Em conversa recente, obtive uma resposta direta de um juiz britânico, ao ser questionado sobre como o País Inglês lidava com o volume de processos, problema incontrolável no Judiciário brasileiro: “(...) minha hora é cara para o serviço público. O cidadão deve esgotar as possibilidades de conciliação extrajudicial (condomínio, bairro, município, etc...) antes de acessar meus serviços ou pagará caro se desejar pular estas etapas”.
Uma leitura mais rápida sugerirá que é uma visão que privilegia os ricos e dificulta o acesso à justiça aos menos favorecidos economicamente. Leio nas entrelinhas, entretanto, outra coisa. Em primeiro lugar, o sistema de solução de conflitos britânico viabiliza outras opções além do sistema judicial. Em segundo lugar, percebi a intenção de incutir no cidadão que o judiciário funciona como ultima opção, não devendo ser acionado para questões que admitem outra solução. Em terceiro lugar, notei que existe uma visão pragmática da atuação judicial, com percepção de seu papel político na visão tripartite de poderes, mas há uma preocupação com os outros personagens envolvidos nos conflitos sociais.
O Poder Judiciário nasceu para dirimir conflitos quando a sociedade era diminuta, sendo um órgão independente para decidir tudo com imparcialidade: da divergência mais simples ao embate mais intricado, sendo que o intricado de antes é o simples de hoje. Com o crescimento populacional e a ampliação das relações jurídicas, surgiu um previsível engarrafamento. “De 57,5 milhões em 2004, a montanha de processos nos escaninhos do Judiciário brasileiro passou para 58,8 milhões em 2005 (...) o congestionamento no Judiciário continua com tendência de crescimento, apesar dos esforços para reduzi-lo” [i]. Apenas no tocante aos homicídios registrados, a cidade de Salvador/BA relatou 1223 em 2006, 1665 em 2007 e 2237 em 2008[ii]. A situação, embora mais visível na seara criminal, diante do evidente aumento dos índices de violência, é extremamente preocupante em todos os ramos do direito e retratada em levantamentos posteriores do CNJ, objeto de ações do referido conselho[iii].
O ser humano atualmente está inserido em diversos subgrupos, dentro da polis onde reside e trabalha. Não só seu domicílio é um subconjunto de um condomínio e de um bairro, como este pertence a uma sub-região de um município. Da mesma forma, as atividades comerciais englobam as pessoas em sindicatos e associações, para dizer o mínimo.
É perfeitamente crível, portanto, a institucionalização de conselhos em bairros e municípios, por exemplo, com poderes para dirimir conflitos mais simplórios, cuja decisão tivesse força executiva e/ou gerasse multa significativa para o inadimplente em caso de necessidade de eventual amparo judicial para forçar a decisão do conselho.
Embora o Poder Judiciário venha tentando ensejar a conciliação, inclusive com a atenção dada aos Juizados especiais, mutirões e Projetos Especiais (núcleos de conciliação na Bahia, v.g.), tais iniciativas não afastam a necessidade de outras soluções vinculadas ao Poder Executivo e/ou à sociedade, através de uma reavaliação do que necessita ser apreciado pelo poder judiciário. Porque o PROCOM, por exemplo, não pode dar a decisão em questão tão elementar se um bem em garantia deve ou não ser reparado? Aliás, o reforço do papel do PROCON já está em estudo dentro da série de medidas do chamado Pacto Republicano[iv].
Através do mesmo raciocínio, não encontro razões para que a simples fixação de pensão alimentícia necessite chegar à seara judicial, salvo em casos excepcionais. O que se percebe, no entanto, é que a exceção – pensões alimentícias que envolvem questões jurídicas complexas - vira regra e toda quantificação de pensão litigiosa passa pelo Poder Judiciário.
Não se retira nenhuma prerrogativa do judiciário, ao contrário: valoriza-se tal poder. A solução pela via arbitral é tímida e opcional, com regras diversas, embora inserida no elenco das opções extrajudiciais.
Tal sugestão, ainda, não restringe o acesso à solução de conflitos, apenas atualiza a visão canhestra de que um profissional caro e lentamente formado deve ser pronunciar sobre qualquer questão. Com o volume atual de demandas, algumas simples e outras complexas, exigindo atuação dos juízes, temos o mesmo magistrado decidindo em um momento se o liquidificador em garantia precisa ou não ser consertado e no momento seguinte se um Prefeito será afastado ou não por ato de improbidade. No cenário atual o volume de processos atrasa a apreciação das duas questões.
Ao criarmos estruturas para a solução de conflitos fora do Poder Judiciário – cuja amplitude de atuação pode ser sempre revista – viabilizamos que outras questões semelhantes à do liquidificador sejam solucionadas – ampliando o acesso à justiça – e possibilitaremos que diversos casos importantes possam ter seu curso.
No sistema atual as corporações sabem que eventualmente o consumidor opta por não procurar a justiça para fazer valer seus direitos – quando monetariamente pequenos – e muitas questões complexas demoram mais tempo do que deveriam, pelo simples estrangulamento do sistema judiciário. As duas situações minam a confiança no poder judiciário, o que é péssimo em um Estado moderno.
Persistindo o cenário atual, o Poder Judiciário gastará cada vez mais – com pessoal, material e construções – apenas para receber os pedidos de novos processos, continuando a prestar um serviço vagaroso e limitado. O desenvolvimento humano - em números e complexidade - exigirá cada vez mais conflitos diversos e o Poder Judiciário andará sempre a reboque dos anseios da coletividade. A lentidão dos conflitos, por outro lado, gera mais conflitos, sem falar no natural descrédito da sociedade em relação ao papel do Poder Judiciário. As condições de trabalho dos magistrados, por exemplo, deixam de ser discutidas como adequadas ou não a um profissional com papel fundamental na existência do grupo social, para serem entendidos como mais uma benesse de uma casta privilegiada e preguiçosa, o que não corresponde à verdade.
O cidadão comum quer a solução de seu problema, de forma rápida e eficiente, sendo de menor relevância a origem da referida solução. O que se aponta é que não há necessidade de se movimentar a pesada, cara e complexa máquina do Poder Judiciário para a solução de problemas que podem ser solucionados em outras esferas. È aplicar com clareza o lema de “dar a cada um o que é seu” [v]. Em resumo: ao se distribuir a decisão sobre os conflitos se amplia a solução dos mesmos problemas.
Notas:
[ii] Jornal ATARDE 06/01/2009, página A3
[iii] (...)Ministro Gilmar Mendes, durante solenidade em Brasília. “Devemos pesquisar as razões do excesso de judicialização no Brasil e desenvolver alternativas para garantir o direito dos cidadãos com uma menor intervenção judicial. Uma mudança cultural é necessária”, destacou. Segundo o ministro, atualmente existem 67 milhões de processos em tramitação no país, “o que demonstra que o Judiciário brasileiro talvez seja um dos mais sobrecarregados do mundo”. http://www.cnj.jus.br/index.php?option=com_content&view=article&id=7328&Itemid=675
Precisa estar logado para fazer comentários.