1.Breve histórico
Primeiramente, para maior compreensão da matéria que será discutida neste artigo, faz-se necessário a conceituação de alguns termos jurídicos:
O usufruto é de um instituto do direito real, que consiste no direito ao uso de coisa alheia e ao gozo de seus frutos, cabendo ao usufrutuário[1], nos termos do artigo 1.394 do Código Civil, (i) a posse; (ii) o uso; (iii) a administração; e (iv) a percepção dos frutos.
A extinção do usufruto poderá ocorrer pelo termo de sua duração, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis (artigo 1.410 do Código Civil) ou, em se tratando de usufruto vitalício, com a morte do usufrutuário.
Enquanto subsistir o usufruto, o proprietário do imóvel terá a posse indireta (nu-proprietário), ocasião em que quase não será tirado proveito real, pois este perderá a posse direta[2]nuda proprietas, que significa um direito despido de suas conseqüências normais. sobre a coisa. O seu direito era chamado pelos romanos de
O bem de família designa a propriedade que é instituída pelo chefe de família, para nela ser estabelecido o domicílio familiar, que tem por escopo assegurar um lar à família ou meios para o seu sustento. Este instituto teve sua origem nos Estados Unidos, com a edição da Lei do Homestead Act[3], em 26 de janeiro de 1839.
O ordenamento jurídico brasileiro regula duas espécies de bem de família: (i) bem de família voluntário ou convencional; e (ii) bem de família involuntário ou legal.
O bem de família voluntário ou convencional é regulado pelo Código Civil de 2002, no Livro II (“Do Direito Patrimonial”), Subtítulo IV (“Do Bem de Família”), em seus artigos 1.711 e seguintes, sendo este constituído por atitude voluntária do proprietário, como um ato dede proteger sua família de eventuais oscilações econômicas futuras.
previdência, no intuitoO bem de família involuntário ou legal se constitui independentemente da iniciativa do proprietário do bem, sendo sua constituição involuntária. Está regulamentado pelos dispositivos da Lei especial nº 8.009, de 29 de março de 1990, que trata especificamente de bem de família involuntário e dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família.
Trataremos aqui a possibilidade de ser instituído bem de família sobre o imóvel em que a proprietária é proprietária da metade ideal e usufrutuária de outra metade ideal.
2. Bem de Família
Depreende-se do artigo 1.711 do Código Civil que os cônjuges ou a entidade familiar[4], mediante escritura pública ou testamento, podem destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que este não ultrapasse um terço do patrimônio líquido[5] existente ao tempo da instituição.
A finalidade deste instituto não é a de proteger o direito à família, mas proteger a entidade familiar.
O Código Civil ainda prevê que o bem de família pode ser constituído em imóvel residencial, urbano ou rural, destinado para abrigo familiar; e que poderá abranger valores mobiliários, desde que a renda obtida seja aplicada na conservação do prédio e no sustento da família (artigo 1.712, do Código Civil).
A instituição do bem de família ocorrerá por testamento ou por via de escritura pública, que conterá a individualização do prédio e a declaração de sua destinação, devidamente registrada, conforme determina a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (“Lei dos Registros Públicos”), e o artigo 1.714 do Código Civil.
São elementos essenciais para a constituição do bem de família voluntário:
(i) Propriedade do bem: O Código Civil é expresso ao estabelecer que o bem de família deve integrar o patrimônio próprio do instituidor;
(ii) Destinação do bem: A destinação do bem de família deve ser o domicílio da família; e
(iii) Solvabilidade do instituidor: Consiste na inexistência de dívida anterior à sua constituição (artigo 1.715, do Código Civil). O citado artigo estabelece que o bem de família fica isento da execução por dívidas posteriores a instituição do bem de família, exceto em se tratando de dívida proveniente de tributo referente ao mesmo imóvel ou pagamento de taxas condominiais.
O artigo 167 da Lei dos Registros Públicos, dentre outras atividades, estipula que caberá ao Registro Público o dever de registrar a instituição de bem de família.
Quanto a forma de constituição do bem de família, o Capítulo IX da Lei dos Registros Públicos, entitulado “Do Bem de Família”, em seus artigos 260 e seguintes, dispõe um roteiro prático para o registro do bem de família, conforme se vê adiante:
A instituição do bem de família deverá ser feita por meio de escritura pública, devendo constar a declaração de que o imóvel será destinado ao domicílio da família e ficará isento de execução por dívida.
O instituidor apresentará ao oficial do registro a escritura pública de instituição para que esta seja publicada. A seguir, autuará o instrumento público e demais documentos apresentados[6], certificando-se do recebimento da documentação e numerando-as.
Realizado o protocolo, terá o oficial o prazo de 30 (trinta) dias, conforme descrito em lei, para o exame formal do título. Não estando de acordo, o oficial apresentará por escrito, de forma clara e objetiva e de uma só vez, todos os motivos da recusa, para que o apresentante cumpra as exigências.
Em caso de desconformidade com as exigências ou não podendo cumpri-las, poderá requerer dúvida para ser dirimida pelo juízo competente, conforme preceitua o artigo 198 e seguintes da Lei dos Registros Públicos.
Inexistindo razão para dúvida ou se elas tiverem sido sanadas, o oficial fará a publicação, em forma de edital, constando o resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e características do prédio; além do aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta (30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito e perante o oficial.
É condição sine qua non a publicidade do ato através da publicação dos editais, como forma de prevenir credores contra possíveis prejuízos e eventual direito de impugnação, além de impedir sua concretização. Silvio Venosa entende que, a finalidade da publicação é dar conhecimento a eventuais credores que tenham motivo relevante para se opor ao ato constitutivo.
Portanto, a eficácia da instituição do bem de família voluntário, a dizer, sua impenhorabilidade, somente ocorre com o registro do título no Registro de Imóveis competente e sua conseqüente publicação, nos termos do artigo 261 da Lei dos Registros Públicos, levando-o a conhecimento de terceiros. O registro apresenta eficácia constitutiva, provocando a sua publicidade efeito erga omnes, com aptidão para produzir o efeito de resguardar a boa-fé de terceiros. Sem o registro não há instituição do bem de família voluntário.
Qualquer vício no procedimento do registro do bem de família poderá acarretar a nulidade do registro com reflexo em eventuais execuções.
Findo o prazo de 30 (trinta) dias e, não havendo reclamação, o oficial transcreverá a escritura, integralmente, no livro nº 3[7] e fará o registro na competente matrícula, arquivando um exemplar do jornal em que a publicação houver sido feita e restituindo o instrumento ao apresentante, com a nota da inscrição.
Caso seja apresentada reclamação, dela fornecerá o oficial, ao instituidor, cópia autêntica e lhe restituirá a escritura, com a declaração de haver sido suspenso o registro, cancelando a prenotação. Nesse caso, o instituidor poderá requerer ao Juiz que ordene o registro, sem embargo da reclamação.
Na hipótese de o Juiz determinar que se proceda ao registro do bem de família, restará ao reclamante o direito de recorrer à ação competente para anular a instituição ou de fazer execução sobre o prédio instituído, caso haja dívida anterior e cuja solução se tornou inexeqüível em virtude do ato da instituição.
Será irrecorrível a decisão do Juiz que determina o registro da instituição. Caso o pedido seja deferido, este será transcrito integralmente, juntamente com o instrumento.
A Lei de Registros Públicos só exige que se apresente ao oficial a escritura pública da instituição, que este mandará publicar se não houver dúvidas. A comprovação da existência da família ou entidade familiar não é exigida. Trata-se de simples declaração.
A ausência de formalidade nesse sentido pode ser alvo de eventuais fraudes, ao permitir que se institua como bem de família imóvel que não serve de domicílio a uma família. Por outro lado, a exigência da prova documental comprovando a existência da entidade familiar prejudicaria os conviventes sem filhos, em razão da união estável ser completamente informal, não se comprovando por certidão, conforme ocorre no casamento.
O bem de família voluntário tem como efeito:
(i) a impenhorabilidade relativa[8] dos bens; e
(ii) a inalienabilidade relativa[9] dos bens.
Quanto à instituição e registro do bem de família, podemos extrair da lição de Ademar Fioranelli:
Requisito essencial e indispensável para fins registrários é a condição de proprietário com título aquisitivo e definitivo registrado, em estrita observância aos princípios da continuidade e disponibilidade, e que o bem esteja a salvo de ônus ou gravames, em condições de solvência e ocupação pela família. O nosso ordenamento assim reclama, até pela finalidade da instituição, o que impossibilitaria que titulares de direitos reais mitigados – promitentes compradores, cessionários, promitentes cessionários ou mesmo o usufrutuário – venham, nessa condição, constituir o bem de família voluntário, retirando-o do comércio, estendendo-se a proibição ao condômino em coisa comum pro indiviso, uma vez que a titularidade deve ser exclusiva.
Diante deste texto, concluímos o proprietário, nas condições descritas, não poderá instituir bem de família sobre o imóvel, em razão de não possuir a propriedade plena do imóvel, e sim o direito de uso e gozo da coisa. Não é possível o imóvel ser instituído como bem de família por não se tratar de propriedade, mas mero direito real sobre coisa alheia, não se enquadrando, portanto, na condição estabelecida pela lei para a constituição do bem de família.
Ainda que no caso em estudo, caso o proprietário detenha parte ideal do imóvel, ele não pode instituir bem de família sobre a metade do imóvel que lhe é de direito, pois o direito da outra parte detentora dos outros 50% ficaria indisponibilizado pela instituição do bem de família.
E ainda:
(...) Se no regime do bem de família legal há plena proteção dada pela Lei 8.009/90 ao mero detentor da posse, ao superficiário (art. 1.369), aos titulares de direitos decorrentes de compromisso de venda e compra, cessão (art. 1.390 a 1.418), pondo-os a salvo de execuções, não se pode dizer o mesmo para o bem de família convencional, que, por estar atrelado à iniciativa dos instituidores, dependerá de prova dominial para sua constituição..
A proibição da instituição do bem de família também se estende ao condômino em coisa comum pro indiviso[10]. Caio Mário da Silva Pereira define condomínio como:
Dá-se o condomínio quando a mesma coisa pertencer a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma das partes.
Para o Direito Civil, o condomínio consiste no direito simultâneo, tido por várias pessoas sobre o mesmo objeto. Em outras palavras, denomina-se condomínio a possibilidade da propriedade de um bem imóvel pertencer a mais de uma pessoa. Deste modo, em razão do apartamento ser um bem indivisível, não há que se falar em instituição de bem de família.
Reforça esta teoria Zeno Veloso, ao escrever em seu Código Civil Comentado, coordenado por Álvaro Villaça Azevedo:
O instituidor do bem de família tem que ser proprietário exclusivo do imóvel instituído, não podendo a instituição ser feita por condômino ou por mero usufrutuário, como enuncia J.M.Leoni Lopes de Oliveira.
Baseando-se ainda nas lições do Dr. Ademar Fioranelli, temos o seguinte:
Não basta serem simplesmente chefes de família para acionarem o instituto do bem de família, mas que detenham a condição de proprietários, com títulos devidamente registrados no Registro de Imóveis competente, em cumprimento ao disposto no artigo 195 da Lei 6015/73. Assim o usufrutuário e o locatário não podem aplicar o bem de família por não estarem revestidos da condição sine qua non de proprietários. Outro particular é que sobre a propriedade em condomínio e indiviso não há possibilidade do bem de família.
A partir da leitura do trecho acima, é evidente a proibição do bem de família voluntário, que decorre da iniciativa dos seus instituidores, por depender de prova dominial para sua constituição.
Através da assessoria prestada pelos 16º, 26º, 27º e 29º Tabeliães de Notas , assim como pelo 5º Registro de Imóveis, a conclusão é de que não é possível a instituição do bem de família voluntário nos termos em que se encontra o imóvel.
3. Conclusão
Diante do exposto, conclui-se que para proceder a instituição do bem de família voluntário no imóvel, devem ser atendidos os seguintes requisitos e condições:
(i) O instituidor deverá deter a propriedade do imóvel, com título aquisitivo ee definitivo registrado, em estrita observância aos princípios da continuidade disponibilidade;
(ii) O imóvel deverá estar à salvo de ônus ou gravames, em condições de solvência;
(iii) O imóvel deverá, ainda, servir de domicílio para a entidade familiar;
(iv) Por estar atrelado à inciativa dos instituidores, dependerá de prova dominial para sua constituição; e
(v) A propriedade do imóvel deverá ser exclusiva.
[1] Denomina-se usufrutuário o indivíduo a quem se confere o direito de usar e gozar da coisa, por um certo tempo. O usufrutuário, em princípio, pode usar a coisa ou os bens dados em usufruto, perceber os frutos, naturais, industriais, ou civis, que produzam, e gozar dos objetos sobre que o usufruto se estabelece como se fora o proprietário. O usufrutuário somente não pode alienar a coisa nem lhe dar destino que mude sua substância.
[2] A posse exprime o uso e gozo de direitos, sem qualquer relação com a coisa corpórea. Em sentido mais específico, significa a detenção material da coisa. A posse fundamenta-se em uma situação em que uma pessoa tem em mãos uma coisa ou tem à sua disposição, para que possa exercitar sobre ela os direitos que lhe competem, comportando-se como verdadeiro titular dos mesmos.
[3] O instituto do bem de família originou-se, mais precisamente no Texas, com o Homestead Act. O vocábulo homestead tem como objeto o local do lar (home=lar; stead=local). Trata-se da origem do bem de família, advindo do Direito texano que, diante da forte crise vivida pelos estados norte-americanos, criou uma nova proteção legal aos proprietários, em relação ao bem destinado à moradia.
[4] Entidade familiar é a denominação que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, confere à família, que teria as seguintes espécies: (i) a entidade familiar entre homem e mulher, constituída pelo casamento; (ii) a entidade familiar entre homem e mulher, decorrente de sua união estável; e (iii) a entidade familiar formada por qualquer dos pais e seus descendentes (parágrafo 4º do referido artigo da CF).
[5] Patrimônio líquido é a soma de todos os haveres da entidade familiar, dele se subtraindo todas as dívidas existentes ao tempo de sua instituição.
[6] Não é exigência a ser feita pelos registradores, por ser presumida e a lei assim não determinar, a comprovação prévia da insolvência do instituidor, por ocasião da constituição do bem de família, mediante apresentação de (i) certidões pessoais dos Distribuidores Cíveis; (ii) penais; (iii) da Justiça federal e (iv) as de protesto.
[7] O livro nº 3 – Registro Auxiliar – será destinado ao registro dos atos que, sendo atribuídos ao Registro de Imóveis por disposição legal, não digam respeito diretamente a imóveis matriculado, por exemplo: cédulas de crédito rural, de crédito industrial, de crédito à exportação e de crédito comercial, transcrição integral da escritura de instituição de bem de família.
[8] O artigo 1.715 do Código Civil dispõe que, em decorrência dos débitos tributários e despesas condominiais, o imóvel não estará a salvo de futuras execuções, podendo ser arrestado ou penhorado. Daí, pode-se concluir que a impenhorabilidade do bem não é absoluta, mas cede às execuções das chamadas obrigações propter rem e em outros processos de execução.
[9] A inalienabilidade que recai sobre o bem de família voluntário também é relativa, pois o artigo 1.717, do Código Civil, prevê uma possibilidade de alienação ao estabelecem que o imóvel não poderá ser alienado sem o consentimento dos interessados e seus representantes legais. O artigo 1.715 de forma expressa decreta a inalienabilidade do bem de família regularmente constituído, ainda que de forma relativa ao proibir a execução do bem por dívidas posteriores, com as exceções ali previstas, dando o entendimento de que o bem assim destinado não poderá ser oferecido em garantia real hipotecária ou mesmo em caução locatícia, sob pena de, por atos supervenientes, numa futura execução da garantia, ser decretada a falência do instituto, pela constrição – penhora e a arrematação do bem.
[10] Pro indiviso é a expressão utilizada para definir a comunhão que perdura de fato e de direito, ou seja, todos os condôminos permanecem na indivisão, tanto juridicamente como de fato. em que os condôminos não tem a posse de determinada parcela da coisa, tudo é de todos.
Estudante de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie - SP
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERREIRA, Isabela Amorim Diniz. Instituição de bem de família voluntário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2009, 08:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17326/instituicao-de-bem-de-familia-voluntario. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
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