proposições menores, para que uma cadeia causal seja estabelecida para se chegar a outras premissas. As descobertas dessas proposições ocupam grande espaço na Suma Teológica (2005).
Essas premissas, contudo, são passíveis de falhas. Entretanto, não era este um problema para Santo Tomás de Aquino porque ele não tencionava propor conclusões absolutas, não desejava um raciocínio certo, fechado, se isso servisse apenas para provar um ponto; queria, sim, conhecer a verdade, ainda que para isso houvesse de chegar a um resultado que ultrapassasse ou fugisse do esperado.
Em realidade, ele sequer tinha a pretensão de ter certeza, pois em sua concepção existem realidades que não são dadas ao homem conhecer, porque seria ele incapaz de alcançá-las por limitações impostas por sua condição deficitária, descompensada, inerente a condição de ser humano (VILLEY, 2014).
Nota-se que a obra de Aquino não se trata de um sistema científico. É construída por discursos realizados através de questões disputadas. Esse método é próprio dos escolásticos, escola em que Santo Tomás de Aquino foi o principal expoente, e é uma herança dialética que faz parte da lógica – como matéria – e difere da ciência por não levar à “conclusões necessárias”, porém a opiniões, bem como por possuir caráter “inventivo”, porque “pesquisa do que são as coisas, mas sem ilusão de atingir o limite” (VILLEY, 2014).
O respaldo da dialética em opiniões se dá porque ela não possui a propriedade das coisas, a constituição delas, e não está, desse modo, em posse da verdade. A opinião, de tal maneira, possui destaque central no método dialético e é ela que se intitula “premissa”.
E é justamente o entrechoque de opiniões que Villey acredita ser o segredo “da fecundidade inventiva da dialética”, porque em torno de uma única questão vários pontos de vista podem surgir e diferentes respostas vêm a nascer:
Isso decorre da definição de Aristóteles: a dialética parte da opinião; é forçoso que, sobre um mesmo objeto de conhecimento, haja opiniões múltiplas, pontos de vista diversos e parciais, disséramos, portanto discordantes. Precisam ser confrontados. Comungar, mesclar as visões de uns e de outros, para sair da contradição (VILLEY, 2014, p. 39).
Ainda de acordo com Villey, existem algumas possíveis razões pela qual o teólogo teria optado pela dialética como fundamento de sua obra: a primeira seria a de que ele recebera de Aristóteles a ideia do homem como ser social; neste sentido, a verdade não estaria apenas em um único lugar, devendo os homens unirem-se, por meio da discussão, para persegui-la e encontrá-la (VILLEY, 2009).
A segunda série de razões seria o fato de que a dialética teria acesso à uma parte da natureza que a ciência não alcança: o mundo móvel. Nesse caso, a dialética pode dialogar facilmente com mudanças justamente por não necessitar de certezas na qual se apoiar, diferentemente da ciência. Assim, há determinadas questões que não poderiam ser respondidas pela ciência, mas em contrapartida poderiam ser discutidas pela dialética por meio da divergência de opiniões (VILLEY, 2009).
Em suma, em quase toda a obra aqui referida Aquino utiliza a razão para firmar um confronto de proposições, parte para o argumento em sentido contrário, seguido da resposta, e finaliza com objeções às proposições feitas anteriormente. Em geral, ele emprega uma premissa necessária ou universal em sentido negativo, como por exemplo “o direito não é o objeto da justiça”, e põe recursos de autoridade a seu serviço. Nesse entremeio, infere as segundas premissas a partir das proposições levantadas.
3 A JUSTIÇA EM AQUINO: UM PANORAMA
No livro Filosofia do Direito, Michel Villey divide o estudo da justiça na obra de Santo Tomás de Aquino em duas dimensões: a divina e a profana. A primeira é a visão extraída dos textos sagrados cristãos, especificamente, e a segunda é a “que os filósofos gregos haviam descoberto; sobretudo Aristóteles” (VILLEY, 2008, p. 114). De pronto, importante ressaltar que este trabalho se concentra na segunda dimensão, a que diz respeito aos homens.
Inicialmente, tem-se que uma das características fundamentais da justiça elaborada pelos filósofos medievais é a associação entre a visão religiosa e a visão do direito natural, ou seja, aquele direito que de alguma forma já existe no homem e lhe é inerente, aplicando-se a todos os indivíduos.
Mais propriamente em Tomás de Aquino, um dos aspectos de maior relevo da justiça é a sua correlação com a realização humana, que, por sua vez, só acontece se observar-se o todo, com a pretensão de atingir o bem comum. Sendo a lei natural uma das formas de ordenar a razão em prol do bem comum, é ela um dos meios que possibilita a formação da comunidade e a existência coletiva regida pela paz (POOLE DERQUI, 2017, p. 125). Nessa perspectiva, diz John Finnis:
[...] quando Tomás de Aquino faz referência à beatitudo como fundamental para identificar os princípios da razão prática e da lei natural (porque razoável) moral, ao mesmo tempo ele enfatiza que essa não deve ser pensada como a felicidade na deliberação e ação individual sozinha, mas antes disso como o florescimento comum da comunidade [...] (FINNIS, 2007, Pg. 27)
Nesse caso, a beatitudo de que fala Finnis trata-se justamente dessa realização, que seria para os seres humanos “viver em uma razoabilidade completa, de uma forma moralmente excelente (virtuosus)” (FINNIS, 2007, p. 27).
Sob esse olhar, a realização humana, que se volta ao bem comum, seria fundamental para identificar esses princípios da razão prática e da lei natural, espécies de fundamentos da organização social que possuem como interesse principal o bem comum. Observa-se, desde já, que a teoria clássica da justiça estabelece uma interdependência entre o indivíduo e a comunidade, a autorrealização e o bem comum – que consiste no bem de todos os indivíduos que fazem parte da sociedade.
Visto dessa forma, não há possibilidade de o homem atingir uma realização própria de forma individual porque esse estado só pode ser alcançado em conjunto, já que está condicionado a todos (BARZOTTO, 2010 p. 67).
Assim, para Tomás de Aquino é inconciliável a ideia de uma existência humana unitária, isolada, na qual o homem não dependeria de seus iguais:
Não existe, pois, para Tomás, nem na realidade e nem na ficção, alguém vivendo isolado a vida de natureza, um estágio humano primitivo, seguido depois, através de um pacto, por um novo estágio, o do homem “civilizado”, o do homem da civitas. Também no paraíso o homem viveria em sociedade, o que quer dizer que lá também existiria uma forma de organização social na qual alguém haveria de presidir (BONI, 2018).
Naturalmente, é nessa perspectiva que se forma a teoria do surgimento do Estado em Santo Tomás de Aquino, em que o Estado é “mais do que uma associação de homens, constituindo-se assim numa necessidade para o ser humano, por sua tendência natural à vida organizada hierarquicamente em sociedade”.
Esse é um dos pontos em que ele diverge dos autores clássicos do modernismo, que muitas vezes concebem o nascimento de comunidades políticas a partir de uma perspectiva atomista.
De acordo com esse ponto de vista, o Estado em seu caráter institucional é imprescindível à manutenção do controle da própria sociedade. E em grande medida essa regularização só ocorre se o justo estiver presente para estreitar e adaptar os laços sociais, porque é ele o responsável por orientar essas relações e procurar estabelecer uma “igualdade” que, conforme comenta Carlos-Josaphat na introdução da Suma Teológica, “decorre da própria natureza das trocas ou da distribuição adequada dos bens e dos postos entre os membros da sociedade” (AQUINO, 2005, p. 43).
Essa dita regularização só pode ser exitosa se estiver de acordo com os preceitos e regras morais que se aplicam a uma sociedade. É nesse ponto que a concepção de justiça de Aquino ganha relevos mais acentuados, pois o que a distingue é a sua correção com a ética, deve não só estar em conformidade com ela quanto verificar o que está de acordo ou em desacordo com o conjunto valorativo que se entende por ética.
Por ser, então, condicionada a valores éticos, possui como características a objetividade e a busca pela verdade, de modo que tem de agir conforme o que se propõe, “conformando-se ao respeito estrito do direito rigorosamente determinado” (AQUINO, 2005, p.43).
Para Aquino, a justiça é “uma virtude cardeal por excelência, na medida em que ordena as ações humanas nas relações sociais” (RAMPAZZO, 2011, p. 130). É ela, aliás, que recebe o primeiro lugar nas virtudes, pois é considerada um fim “ao qual se vincula o domínio das paixões como uma condição prévia e uma exigência constante” (AQUINO, 2005, pg.43).
Em outras palavras, implica uma finalidade que tem como requisito o governo dos afetos com a intenção objetiva de retidão, que incide particularmente entre os homens e em meio as instituições.
Essa seria a justiça de modo geral. De maneira mais específica, a justiça humana dividiria-se em comutativa e distributiva, sendo a primeira a responsável por coordenar as relações entre as pessoas e a segunda, o envolvimento com a comunidade em geral (LIMA, 2014, pg. 85).
Entretanto, tem-se que só se pode falar em justiça propriamente dita se houver a existência de alguns valores conjugados, que seriam, respectivamente, a alteridade, o direito estrito e a verdadeira igualdade (AQUINO, pg. 43).
Se num determinado caso, por exemplo, houver uma situação entre duas partes em que não é possível se realizar um contraste a partir do que diz respeito ao outro, ou seja, onde não haja uma condição da qual possa ser inferido um ajuste, não tem como ser firmado um direito preciso, por extensão, e consequentemente não se fala em igualdade, porque sequer foi estabelecido um acerto.
Na Suma Teológica, este estudo da justiça é feito na Secunda Secundae, dos artigos 57 – 81, em que Santo Tomás de Aquino esquematiza o estudo da justiça considerando quatro pontos fundamentais, a saber: a) a definição de justiça, b) as suas partes, c) o seu dom e d) os preceitos da justiça. Cumpre ressaltar que este artigo se limita a analisar apenas o direito e a sua relação com a justiça, tema da questão de número 57, Artigo 1.
4 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E A JUSTIÇA NA SUMA TEOLÓGICA
Assim como diz Michell Villey, falta-nos uma definição precisa do que é o direito, pois o termo “desintegrou-se numa profusão de sentidos heteróclitos”. Desse modo, não obstante os seus vários significados, falta-lhe um que seja preciso em dizer qual de fato é a sua essência, porque todas estas acepções foram formuladas de modo arbitrário, apenas dependendo da vontade dos que as forjaram (VILLEY, 2014).
Por seguinte, essas definições não somente são abstratas como converteram-se, a partir de uma evolução etimológica, em atributos dos indivíduos, ou seja, “produtos de uma maneira de pensar subjetivista, substancialista” (BARZOTTO, 2010).
Este, é claro, seria um resultado da aparição da concepção moderna do sujeito de que fala Correas, na qual o homem torna-se o centro de tudo, detentor do poder, e arvora para si uma posição de dominância para com o mundo, assumindo o papel de ser superior que não mais se sujeita aos desmandos estabelecidos por um ser inferior (CORREAS, 2018).
Vendo desta forma, tudo começa a ser concebido segundo o sujeito, que é “o doador do sentido da realidade através de uma função construtiva – e não mais contemplativa – da consciência raciocinadora e da vontade” (CORREAS, 2018). Mesmo a ética ganha sentido apenas se referente ao homem. Sob essa perspectiva, o papel do jurista seria apenas o de assistir o direito.
Contudo, pensar o direito apenas como uma qualidade excluiria a característica relacional do indivíduo e o colocaria como um náufrago, isolado do outro (BARZOTTO, 2010, p. 44). Nesse ponto, é interessante ressaltar: “Pensar o direito subjetivo na perspectiva conflitiva do indivíduo autointeressado significa pensa-lo como a possibilidade de sujeitar os outros ao próprio arbítrio, significa pensá-lo como poder subjetivo” (BARZOTTO, 2010, p. 64).
Entretanto, uma pessoa considerada em sua singularidade não pode colocar-se como senhor de seu semelhante. Em situações de conflitos de interesse, cada pessoa pode no máximo advertir o outro, pois a vontade individual não goza de força coativa legítima.
Nessas circunstâncias, é o direito que reivindica e detém a autoridade para arranjar a sociedade de acordo com o que se espera dela, não podendo ele existir nem ser concebido fora de uma sociedade, já que uma de suas principais características é a socialidade. A respeito disso, Miguel Reale diz:
[...] o direito corresponde à exigência essencial e indeclinável de uma convivência ordenada, pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem um mínimo de ordem, de direção e solidariedade. É a razão pela qual um grande jurista contemporâneo, Santi Romano, cansado de ver o direito concebido apenas como regra ou comando, concebeu-o antes como “realização de convivência ordenada” (REALE, 1986, p.2).
Tendo isso em mente, é importantíssimo que se continue a discutir e observar o direito, seu lugar e o papel que desempenha conforme a sociedade e os aspectos relacionais dos indivíduos, sendo para isso indispensável que seja pensada a relação que ele detém com a justiça. A partir desse ponto, passa-se a refletir acerca da Questão 57, Artigo 1, da Suma Teológica, concentrando esforços no sentido de sintetizar artigo primeiro acima mencionado.
No Artigo 1, bem como nos seguintes, Santo Tomás de Aquino aplica o procedimento dialético, já mencionado anteriormente, para iniciar a discussão acerca do direito. O filósofo questiona a tese “se o direito é o objeto da justiça” a partir de quatro opiniões, a do jurisconsulto Celso, de Isidoro, do Filósofo (Aristóteles) e de Agostinho; por fim, oferece uma solução: o direito é o objeto da justiça.
Primeiramente, Aquino parte da consideração feita pelo jurisconsulto Celso, para quem o direito seria a arte do “bem e do equitativo”, sendo, pois, incumbência dele o aperfeiçoamento e a equanimidade entre os indivíduos. No segundo tópico, o objeto da argumentação é o parecer de Isidoro sobre a definição de “lei” – ela seria uma espécie de direito, uma variação ou qualidade. Já no terceiro ponto abordado, a exposição recai sobre a concepção de justiça de Agostinho, que diz respeito ao amor que serve somente a Deus.
É dessa forma que Santo Tomás de Aquino maneja a noção de direito, especialmente através de análises etimológicas, e formula, então, premissas que servirão à discussão do tema do artigo.
Em primeiro lugar, tem-se que o direito seria uma arte, assim como declara o jurisconsulto Celso; a arte, contudo, não é o objeto da justiça, mas uma virtude intelectual. Logo, sendo o direito uma arte e não sendo a arte objeto da justiça, ele também não o seria. Em segundo lugar, o direito não seria o objeto da justiça porque, de acordo com Isidoro, a lei é uma espécie de direito; mas, ora, ela é antes objeto da prudência que da justiça. Por último, tem como proposição o dizer de Agostinho, para o qual a justiça sujeita o homem a Deus, porque ela é o amor que só serviria a Deus; o direito, entretanto, diz respeito aos homens e às relações por eles estabelecidas, assinalando as leis humanas. Consequentemente, o direito não é o objeto da justiça, pois esta serve a Deus, já o direito se aplica somente aos homens (AQUINO, 2005, p. 45).
Na sequência, Santo Tomás de Aquino opõe um contraponto a estes raciocínios, que é o de que o direito recebe o nome de ius por ser justo. A justiça é o hábito, ou seja, a prática usual que nos leva a proceder retamente. Por sua vez, o justo é seu objeto. Sendo, pois, o direito justo, então ele é o objeto da justiça (AQUINO, 2005, p.45).
À vista disso, encaminha-se para a solução: a justiça é uma virtude responsável por “ordenar os nossos atos que dizem respeito a outrem”; sendo ela incumbida disso, requer igualdade, que, noutras palavras, implica um ajuste que pressupõe relação com o outro, pois não há como haver igualdade se não houver dois agentes ou duas coisas por onde se medirá o que será acertado ou reparado (AQUINO, 2005, p.45).
A retidão da justiça depende, então, do contato com o outro, desde que é o aperfeiçoamento não só de si, mas das relações com outrem, pois uma ação é justa quando corresponde, segundo uma certa igualdade, a uma ação de outro. E efetuada a correspondência, tendo cada um recebido o que lhe era devido, aí terminaria o papel da justiça, não cabendo a ela a forma como esse resultado foi obtido – o agente poderia ter se utilizado de meios errados para alcança-la, por exemplo, mas se entre as partes algo tiver sido ajustado, a justiça foi feita e a sua função desempenhada (AQUINO, 2005, p.45). Não cabe a ela o como, mas apenas se foi exercida, porque as “condutas justas têm por certo a finalidade de realizar o justo, mas não são essa relação justa. O imperativo da lei moral é apenas um instrumento” (VILLEY, 2014, p. 112).
Nesse ponto é que a virtude da justiça se diferenciaria das demais, que não exigem relação com outros por dizerem respeito somente ao agente que as pratica; e sendo o objetivo de tais virtudes o aperfeiçoamento do “eu”, a retidão do ato praticado é verificada a partir de como e com qual propósito ele foi praticado, sob pena de perder o caráter de virtude (AQUINO, 2005, p.45).
A justiça é, portanto, a devida retribuição. Justo seria o ato praticado com a observância do “agir reto na prática da justiça”, sendo a sua validade implicada na própria execução da justiça. Desta maneira, ela tem o seu objeto em si mesmo determinado, chamado justo. E este é o direito, de onde se deduz que o direito é o objeto da justiça (AQUINO, 2005, p.46).
Dando seguimento à discussão, Aquino articula as respostas às objeções anteriormente apresentadas.
À primeira objeção ele diz que é comum que os nomes adquiram outros significados e sentidos e afirma ter sido a palavra “ius” empregada para designar diferentes objetos, com finalidades diversas. Explica, então, que o termo já foi utilizado para se referir a coisa justa, bem como a arte de se conhecer o justo ou o lugar em que o direito é aplicado e, posteriormente, usado para denominar o próprio direito (AQUINO, 2005, p.46).
À segunda objeção ele responde que na mente já existe uma ideia de justo determinada pela razão, que seria uma espécie de “regra da prudência”. Escrita, tal ideia tornar-se-ia lei, uma razão do direito, ou seja, uma parte dele, embora não fosse ele em sentido estrito (AQUINO, 2005, p.46).
Finalmente, à terceira objeção Aquino diz que por não estarmos numa relação de igualdade para com Deus, não poderíamos dar a Ele o que é justo. Porquanto, não seria a lei divina ius, mas fas, pois daríamos a Deus apenas o que podemos; isso implicaria dar-lhe tudo o que temos, caso quiséssemos empreender a justiça para com Ele (AQUINO, 2005, p.46).
Vale ressaltar o que diz Villey acerca da relação de ajuste que é a justiça: “Não que entre as partes desse Todo constituído por uma relação existisse igualdade estrita, ‘aritmética’; mas, para que o Todo seja ordenado, é preciso uma proporção calculável, um mínimo denominador comum, um começo de igualdade entre as partes” (VILLEY, 2014, p. 118).
O que diz respeito ao homem é dotado de inconstância, estando as coisas humanas sujeitas a erros e falhas. Em virtude dessa dinamicidade, é necessário um elemento regulador dessa mutabilidade de modo a ordenar os vínculos relacionais existentes em sociedade. Esse elemento seria a justiça, que aos homens só pode ser aplicada com o auxílio do direito.
No primeiro artigo Aquino põe à prova o conceito de direito e de justiça, bem como a conexão entre ambos. Atualmente, nota-se que há uma certa confusão entre esses dois termos, sendo o direito e a lei muitas vezes confundidos com a própria justiça, embora sejam eles apenas instrumentos que visam alcançar este ideal, uma vez que é a justiça que ampara o justo em relação ao outro:
“Ela vale para que todos os valores valham. Não é uma realidade acabada, nem um bem gratuito, mas é antes uma intenção radical vinculada às raízes do ser do homem, o único ente que, de maneira originária, é enquanto deve ser. Ela é, pois, tentativa renovada e incessante de harmonia entre as experiências axiológicas necessariamente plurais, distintas e complementares, sendo, ao mesmo tempo, a harmonia assim atingida (REALE, 1986, p. 371)”.
Dado o papel do justo em relação a uma coisa, tem-se que esta pode ser entendida de duas maneiras: a primeira seria de um modo absoluto, pois esse algo em face do qual a justiça incide seria uma espécie diferente daquela sobre a qual se busca o ajuste, embora haja um tipo de conexão, de justo absoluto, entre ambos; por outro lado, de forma não absoluta, pois a relação existente entre as coisas a serem ajustadas seria de dependência, existindo uma em razão da outra, não havendo maneira, portanto, de fazer a partir disto uma comparação absoluta, devendo ser definido o tipo de justo a ser aplicado em cada circunstância.
Assim, embora a justiça tenda a adequar, deverá ser respeitada a diversidade existente entre as partes, porque de outro modo não haveria o justo. Se for levado em consideração o sentido absoluto, não será observado o específico. Analisando-se a objetividade da justiça, o direito também surgiria em seu caráter objetivo, ou seja, como realização de uma ordem que se evidencia de acordo com um elemento externo – como as leis de um local, por exemplo.
Mas, como diz Villey (2014), “proclamar que o direito é justo não adianta nada, se ignorarmos os meios de reconhecê-lo”, porque o justo ainda é uma ideia imprecisa. Ao considerar o pensamento jurídico atual e suas correntes jurídicas, existem aqueles que acreditam que a procura por um fundamento do direito não seria um problema e que, neste sentido, a justiça poderia ser relativa, moldada de acordo com as circunstâncias, e não seria, portanto, objeto de estudos teóricos, em virtude de tratar-se de questão de ordem prática (REALE, 1986, p. 370).
Sob essa perspectiva, uma teoria de justiça teria pouca importância e buscar reconhecer o fundamento do direito e as relações por ele estabelecidas seria mero detalhe, algo dispensável. Isso se dá, em parte, em decorrência do desaparecimento da concepção de natureza como fim; perdeu-se também o sentido e a raiz de conteúdos normativos, de maneira que estes fossem independentes do sujeito pensante, o que resulta em normas e princípios criados a partir da de uma razão relativa.
Com isso, o direito também perdeu a sua característica imanente. Deixou de partir da observação dos fatos e da estrutura das coisas e passou a firmar-se apenas na razão humana ou em mandatos que são simples imperativos. Visto desse modo, o direito seria apenas uma criação do homem para o seu próprio proveito.
Tem-se, pois, que para se compreender bem o direito de modo a melhor aplica-lo, deve-se entender antes o próprio conceito de justo, de maneira que o direito não vire apenas o que Reale entende por “mera justaposição mecânica de interesses” (REALE, 1986, p. 372).
Para que o direito não seja reduzido a isso, o pensador defende que deve haver complementação entre o objetivo e o subjetivo, de modo a abarcar o homem e a sociedade, “porque esta ordem não é senão uma projeção constante da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores no processo dialógico da história” (REALE, 1986, p. 372).
Esse questionamento levantado acerca dos fundamentos do direito da modernidade faz com que se procure a genealogia das coisas, numa suposta tentativa de revelar o que há por trás destas bases, de maneira a reconhecer que ele não se trata apenas de meras relações de poder.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com efeito, a escolha do tema trabalhado no presente artigo relaciona-se à forma com a qual a tradição clássica vê a justiça e o direito. Consequentemente, a investigação realizada procurou encaminhar-se dentro desse universo da filosofia do direito, que estuda o aspecto histórico-social desse fenômeno jurídico.
Em vista disso, buscou-se conhecer certas bases e entender os fundamentos do que entendemos por direito e por justiça, algo que só pode ser definido pela filosofia jurídica, o campo responsável por indagar a respeito de questões desse gênero, perquirindo acerca de fatos tais como legitimidade, origem, etc.
Para isso, utilizou-se Santo Tomás de Aquino e sua teoria de justiça como respaldo ao estudo, procurando antes de tudo compreender em que medida uma doutrina medieval e cristã poderia ter influenciado o campo do direito no Ocidente, descrevendo em seguida o método dialético, usado por Aquino para formar as bases de sua doutrina, e por fim adentrando propriamente na questão principal deste artigo, que é a relação entre direito e justiça.
Como dito acima, primeiro foram tecidas considerações iniciais acerca do pensamento de Santo Tomás de Aquino, inicialmente abordando algumas de suas contribuições a situar o tema dentro do espectro moderno e entender de que modo um filósofo cristão medieval moldou e fez parte da história do direito.
Assim, ainda que a sacralização da razão seja vista como um movimento da Igreja para se manter acima do poder e subjugar a razão à uma verdade que muitos consideram improvável, bem como apenas um meio para justificar a fé, é importante compreender que abrangeu muito mais além do que a princípio se possa imaginar.
Foi evidenciado que, apesar do que comumente se pensa, a teologia não foi um meio de alienação da filosofia à serviço de dogmas, nem se reduz a irracionalismos; muito antes, contribuiu tanto no âmbito político quanto no social, alcançando inclusive o meio jurídico, com efeitos que podem ser observados até hoje.
A própria filosofia conserva-se no Ocidente por meio do cristianismo, dos teólogos medievais, dos quais Santo Tomás de Aquino fez parte; e por ser ele considerado um dos maiores expoentes da Igreja e alguém que dedicou extensos comentários ao estudo da justiça e do direito, imperioso se faz ressaltarmos a sua relevância.
Para isso, contudo, foi necessário que se entendesse o caminho por ele seguido e traçado, de modo que pudéssemos vir a entender a partir de quê, como e o porquê do discurso ser do modo que é. Nesse sentido, viu-se que Aquino se utilizou do método dialético porque era o único meio de construir um raciocínio fecundo que não fosse engessado por falsas certezas, e que, antes, pudesse caminhar por várias direções sem necessariamente prender-se a uma só delas.
Por fim, conduzindo-se para o final, finalmente é descrita a relação que o direito possui com a justiça em Santo Tomás de Aquino, tendo sido seguido, para isto, o mesmo trajeto que o teólogo outrora traçou, de onde se deduz que se mantém um vínculo de um ideal a ser seguido.
Sabe-se que o direito possui no mínimo três aspectos de relevo, de acordo com a sua estrutura tridimensional, quais sejam: o normativo, o fático e o axiológico. Importante mencionar que esta pesquisa se concentrou no aspecto axiológico, procurando entender o direito como um valor instrumental da justiça.
Compreendeu-se, então, o direito como sendo o objeto da justiça, que lhe confere uma unidade finalística, direcionando-o à um objetivo comum. Os distintos elementos que compõem esse fenômeno jurídico seriam todos destinados ao exercício do todo, cada pequena parte funcionando e organizando-se em razão de algo maior.
Dessa forma, o direito não seria um fim em si mesmo, mas existe em função de outros valores e, mais especificamente, em razão da justiça, sendo ele o meio de realiza-la entre os homens. A pesquisa realizada teve como condão justamente observar esta questão, que se trata de um problema ético do direito.
Partindo do pressuposto levantado no segundo tópico, o de que atualmente há uma ausência de fundamentação do direito, tem-se que é imperioso o resgate dessas noções básicas e essenciais a reafirmação do direito, que ilustram o fato de que este fenômeno está amparado por uma série de alicerces que o legitimam, pois de outra forma ele se sustentaria apenas pela sua própria positividade, não havendo nada de sólido a validá-lo.
Importante mencionar que o artigo possui caráter introdutório, com objetivo de delimitar e estabelecer algumas relações existentes no meio jurídico, utilizando-se como respaldo um pensador que tem cada vez mais ganhado espaço dentro do âmbito do direito; para isso, foram esclarecidos alguns dos aspectos presentes no pensamento de Santo Tomás de Aquino, bem como a influência por ele exercida no Direito. Por fim, ressalta-se que este é um estudo amplo, que se estende em várias outras discussões, não tendo se pretendido, com ele, esgotar o assunto, que pode vir a ser fruto de futuros estudos mais aprofundados.
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[1] Doutora em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – CEUB. Professora de Argumentação Jurídica e Hermenêutica – UNIFSA. Advogada. E-mail: [email protected]).
Bacharelanda do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALENCAR, SUÊNYA LOPES DE. A relação entre direito e justiça na suma teológica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 mar 2024, 04:51. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /58574/a-relao-entre-direito-e-justia-na-suma-teolgica. Acesso em: 28 dez 2024.
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