Indaga-se: para fins de demarcação do prazo decadencial, previsto no art. 173, II, do CTN, vício de competência, isto é, quando o agente fiscal age sem estar legalmente investido no cargo, ou estando, excede-se nas atribuições que a lei lhe confere, é vício de forma?
IntroduçãoTratando do direito de o Fisco constituir o crédito tributário, por meio das modalidades de lançamento de ofício e por declaração, o prazo decadencial tem diferentes termos de início, dependendo da hipótese a ser tratada, conforme dispõe o art. 173 do CTN.(1)
Nesse sentido, disciplina o inciso II, do art. 173, do CTN:
“Art. 173 - O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
(...)
II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.”
Esse excerto legal está a dizer que da data da decisão definitiva, administrativa ou judicial, que tenha anulado por vício formal o lançamento tributário, anteriormente efetuado, terá o Fisco mais cinco anos para proceder a um novo lançamento.
O mencionado inciso II, do art. 173, do CTN, é muito criticado pela doutrina no sentido de estar, além de introduzindo uma causa de interrupção ao prazo decadencial, oferecendo um novo prazo como prêmio ao que praticou o ato nulo,(2) consagrando assim “a teoria do benefício do erro a favor do infrator”.(3)
Não obstante essas colocações, torna-se importante observar que a aplicação desse dispositivo é bastante específica, isto é, está ela limitada à anulação do lançamento e, tão-somente, por vício formal.
A título de exemplo, citamos o caso hipotético em que:
(1) o Fisco lavra auto de infração – AI, em 2003, constituindo o crédito tributário referente a fatos geradores dos exercícios de 2000 e 2001;
(2) o autuado impugnou o AI, no prazo legal, nos termos do art. 151, III, do CTN, obtendo decisão favorável em 1ª instância, da qual a Administração interpôs recurso de ofício à 2ª instância;
(3) o órgão julgador de 2ª instância administrativa, em decisão definitiva de 12 de julho de 2006, anulou o AI, por vício formal, retornando os autos ao setor de fiscalização para refazer o AI;
(4) o Fisco terá então, nos dizeres do art. 173, II, do CTN, e por se tratar de vício formal, mais cinco anos, a contar da decisão definitiva do órgão julgador (12.07.2006), para constituir o crédito tributário referente aos fatos geradores dos exercícios de 2000 e 2001, ou seja, poderá constituí-lo até a data de 12 de julho de 2011.
2. O Vício FormalA determinação do início do prazo decadencial para o novo lançamento, descrito no art. 173, II, do CTN, resume-se em saber se a anulação do lançamento, em decisão definitiva, foi por vício formal ou não. O que seria então vício de forma?
Segundo De Plácido e Silva:(4) “Vício de Forma. É o defeito, ou a falta, que se anota em um ato jurídico, ou no instrumento, em que se materializou, pela omissão de requisito, ou desatenção à solenidade, que se prescreve como necessária à sua validade ou eficácia jurídica”, e ainda: “Formalidade - Derivado de forma (do latim formalitas), significa a regra, solenidade ou prescrição legal, indicativas da maneira por que o ato deve ser formado”.
Leciona Marcelo Caetano(5) que: “O vício de forma existe sempre que na formação ou na declaração da vontade traduzida no ato administrativo foi preterida alguma formalidade essencial ou que o ato não reveste a forma legal”. Esclarece, ainda, que: “Formalidade é, pois, todo ato ou fato, ainda que meramente ritual, exigido por lei para segurança da formação ou da expressão da vontade de um órgão de uma pessoa coletiva”.
Por esses excertos doutrinários, um lançamento tributário é anulado por vício formal quando não se obedece às formalidades necessárias ou indispensáveis à existência do ato, isto é, às disposições de ordem legal para a sua feitura.
Estatui o art. 59 do Decreto nº 70.235/72,(6) que trata do processo administrativo fiscal da União:
“Art. 59. São nulos:
I – os atos e termos lavrados por pessoa incompetente;
II – os despachos e decisões proferidos por autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa.”
Podemos observar que a legislação tributária da União sobre a matéria limita-se a considerar nulos apenas os atos (atos, termos, despachos e decisões) praticados por pessoa ou autoridade incompetente ou com preterição do direito de defesa. E, quanto aos demais vícios, poderiam eles ensejar a nulidade de atos?
Descreve Antônio da Silva Cabral,(7) que “erram, assim, as decisões e os acórdãos que afirmam ser as hipóteses mencionadas no art. 59 as únicas que podem acarretar a nulidade processual”, referindo-se ao dispositivo do Decreto nº 70.235/72, acima transcrito.
No Código de Processo Civil - CPC,(8) os vícios de forma que podem acarretar a nulidade de atos estão dispostos nos seus arts. 244 a 250. Já no Direito Civil, as nulidades absolutas e as relativas estão previstas nos arts. 166 e 171 do Código Civil.(9)
3. Vício de forma e vício de competênciaConsiderando os dizeres do inciso II do art. 173 do CTN, questiona-se: vício de competência, isto é, quando o agente fiscal age sem estar legalmente investido no cargo, ou estando, excede-se nas atribuições que a lei lhe confere, é vício de forma?
Há quem defenda que o vício de competência é um vício de forma. Nesse sentido, Anselmo Souza(10) assim se posiciona:
“Vício formal é defeito no processo de formação do lançamento, tal como incompetência da autoridade lançadora, falta de capitulação do fato gerador, (...). Já o vício material, diz respeito à existência da dívida, como não-ocorrência do fato gerador sujeito passivo incorreto; sujeito ativo incorreto, (...). No vício formal a dívida tributária não é declarada inexistente, mas sim tem declarada viciada sua formalização (lançamento). No vício material, a dívida que a Fazenda Pública alega existir, na verdade, não existe, (...).”
Tratando ainda sobre o tema, ao se referir ao termo inicial dos prazos fixados no art. 173 do CTN, Aliomar Baleeiro(11) se manifesta, doutrinando que, além do termo previsto no inciso I do art. 173 do CTN, o prazo decadencial se inicia:
“(...) b) do dia em que se tornar definitiva a decisão que anulou, por vício formal, o lançamento, isto é, quando este não foi feito pela autoridade competente ou foi feito com preterição de formalidade essencial à sua eficácia, segundo a lei.” (Frisamos).
Antônio da Silva Cabral,(12) por sua vez, ao tratar da Teoria das Nulidades dos Atos Administrativos, cita os principais vícios capazes de atingir o ato administrativo, demonstrando que os vícios por incompetência do agente não são vícios de forma.
Importante enfatizar que o ato de lançamento tributário, consubstanciado, por exemplo, em um auto de infração tributário, e que é considerado um ato administrativo, para que possa produzir os efeitos que lhe são inerentes, é necessário conter os requisitos imprescindíveis à sua formação: competência, forma, finalidade, motivo e objeto. Assim, o vício pode atingir tanto o requisito da competência quanto o da forma, ou ainda, ambos, demonstrando tratarem-se de vícios diversos.
Nesse sentido, a Lei nº 4.714, de 1965,(13) que regula a ação popular, também diferencia vícios de incompetência do de forma, ao disciplinar:
“Art. 2º São nulos os atos lesivos ao patrimônio das entidades mencionadas no artigo anterior, nos casos de:
a) incompetência; b) vício de forma; c) ilegalidade do objeto; d) inexistência dos motivos; e) desvio de finalidade.
Parágrafo único. Para a conceituação dos casos de nulidade observar-se-ão as seguintes normas:
a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou;
b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato; (...)” (Grifos não do original).
Por fim, a professora Dra. Maria Silvia Zanella Di Pietro,(14) palestrando no I Seminário de Direito Administrativo – TCMSP “Processo Administrativo”, de 29 de setembro a 3 de outubro de 2003, sobre o tema Pressupostos do ato administrativo – vícios, anulação, revogação e convalidação em face das leis de processo administrativo, assim se expressou:
“Eu opto por essa terminologia, porque ela está consagrada no direito positivo brasileiro, em especialmente na Lei de Ação Popular – Lei nº 4.717/1965. No artigo 2º, ela define os vícios dos atos administrativos e fala nos cinco elementos do ato: competência, objeto, forma, motivo e finalidade. Nos parágrafos do mesmo dispositivo, a lei define os vícios de cada um dos elementos. (...)
O outro vício relativo ao sujeito é a incompetência, que é o vício mais comum, que ocorre quando a autoridade pratica o ato sem ter competência legal para praticá-lo. (...).
No que diz respeito à forma, costumo dizer que ela pode ser entendida em dois sentidos: podemos considerar a forma em relação ao ato, isoladamente, e, nesse caso, ela pode ser definida como a maneira como o ato se exterioriza; (...). Em outro sentido, a forma pode ser entendida como formalidade que cerca a prática do ato: aquilo que vem antes, aquilo que vem depois, a publicação, a motivação, o direito de defesa; abrange as formalidades essenciais à validade do ato. Seja no caso de desobediência à forma, seja no caso de faltar uma formalidade, o ato vai poder ser invalidado. (...).
Eu diria que dois tipos de vícios admitem convalidação: o vício relativo ao sujeito e o vício relativo à forma, só. Os outros elementos, se estiverem viciados, geram nulidade absoluta e não permitem a convalidação do ato.
Com relação ao sujeito, se o ato é praticado por uma autoridade incompetente, é perfeitamente possível que a autoridade competente venha convalidar o ato.” (grifos nossos).
Por esses ensinamentos doutrinários, e excertos legais, podemos inferir que:
(a) tanto o vício relacionado ao sujeito, que trata da competência, quanto o vício relativo à forma, podem ser convalidados, ou seja, referem-se a uma nulidade relativa; e,
(b) o vício de competência não é vício de forma e que um não está inserido no outro.
ConclusãoDesse modo, embora possam os atos administrativos anulados, tanto por vício de competência quanto por vício de forma, serem refeitos e convalidados, o prazo de cinco anos prescrito no art. 173, II, do CTN, refere-se tão-somente ao vício de forma, não podendo ser aplicado na hipótese de uma decisão definitiva que houver anulado, por vício de competência, o lançamento anteriormente efetuado. Assim, nessa hipótese não teria a Fazenda Pública mais cinco anos da decisão definitiva que anulou o auto de infração por vício de competência para refazê-lo novamente, e sim seguir a regra geral do prazo disposto no inciso I do art. 173 do CTN.
E, é nesse sentido, que Souto Maior Borges doutrina:(15)
“Se, por exemplo, a anulação é por vício de competência, algo ‘externo’ ao lançamento e, portanto, irrelevante no tocante à sua forma, não será cabível a invocação do art. 173, II do CTN, para a fixação do prazo decadencial.”
Referências BibliográficasAMARO, Luciano da Silva. Direito tributário brasileiro. 12 ed., São Paulo: Saraiva, 2006.
BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro, atualizado por Misabel Abreu Machado Derzi. 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
BORGES, José Souto Maior. Lançamento tributário. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 1999.
CABRAL, Antônio da Silva. Processo administrativo fiscal. São Paulo: Saraiva, 1993.
CAETANO, Marcelo. Manual de direito administrativo. 10ed., Lisboa, 1973.
ROSA JÚNIOR, Luiz Emygdio F. da. Manual de direito financeiro & direito tributário. 12 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, v. II e IV.
SOUZA, Anselmo. Curso básico de direito tributário. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2006.
Notas(1) BRASIL. CTN. “Art. 173 - O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado; II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado. Parágrafo único - O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento.” Disponível em:
http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 jul. 2006.
(2) AMARO, L. S. Obra citada. p. 407. O inciso II, do art. 173, do CTN, nas palavras do autor, comete um dislate, ou seja, de um lado, ele introduz, para o arrepio da doutrina, causa de interrupção e suspensão do prazo decadencial; de outro, o dispositivo é de uma irracionalidade gritante, dando ao sujeito ativo um novo prazo de cinco anos, inteirinho, como “prêmio” por ter praticado um ato nulo.
(3) ROSA JÚNIOR, L. E. F. da. Obra citada. p. 597.
(4) SILVA, De P. Obra citada. v. IV, p. 489 e v. II, p. 317.
(5) CAETANO, M. Obra citada. p. 56.
(6) BRASIL. Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972. Dispõe sobre o processo administrativo fiscal, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 25 ago. 2006.
(7) CABRAL, A. S. Obra citada. p. 526.
(8) BRASIL. Lei nº 5.869, de 11/1/1973. CPC. Institui o Código de Processo Civil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 25 ago. 2006.
(9) BRASIL. Lei nº 10.406, de 10/1/2002. CC. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 20 jun. 2006.
(10) SOUZA, A. Obra citada. p. 202.
(11) BALEEIRO, A. Obra citada. p. 911.
(12) CABRAL, A. S. Obra citada. p. 520-521 e 524. Descreve o autor: 1.1. Vícios quanto à manifestação da vontade, mencionados por Seabra Fagundes (O Controle, cit., p.59), que os classifica em:
‘a) vícios por ausência de poder legal no agente para proceder como órgão do Estado (incompetência); b) vícios por defeito pessoal (...)’. 1.2. Vício em razão dos motivos. (...). 1.3. Vício em razão do objeto. (...). 1.4. Vício quanto à finalidade. (...). 1.5. Vício de forma. A forma, já diziam os escolásticos, é que dá o ser a uma coisa: forma dat esse rei.(...)
A forma, como disse Seabra Fagundes (O Controle, cit., p.73), ‘é o conjunto de solenidades com que a lei cerca a exteriorização do ato administrativo, estabelecendo o vínculo aparente entre a manifestação de vontade e o objeto’.
No direito fiscal, por exemplo, o lançamento obedece à forma previamente estabelecida em lei. Se a autoridade não preenche os requisitos legais, o lançamento é nulo, por vício de forma.” (...)
“As nulidades dos atos processuais podem ter os seguintes fundamentos: (...)
c) prática de um ato permitido por lei, ou não defeso, mas sem as formalidades legais. (...)
d) incompetência de quem praticar o ato. (Grifamos).
(13) BRASIL. Lei nº 4.714, de 29 de junho de 1965, que regula a ação popular. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br. Acesso em: 12 jul. 2006.
(14) Disponível em:
http://www.tcm.sp.gov.br/legislacao/doutrina/29a03_10_03/4Maria_Silvia4.htm . Acesso em: 12 jul. 2006.
(15) BORGES, J. S. M. Obra citada. p. 358.
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