RESUMO: A partir da análise do regramento estabelecido no plano internacional e, no âmbito interno, iniciado pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), o artigo apresenta as principais nuances que norteiam o trabalho infantil para, então, estabelecer os desafios surgidos no mundo moderno. Confrontando-se as hipóteses de trabalho ilícito e proibido, busca-se a reflexão sobre a melhor solução para a análise do advento de novas atividades em que se encontram inseridas as crianças e adolescentes, sobretudo com o advento da revolução tecnológica ou 4.0 e o possível impacto na doutrina da proteção integral e prioridade absoluta.
Palavras-chave: trabalho infantil; trabalho ilícito e proibido; proteção integral; panorama normativo; desafio contemporâneo.
1. INTRODUÇÃO
O advento da revolução tecnológica ou revolução 4.0, bem como o avanço na dinamização das relações sociais têm efetuado acentuadas mudanças no mercado de trabalho. Se, por um lado, emerge acentuada discussão sobre as alterações advindas quanto às formas da contratação da força laboral no mundo atual, não mais circunscrita ao padrão ordinário do liame empregatício estabelecido conforme conjugação dos requisitos do art. 2º e 3º da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), de outro se sobressai a preocupação com a exploração do trabalho infanto-juvenil.
Questionamentos diversos acerca de, até que ponto, a execução de atividade remunerada, seja direta ou indireta, por crianças e adolescentes pode atingir a sua higidez física e mental eclodem na sociedade, sobretudo com o avanço da utilização de ferramentas tecnológicas e virtuais.
A partir do panorama internacional previsto para a proteção das crianças adolescentes e da mudança, no plano interno, inaugurada pela Constituição Federal de 1988 (CF/88), far-se-á a reflexão sobre os possíveis efeitos e impactos gerados sobre o patamar civilizatório mínimo assegurado à pessoa infanto-juvenil.
Por intermédio da análise das hipóteses de trabalho ilícito e proibido, de acordo com a teoria das nulidades trabalhistas, e do contraponto com as novas formas de exploração do trabalho infanto-juvenil que têm surgido na sociedade, busca-se, ao final, apresentar uma conclusão sobre qual a melhor forma de se manter o dever de solidariedade imposto ao Estado, à sociedade e à família quanto à proteção integral e prioridade absoluta da criança e do adolescente quando inseridos no mercado de trabalho.
2. TRABALHO INFANTIL. PANORAMA NORMATIVO DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL E INTERNO.
O reconhecimento de que, ao longo da história da sociedade mundial, crianças e adolescentes foram alvo da exploração da sua força de trabalho, com submissão a jornadas extenuantes e condições de trabalho degradantes, acirrou o debate sobre a necessidade de proteção infanto-juvenil.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT), instituída pelo Tratado de Versalhes de 1919 e com atuação desde a primeira guerra mundial (1914-1918), vem combatendo a exploração do trabalho infantil como um dos seus eixos centrais de concretização da paz e justiça social. A partir da inclusão, pelo organismo internacional, da “abolição efetiva do trabalho infantil” como princípio de e direito fundamental no trabalho (“core obligation”), na Declaração de Filadélfia que integra o anexo do instrumento da Constituição da OIT, alargou-se o panorama normativo de proteção à criança e ao adolescente no âmbito externo.
Nesse sentido, destaca-se a existência da Convenção 138 da OIT, que estabeleceu, como idade mínima de admissão ao emprego, aquela coincidente com a de conclusão da escolaridade obrigatória, mas nunca inferior a quinze anos (art. 2º, item 3), sem que se descuide do compromisso de todos os países-membros em que vigore a convenção de
seguir uma política nacional que assegure a efetiva abolição do trabalho infantil e eleve, progressivamente, a idade mínima de admissão a emprego ou a trabalho a um nível adequado ao pleno desenvolvimento físico e mental do adolescente (OIT, Convenção 138, art. 1º).
Emerge, ainda, no âmbito da Organização Internacional do Trabalho, o estabelecimento da proibição das piores formas de trabalho infantil e a ação imediata para a sua eliminação, cujo regramento consta na Convenção 182 do organismo internacional, destacando-se, dentre outros, “o trabalho que, por sua natureza ou pelas condições em que é realizado, é suscetível de prejudicar a saúde, a segurança ou a moral das crianças” (OIT, Convenção 182, art. 3º, d).
No plano internacional, também não há como se olvidar a proteção assegurada na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (DUDH), que prevê a proteção à infância e social de todas as crianças (art. 25, item 2); a adoção e preservação de medidas de proteção e de assistência à crianças e adolescentes, inclusive contra a exploração econômica e social, estabelecida no art. 10, item 3, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (PIDESC); a salvaguarda dos direitos da criança estabelecida pelo art. 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (CADH) e art. 16 do seu Protocolo Adicional (Protocolo de San Salvador de 1998); e o largo arcabouço protetivo também estabelecido por intermédio da Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1989.
Seguindo a mesma linha da importância de proteção à criança estabelecida no plano internacional, a Constituição Federal de 1988 (CF/88), reconhecida pelos estudiosos do direito como a Carta Cidadã, haja vista o seu lastro no regime democrático e adoção da dignidade humana como fundamento, vetor e centro de gravidade de todo o ordenamento jurídico (art. 1º, “caput”, III), promoveu significativa mudança no regramento interno.
Isto porque, se até o advento da promulgação da CF/88, vigia no Brasil a doutrina do menor em situação irregular e do tratamento da criança e do adolescente sem a observância da sua efetiva condição de sujeito de direito (Código de Menores de 1927), a Constituição de 1988 inaugurou a doutrina da proteção integral e da absoluta prioridade.
Consoante disposição constante do art. 227, da CF/88, à família, à sociedade e ao Estado estabeleceu-se o dever de solidariedade de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, direitos fundamentais que preservem o seu patamar civilizatório mínimo de dignidade, destacando-se, dentre outros, a profissionalização, ante o objeto do presente trabalho.
Consignou-se, ainda, como efetivo direito social, a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos” (arts. 7º, XXXIII, e 227, §3º, I) – o que converge para os ditames propugnados pela OIT na sua Convenção 138 que, no plano interno, assume posição hierárquica de supralegalidade, consoante art. 5º, §§1º e 2º, da CF/88.
Posteriormente, no plano infraconstucional, o advento da Lei 8.069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em atenção aos ditames estabelecidos na Convenção sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1989, também reforçou a necessária observância da doutrina da proteção integral em seu art. 3º; a absoluta prioridade na efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente (art. 4º); exortando-se o combate a qualquer “forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 5º) e o respeito à condição da criança e do adolescente de pessoa em desenvolvimento (art. 6º).
Imperioso destacar, ainda, no âmbito da legislação ordinária, o regramento estabelecido na Consolidação das Leis do Trabalho, que, em seus artigos 402 e seguintes, trata da proteção do trabalho da criança e do adolescente, devendo a sua leitura e aplicação se moldarem aos ditames de proteção consignados na CF/88, para fins de recepção normativa, e o capítulo “Do direito à profissionalização e à proteção no trabalho”, constante no ECA, acerca da regulamentação do trabalho da criança e do adolescente.
É a partir deste largo arcabouço de proteção que, portanto, se deve averiguar as hipóteses de trabalho ilícito e proibido do trabalho infantil, ou seja, aquele realizado por menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze.
3. TRABALHO INFANTIL ILÍCITO E TRABALHO INFANTIL PROIBIDO.
Conforme lições de Alexandre Agra Belmonte (2004),
Objetos dos direitos são os bens da vida, juridicamente tutelados. O objeto ilícito não é merecedor da tutela jurídica, não podendo sobre ele incidir direitos e obrigações; o objeto impossível não pode ser realizado, daí porque sobre ele não pode incidir direitos e obrigações; finalmente, sobre o bem da vida que não pode ser determinado não pode incidir direitos e obrigações.
O objeto é lícito, quando não é contrário ao direito, à moral e aos bons costumes, sendo evidente a ilicitude da locação de um imóvel para despejo de pessoas exterminadas por um desafeto delas: o uso residencial, comercial ou não residencial são os efeitos normais lícitos para a prática do ato. (BELMONTE, 2004, pág. 142).
A definição tem por base o requisito de validade do negócio jurídico previsto no art. 166, II, do Código Civil, do qual se extrai, em conjugação com o art. 169, do mesmo diploma legal, a impossibilidade de sua confirmação ou convalidação pelo decurso do tempo, não havendo que se falar na produção válida de efeitos.
Sob o tema, elucidativa também é a contribuição de Augusto César Leite de Carvalho (2023), ao destacar que, considerando-se a prestação de serviços como o objeto de uma relação de trabalho, nem sempre a ilicitude se encontra no objeto do negócio jurídico em si:
Caso a ilicitude não esteja na prestação de trabalho, mas sim nos motivos que inspiraram sua contratação, haverá causa ilícita, não se cogitando mais de objeto ilícito. A proximidade entre essas duas noções provoca alguma perplexidade no plano teórico, mas a raridade com que a jurisprudência enfrenta casos de causa ilícita faz dessa confusão, no plano prático, um problema menor. (CARVALHO, 2023, pág. 382).
No âmbito trabalhista, é pacífica a jurisprudência no sentido de que, a prestação de serviços permeada de ilicitude não se reveste de qualquer validade, motivo pelo qual não há que se falar na produção de efeitos, retroagindo a declaração da nulidade ao seu início, ou seja, imprimindo-se os efeitos ex tunc de reconhecimento na seara civilista.
Nesse sentido, a título de amostragem, a sedimentação do entendimento firmado pelo C. Tribunal Superior do Trabalho, responsável por uniformizar a legislação federal em matéria trabalhista:
OJ-SDI1-199 JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO (título alterado e inserido dispositivo) - DEJT divulgado em 16, 17 e 18.11.2010. É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico. (TST, 2023, pág. 254).
Nesse diapasão, todas as vezes que se estiver diante de um trabalho prestado por criança ou adolescente e cujo objeto convirja para atividade ilícita, qual seja, aquela prevista no ordenamento jurídico como conduta típica e com antijuridicidade, estar-se-á diante da figura do trabalho ilícito infanto-juvenil.
Entretanto, em tais hipótese, não há como se desconsiderar a distinção existente sobre a presença de trabalhador hipossuficiente e que detém a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento já mencionada e a que se refere o art. 6º, do ECA.
Justamente por isso é que se defende que, nas hipóteses em que constatada a sujeição de criança ou adolescente a trabalho ilícito, como, por exemplo, no caso do “aviãozinho” (criança que transporta e faz entrega de entorpecentes) na atividade de tráfico de drogas, não se pode ignorar que o não reconhecimento dos direitos pecuniários da criança e do adolescente acarretará a sua revitimização.
Ainda que não se possa falar, mesmo que se preenchidos os requisitos do art. 3º da CLT, na declaração formal de liame empregatício, com anotação em Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), imperiosa se faz a condenação, pelo Estado-Juiz, de todas as parcelas trabalhistas porventura incidentes, sob pena de desconsideração de todo o arcabouço protetivo estabelecido no âmbito internacional e interno à criança e ao adolescente.
Em tais hipóteses, defende-se, ao menos, a aplicabilidade do entendimento, também sedimentado pelo C. Tribunal Superior do Trabalho, acerca da contratação, pela Administração Pública, de pessoa para lhe prestar serviços sem o necessário requisito do concurso público exigido no art. 37, II e §2º, da CLT), e no qual se reconhece o direito ao “pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS” (Súmula 363, TST).
De outro lado, tem-se a configuração do trabalho proibido como aquele que, embora preenchidos os requisitos de sua existência e a validade, são vedados à criança e adolescente, porque prejudiciais à sua saúde, formação e moral. Em tal rol podem-se citar não só o trabalho noturno, perigoso, penoso ou insalubre, àquele que não contar com 18 anos completos, conforme art. 7º, XXXIII, da CF/88, art. 67, I e II, do ECA, e arts. 404 e 405, I, da CLT, como também todo aquele que for de encontro à sua higidez física, psicofisiológica e moral.
Se há alguma cizânia sobre, no caso de o trabalho ser ilícito, ainda assim se reconhecer todos os direitos pecuniários à criança e adolescente objeto de exploração econômica, não há dúvidas quanto ao reconhecimento nas hipóteses do trabalho proibido. De acordo com a teoria das nulidades trabalhistas, à criança e ao adolescente porventura insertos em atividade que lhe é proibida são assegurados todos os direitos trabalhistas, o que acaba por dispensar maiores digressões.
No tocante à matéria abordada, não há como não se registrar, outrossim, o destaque da regulamentação dos artigos 3º, “d” e 4º, da Convenção 182 da OIT internalizada em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto 6.481, de 12 de junho de 2008, e que elenca a “lista das piores formas de trabalho infantil” (Lista TIP), consignando as hipóteses de trabalhos prejudiciais à saúde e à segurança e prejudiciais à moralidade do menor em diversas atividades econômicas desempenhadas no mercado empresarial, ao que se recomenda a necessária leitura.
4. TRABALHO INFANTIL. DESAFIO CONTEMPORÂNEO
Estabelecidas as premissas normativas e a necessária distinção entre o trabalho ilícito e proibido, pode-se passar à problemática atual que tem sido enfrentada no mundo contemporâneo acerca das novas formas de exploração do trabalho infanto-juvenil.
Se outrora a preocupação e o combate se concentravam nas atividades industriais, rurais e domésticas – o que, registre-se, ainda persiste e se faz necessário o olhar atento –, o advento de tecnologias e do demasiado uso de mídias digitais trouxe à tona outras hipóteses de vilipêndio ao patamar mínimo de dignidade e civilização da criança e adolescente.
Exemplo que não há como ser desconsiderado diz respeito à figura dos “youtubers mirins”, assim denominados por Guilherme Guimarães Feliciano “et al.” como “as crianças apresentadoras e/ou “estrelas” de canais no Youtuber”. Por intermédio da aparição visual e sonora, as crianças e adolescentes passaram utilizar as plataformas de redes sociais para o desempenho de diversas atividades, sobressaindo-se o questionamento acerca da sua natureza efetiva de trabalho e o impacto causado à sua saúde e formação.
Neste ponto, faz-se importante relembrar que se configura a exploração do trabalho infanto-juvenil não apenas quando houver o seu ajuste formal e estabelecimento de contraprestação expressa, bastando-se que se evidencie o exercício de atividade do qual se extraia conteúdo economicamente lucrativo.
Diversos são os casos de canais em plataformas de redes sociais que demonstram não só a rotina do dia a dia de crianças e adolescentes, como que também promovem atividades que, ainda que inicialmente sobre o prisma lúdico, transformam-se em efetiva monetização do tempo e esforço despendido pelo menor.
Consoante elucida Guilherme Guimarães Feliciano “et al.”,
A questão central, em todo caso, está na oportunidade malfazeja que crianças e adolescentes passam a ser expostas e exploradas perante milhares – quando não milhões – de indivíduos, não raramente sob a batuta de seus próprios pais ou responsáveis, sujeitando-se a horas de gravações para produzir o material de seus canais, não raramente com violação atual ou potencial de diversos dos seus direitos humanos fundamentais (civis, sociais, econômicos, culturais): o direito à honra, o direito à imagem, o direito à intimidade e à vida privada, o direito à integridade (especialmente a psíquica), o direito à educação, o direito ao lazer, o direito ao produto do próprio trabalho etc. (FELICIANO “et al.”, 2021, p. 40).
Embora não se olvide que, no plano internacional, há ressalva da aplicação à idade mínima estabelecida pela OIT em sua Convenção de n. 138 às hipóteses de participação em representações artísticas (OIT, Convenção 138, art. 8º), não há que se falar no enquadramento automático e imediato das atividades exercidas por crianças e adolescentes em todo o aparato da rede virtual de computadores a tais casos, sob pena de generalização em nítido prejuízo à proteção integral que, reitere-se, é princípio inafastável da análise de toda a atuação da pessoa infanto-juvenil na sociedade.
Nesse sentido, confira-se a irreparável lição de Augusto César Leite de Carvalho, quando se debruça sobre a proteção da criança e do adolescente à luz do princípio da igualdade:
O art. 8º da mencionada Convenção n. 138 da OIT contém preceito que, a bem da verdade, relativiza a proteção que se pretende integral, porquanto admite que a autoridade competente permita “exceções para a proibição de emprego ou trabalho provida no art. 2º desta Convenção, para finalidades como a participação em representações artísticas”. Na esteira desse permissivo, não somente a sociedade tem satisfeita a vontade de avistar crianças no elenco de filmes, séries, comerciais e novelas de televisão, independentemente do mal que a prática pode virtualmente proporcionar ao desenvolvimento dos atores mirins, como outras autorizações têm surgido a pretexto de que a alusão ao trabalho artístico seria meramente enunciativa.
O princípio da proteção integral deve ser invocado, por outro ângulo, como óbice à exploração do trabalho infantil e, para obstar que assim se dê, a Convenção n. 182 da OIT, igualmente convenção fundamental e também ratificada pelo Brasil, proíbe terminantemente as piores formas de trabalho infantil, identificadas na Lista TIP (Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil) e exemplificadas no art. 4º do Decreto n. 6.481 de 2008: (...)”. (CARVALHO, 2023, pág. 329).
Há de se destacar, no tocante à referência à Lista TIP mencionada pelo autor citado, que a sua leitura deve ser feita não apenas sob a ótica de um rol taxativo, visto que, ao nos debruçarmos sobre as novas mazelas que podem atingir a criança e o adolescente, quando da sua sujeição ao trabalho infantil, surgem outros riscos que não podem ser ignorados pela mera justificativa de não previsão normativa.
Tomado o caso dos “youtubers mirins”, por exemplo, não se ignora os riscos à visão e sensibilidade decorrentes da acentuada exposição em frente a computadores.
Medida importante e que poderia ter contribuído para, no âmbito da microjustiça que incumbe ao Estado-juiz, salvaguardar os interesses e direitos da criança e adolescente, consistiria no reconhecimento de que a Justiça do Trabalho é a que mais tem meios para a análise de liberação de atividades artísticas e da atuação em redes sociais congêneres como a comentada nas passagens anteriores.
Com efeito, com o advento da EC 45 de 2004, que alargou a competência estabelecida para a Justiça do Trabalho, no art. 114 da CF/88, outra não poderia ser a conclusão e que o juiz do trabalho é o que melhor detém condições de averiguar todos os requisitos necessários à salvaguarda da saúde, física e mental, bem como da dignidade do trabalhador infanto-juvenil.
A par, inclusive, da existência de referência à figura do Juiz de Menores, termo que remetia ao já revogado Código de Menores de 1927, no art. 405, §2º, da Consolidação das Leis do Trabalho, caminhava-se para o entendimento de que a liberação de atividades artísticas incumbiria à Justiça do Trabalho.
Destaca-se, nesse sentido, a instituição do Juízo Auxiliar da Infância e Juventude no âmbito do E. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, cuja atuação visou regular e apreciar os pedidos de autorização para trabalho infanto-juvenil na circunscrição.
Entretanto, o E. Supremo Tribunal Federal, data vênia, em sentido contrário à máxima efetividade da proteção à criança e ao adolescente, no âmbito do trabalho, afastou a competência da Justiça do Trabalho para tal desiderato, conforme apreciação de medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.326, assentando a competência do Juízo cível da Infância e Juventude sob a ótica do art. 149 do ECA, que trata da participação da criança e adolescente em representações artísticas, não obstante a regulamentação do trabalho infanto-juvenil no diploma esteja topologicamente estabelecido em capítulo diverso da norma (arts. 60 a 69 do ECA).
Outro exemplo que se pode apontar acerca dos desafios contemporâneos na análise do trabalho da criança e do adolescente diz respeito ao avanço de legislações que, sob o viés de apontar a contribuição para a formação educacional, social e moral infanto-juvenil, estabelecem práticas que, na verdade, vilipendiam o patamar de proteção integral assegurado constitucionalmente.
Nesse sentido a edição da recente Lei 14.597, de 14 de junho de 2023 – Lei do Esporte, que, ao tratar da formação esportiva, estabeleceu em seu art. 5º, §1º, a possibilidade de atividade de desporto à pessoa em desenvolvimento com 12 anos de idade, não obstante a existência de legislação que, ao tratar da atividade de desporto, estabelece a idade mínima de 16 anos, conforme patamar mínimo estabelecido na CF/98 (Lei 9.615, de 24 de Março de 1998 – Lei Pelé, arts. 3º e 29).
Quanto ao tema, registrem-se as críticas de Diego Catelan Sanches e Marcos Neves Fava das quais se compartilha:
Que tempos de barbárie são esses nos quais ignora-se ser proibida a aprendizagem profissional desportiva por crianças menores de 14 (quatorze) anos?
A Lei Geral do Esporte aproveita-se da disseminação da exploração do trabalho infantil e não admite proporcionar aos atletas mirins o patamar civilizatório estabelecido pela Constituição há mais de 30 (trinta) anos.
Pior, desconsidera ser a atividade desportiva profissionalizante reconhecidamente de risco elevado, excedente do normal exigido pelas atividades físicas em geral, em que pese obrigar as entidades de prática desportiva a contratar seguro de vida e de acidentes pessoais, com o objetivo de cobrir os ricos aos quais os atletas e os treinadores estão sujeitos, inclusive a organização esportiva que o convoque para a seleção”; (art. 84). (SANCHES;FAVA, 2023).
O avanço de novas práticas na sociedade, inequivocamente, merece a atenção do legislador, do estudioso, do profissional do direito, do Estado-Juiz e da sociedade, a fim de que o dever de solidariedade que emana do art. 227, da CF/88, na proteção das crianças e dos adolescentes seja efetivamente salvaguardado.
5. CONCLUSÃO
A produção normativa internacional estabelece patamar de proteção à criança e adolescente que não pode ser desconsiderada pelos Estados na regulação das atividades ocorridas na sociedade, não se podendo ignorar o avanço realizado pelo Constituinte Originário de 1988 ao estabelecer a doutrina da proteção integral e da prioridade absoluta aliada ao reconhecimento da dignidade humana como vetor e eixo central do ordenamento jurídico.
Em concretização ao efetivo dever de solidariedade previsto no art. 227, da CF, faz-se necessária a observância de que não haja vilipêndio ao patamar de dignidade e civilizatório mínimo assegurado à criança e adolescente, o que se estende ao mundo do trabalho.
Para além da coibição e abolição de todas as formas de trabalho infantil, acentuando-se o combate à revitimização, quando encontrada a exposição da criança e do adolescente a trabalho ilícito e proibido, deve toda a sociedade e o Estado também acompanhar as novas formas de organização, atividades e relações sociais que tem eclodido no mundo moderno.
Não há que se falar na possibilidade de flexibilização do largo arcabouço protetivo diante do advento de novas tecnologias decorrentes da revolução tecnológica ou 4.0, tampouco na ausência de distinção de atividades lúdicas ou artistas daquelas que, efetivamente, consubstanciam como trabalho infantil e que acarretam monetização do tempo e esforço despendido pela criança e pelo adolescente.
O amadurecimento e a reflexão de que, no âmbito da microjustiça realizada pelo Estado-Juiz, a Justiça do Trabalho seria a mais qualificada para o enfrentamento dos novos formatos surgidos na modernidade, a exemplo de atividades artísticas em plataformas virtuais e redes sociais, são salutares para que, no âmbito do mercado de trabalho, se expanda à proteção integral e prioridade absoluta da criança e do adolescente como efetivo sujeito de direito.
REFERÊNCIAS
BELMONTE, Alexandre Agra. Instituições Civis no Direito do Trabalho. Curso de Direito Civil Aplicado ao Direito do Trabalho. 3ª edição. 2004.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF.
BRASIL. Código Civil. Lei 10.406/02. Brasília, DF.
BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Decreto-Lei nº 5.452. Brasília, DF.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069/90. Brasília, DF.
CARVALHO, Augusto César Leite. Direito do Trabalho Curso e Discurso. 5ª Edição. 2023.
DAS CHAGAS, Gustavo Luís Teixeira. MIESSA, Élisson. Legislação de Direito Internacional do Trabalho e Proteção Internacional dos Direitos Humanos. 6ª edição revista, ampliada e atualizada, 2023.
DELGADO, Mauricio Godinho “et al.” CLT organizada. JusPodivm. 5ª edição revista, atualizada e ampliada. 2023.
FELICIANO, Guilherme Guimarães “et al.". O trabalho além do Direito do Trabalho. Dimensões da Clandestinidade Jurídico-Laboral. Capítulo 1. “Youtubers Mirins: do glamour Virtual aos Dilemas Reais”. 2021.
SANCHES, Diego Catelan. FAVA, Marcos Neve. “Oséas Cabeceia Livre”. Revista LTR. 87-09/1104, Vol. 87, n. 09, set. 2023.
Analista Judiciário - Área Judiciária do E. TRT da 2ª Região. Ocupante do Cargo em Comissão de Assessor de Desembargador, como servidor efetivo do E. TRT da 2ª Região. Bacharel em Direito pela FMU - Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas. Especialista em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito - EPD.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JUNIOR, Augusto César Pires Souza. Trabalho infantil: aspectos constitucionais e infraconstitucionais e o desafio contemporâneo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 nov 2023, 04:50. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /63734/trabalho-infantil-aspectos-constitucionais-e-infraconstitucionais-e-o-desafio-contemporneo. Acesso em: 29 dez 2024.
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