O desejo de viver para sempre é natural ao ser humano. Dele derivam boa parte das convicções religiosas. Freud chega a dizer que o inconsciente acredita que nunca morrerá. A idéia da morte é simplesmente inconcebível em um nível mais profundo.
Em uma sociedade cada vez mais afastada da religiosidade, o “desejo de ser imortal” não pode esperar por uma vida além desta realidade física. Tem que se realizar aqui. Os novos “sacerdotes” dessa imortalidade são médicos. A nova religião é a medicina, que deve fazer nossa vida durar “infinitamente”. Qualquer falha nessa missão será considerada imperdoável em vista dos gigantescos avanços da tecnologia médica.
Os avanços das condições médicas e sanitárias aumentaram drasticamente a expectativa de vida. Em média, nossa expectativa de vida é mais do que o dobro de nossos bisavôs.
Obviamente, esse desejo tem esbarrado na cruel realidade dos fatos. Nunca seremos imortais. E os “efeitos colaterais” da persistência obstinada em manter a vida a qualquer custo (a distanásia) aparecem na forma de sofrimento desnecessário para o paciente. Mais cedo ou mais tarde, a morte virá. De maneira razoável, podemos adiá-la até o ponto em que tudo se resume à agonia. Nessa situação, prolongar a vida artificialmente por alguns dias ou algumas semanas como um fim em si mesmo é uma afronta ao princípio da dignidade humana.
Pois bem. Baseado nesse entendimento, o Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 1.805/2006, que permite e regulamenta a ortotanásia, ou seja, a interrupção dos procedimentos médicos de prolongamento da vida quando o paciente encontra-se em estado terminal, ou seja, sem chances de recuperação. São prestigiados os princípios da autonomia da vontade, pois o procedimento depende da anuência do paciente ou de seu representante legal; da beneficência, pois determina que o paciente continuará a receber assistência integral para aliviar seu sofrimento; e da sacralidade da vida, de origem cristã, segundo o qual não cabe ao ser humano abreviar seu tempo de vida, posto que esse direito é indisponível. Portanto, é uma situação essencialmente diferente da eutanásia, em que ativamente são utilizados procedimentos para cessar imediatamente a vida de quem está em sofrimento.
Essa resolução, a despeito de seu conteúdo bastante razoável, foi atacada pelo Ministério Público Federal em ação civil pública, com requerimento de tutela antecipada. Em extensa petição, foi requerida sua imediata revogação[1]. A liminar requerida foi deferida, o que ocasionou a suspensão dos efeitos da Resolução 1.805/2006. Assim, volta a estar proibida administrativamente a ortotanásia. Os médicos voltam a serem obrigados a utilizar todos os recursos necessários ao prolongamento da vida do paciente, mesmo que isso cause intenso sofrimento, piorando a qualidade de vida do enfermo terminal.
A fundamentação da decisão foi o fato de que, na visão do magistrado, a ortotanásia “parece ser um homicídio”. Trata-se de um conceito bem frágil para uma decisão liminar, que exige o juízo de verossimilhança (Código de Processo Civil, art. 273). E há argumentos bastante sólidos em sentido contrário[2].
Nesse ponto, é inevitável lembrarmos de José Saramago, que, em seu livro “As Intermitências da Morte”[3], narra uma situação em que a morte simplesmente “deixou de ocorrer” em determinado país. Todas as pessoas mantinham-se vivas, mesmo os pacientes terminais. Formou-se, rapidamente, uma multidão de moribundos, pessoas que, mesmo contra sua própria vontade, ficavam indefinidamente em um limbo entre a vida e a morte.
A autonomia do indivíduo é desprezada em nome de uma ilusória proteção. De acordo com esse pensamento de matriz esquerdista, nunca seríamos capazes de decidir nada, pois estaríamos sempre a mercê de algum fator externo, principalmente de caráter social ou econômico. Nem o consentimento livre e informado do paciente seria suficiente.
Os regimes totalitários esmeraram-se em cuidar de cada aspecto da vida das pessoas. Tudo deveria ser determinado pelo Estado, inclusive o que sentir e o que pensar[4]. Comumente, o Estado se vê tentado a considerar as pessoas como menores que requerem proteção e passa a legislar sobre aspectos mínimos da vida de cada um. Proibir a ortotanásia é uma dessas tentações. Temos que viver a qualquer custo porque o Estado, por razões “quase esotéricas”, diz que isso é melhor para nós. Essa ideologia transparece de forma assustadora na petição inicial da ação civil pública, in verbis:
“Devem ser analisados todos os casos, mas caso a caso, de forma que, mesmo de lege ferenda, determinar se uma conduta médica ou dos representantes legais do paciente terminal, consciente ou não, capaz ou não, DEVE OBRIGATORIAMENTE passar pelo crivo dos entes legitimados constitucionalmente para dar a última palavra sobre o fim de uma vida: O Ministério Público e o Judiciário.” (grifou-se)
Assim, não importa se o paciente está consciente ou não, é capaz ou incapaz. De qualquer maneira, ele não tem condições de decidir sobre como e quando será o fim de sua vida. Quem tem esse poder é o Estado, na figura do magistrado e do membro do Ministério Público. Seríamos todos absolutamente incapazes, a espera do “Grande Irmão” que viesse dizer o que é melhor para nós?
A vida é um direito indisponível, ou seja, não pode ser extinta por quem a detém. Isso é completamente diverso da situação em que a pessoa aceita o fim natural de sua vida. Não se pode confundir indisponibilidade com eternidade nem eutanásia com ortotanásia.
Além disso, o direito à vida, como qualquer direito, não é absoluto. Deve ser constantemente sopesado com outros direitos. Essa é a técnica uniformemente aceita de ponderação dos princípios constitucionais, que deve ser utilizada em cada caso concreto, não apenas pelos operadores do Direito, mas também por todos nós, que, não raramente, somos levados a fazer escolhas em situações difíceis[5].
Uma dessas situações ocorre quando tratamos de pacientes terminais, pois o princípio da autonomia da vontade e a proibição de tratamentos cruéis e desumanos também devem ser considerados em cada situação. E eventualmente, o direito a vida pode ceder em alguns casos, para que se possa preservar o atributo essencial do ser humano: a sua dignidade, que impõe a toda a sociedade o dever de considerá-lo como um sujeito de direitos, que deve ter voz ativa no comando de seu próprio destino.
[1] O Procurador da República utiliza vários argumentos para demonstrar a incompatibilidade da resolução com a lei e com a Constituição. Não seria o caso de anulação? Aliás, poderia o Judiciário revogar um ato administrativo?
[2] Esses argumentos foram enumerados em artigo de nossa autoria: “A ortotanásia e a Resolução CFM N° 1.805/2006”, disponível em http://www.alexandremagno.com/read.php?n_id=214.
[3] Editado pela Companhia das Letras em 2004.
[4] Exemplo que chega a ser caricato é a recente determinação chinesa de que os lamas tibetanos não poderiam reencarnar sem a autorização do Partido Comunista!
[5] Dworkin denomina essas situações de “hard cases”.
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