Resumo : O objeto desse artigo diz respeito à exigência de consentimento do ex-cônjuge em todas as etapas da reprodução assistida, bem como trata das implicações judiciais da negativa de autorização.
Palavras-chave: Reprodução, Separação, Consentimento.
Abstract : The objetct of this article concerns the exigency of aquiescence from the divorced about each stage of assisted reproduction, as well as dialogue with judicial consequences of non-authorized procedure.
Keywords : Procreation, Divorce, Acquiescence.
Sumário: Introdução – 1. A fertilização “in Vitro” (FIV) homóloga e o problema da extinção do vínculo afetivo do casal – 2. A teoria multifásica do consentimento – 3. O abuso do suposto direito à inseminação sem consentimento – 4. Conclusão.
Introdução
O advento de modernas técnicas de reprodução assistida dotou o Direito de novos conceitos ao tempo em que exigiu solução jurídica para problemas antes inexistentes, e para os quais nem a religião nem a ética vulgar apresentam respostas satisfatórias. Impingiu-se, nos dizeres de Armando Dias de Azevedo a “adaptação dos Códigos aos progressos da ciência fisiológica”.2
Dentre tais questões, este artigo trata de evidenciar a reprodução assistida, em especial a fertilização “In Vitro” homóloga e o consentimento complexo dos “donos” do material genético envolvido como problema que anseia por resposta adequada, conferindo especial destaque ao conflito de interesses reprodutivos oriundo da extinção do vínculo conjugal.
Diz-se complexo tal consentimento em virtude da multiplicidade de autorizações autônomas que, conforme restará demonstrado a seguir, defende-se existir em todas as etapas de manejo do material genético, a saber: coleta dos gametas, fertilização do óvulo e implantação do embrião.
Colimando fins didáticos, optou-se por declinar, em cada um dos tópicos, as nuances que crivaram a elaboração deste articulado e que, pretende-se, despertem no leitor a reflexão que o tema desafia.
Com efeito, ainda que se reconheça a impossibilidade de esgotamento do tema, serão analisadas, nas linhas que seguem, as nuances que permitem posicionar-se pela multiplicidade de consentimento de cônjuges separados para a manipulação do material genético originário de cada um deles.
1 A fertilização “in Vitro” (FIV) homóloga e o problema da extinção do vínculo afetivo do casal
Exsurge primordial esboçar sucintamente o conceito da FIV homóloga, razão pela qual adota-se o escólio de Juliana Frozel de Camargo:“Consiste na reprodução assistida realizada mediante a doação ou recepção do material genético de casais que buscam uma solução para seus problemas de fertilidade ou de sexualidade, ou seja, os gametas (espermatozóide e óvulo) pertencerem ao próprio casal solicitante”.3
Todo o procedimento envolve três fases distintas e necessárias, quais sejam: coleta do óvulo/espermatozóide, fecundação “in vitro” e inserção do óvulo fecundado no útero. E, para a obtenção de um índice mínimo de sucesso, recomenda-se ao casal a fecundação de vários óvulos, o que redunda, não raro, em excedente não desejado de embriões, os quais permanecerão criopreservados4.
Ocorre, todavia, que sobrevêm comumente a separação do casal antes que os óvulos fertilizados sejam implantados no ventre. Nessa hipótese, admitindo-se que a mulher pretenda ter mais filhos, por via de inseminação artificial dos embriões congelados, a ela será garantido tal suposto direito, ainda que assim o pai biológico e ex-companheiro não deseje?
Ao comentar a matéria, preleciona Mario Delgado: “A primeira grande indagação a se fazer sobre o tema é a seguinte: pode a mulher decidir sozinha pela implantação do embrião excedentário posteriormente à dissolução do casamento, compelindo o ex-marido a assumir uma paternidade não desejada?
Ainda que eticamente discutível, do ponto de vista estritamente legal a resposta é sim, muito embora o novo código não solucione, aliás nem mencione, o problema[...]5”
Na mesma trilha de raciocínio colhe-se o leading case da Suprema Corte americana quando, ao conceder a Maurren Kass o direito sobre os óvulos fecundados por seu ex-marido, o magistrado Anthony Roncalho pronunciou: “O fato seja simples, uma vez que os direitos do cônjuge varão terminam com a ejaculação. Em minha opinião, não há qualquer razão legal, ética ou lógica para que uma fertilização in vitro sirva de fundamento a qualquer direito adicional reconhecível ao marido”6
Ousamos discordar. Em verdade, a solução do problema perpassa a ideia de consentimento como elemento ínsito não só à mera fase da fusão dos gametas mas igualmente às etapas decisivas para a instalação da vida humana.
2 A teoria multifásica do consentimento
O posicionamento citado alhures parte da convicção de que basta uma declaração no início do processo reprodutivo para que o genitor se vincule à geração posterior de seres com seu gameta.
Entretanto, sobrevindo o conflito de interesses dos ex-companheiros quanto ao surgimento ou ampliação da prole, não se pode afirmar que o consentimento único verberado pelo genitor no início do tratamento baste, de per si, para autorizar a genitora a implantar tantos embriões quanto for o número de filhos por ela desejados.
Neste esboço teórico, é imperativo afastar a concepção de consentimento prévio e total do pai biológico desde o momento da fecundação pela singela razão de ele não poder escolher quantos óvulos serão fecundados.
Consoante dito alhures, o médico recomendará a fecundação de óvulos em número superior à quantidade de filhos que os companheiros desejaram de fato. Assim, na medida em que os pretensos pais optaram por gerar apenas um filho, serão compelidos, por razões de segurança biológica, a tornar viáveis geneticamente três ou quatro filhos. Ora, esse excedente não foi voluntariamente desejado quando da fecundação, visto que, acaso houvesse alternativa, os companheiros teriam escolhido a fecundação de apenas um óvulo, para a gestação de apenas um filho, conforme a vontade daqueles.
Todavia, levantar-se-ão defensores de que o risco de produção excedentária de embriões é inerente ao processo. Data venia tal corrente, a teoria multifásica do consentimento suplanta tal problema, na medida em que afirma a necessidade de uma aquiescência autônoma a cada uma das fases: coleta, fecundação e implantação.
Por conseguinte, o genitor terá a oportunidade de racionalizar o número de filhos desejados no início da fase de implantação, o que não fora possível à época da fecundação. De se gizar, aliás, a indispensabilidade da nova escolha tendo em vista que “havendo inseminação artificial homóloga, o pai da criança será necessariamente o dono do sêmen, no caso do art. 1597, o marido ou ex-marido, sendo indiferente ao direito, a época em que venha ocorrer a gestação”7
Ademais, se por um lado a conduta sugerida prestigia o paradigma constitucional da paternidade responsável, por outro contribui para a reafirmação do planejamento familiar como livre e indivisível decisão dos concedentes do material genético envolvido (art. 226, §7º)8
Aliás, se, conforme asseveram Leitte9 e Savatier10, há de ser assegurado à mulher o direito a não inseminação homóloga (rectius: implantação no útero) sem expressa manifestação de vontade desta, com igual razão ao homem não pode ser oposto um pretenso direito da mulher a uma gestação não desejada por este.
A não se concluir por essa via, ou seja, acaso se garanta à ex-companheira a implantação do zigoto somente com base no consentimento inicial do ex-companheiro, exsurgirão consequências incombatíveis quando da execução dessa obrigação.
3 O abuso do suposto direito à inseminação sem consentimento
Inicie-se da seguinte hipótese: à ex-companheira, de posse de autorização do ex-companheiro concedida para a fertilização enquanto vigia a sociedade conjugal foi reconhecido o direito à inseminação dos óvulos fecundados. Posto isto, indaga-se: ao Estado-juiz será dado limitar o número de embriões a serem introduzidos?
Em um viés, se o Estado juiz, declarando o direito à inseminação, não impuser barreiras à pretensão reprodutiva da ex-cônjuge, não serão raros os casos em que o gameta masculino servirá de moeda de troca para obtenção, v.g., de auxílio alimentar do ex-companheiro, na medida em que o tamanho da prole ficará ao alvedrio da genitora.
Ora, nesta quadra de ideias, o genitor nada poderá fazer pois teria assumido o risco da produção excedentária quando se dispôs a fertilizar diversos óvulos de sua então companheira. Para esta corrente, portanto, é premente a imposição de limites à procriação pelo Estado-juiz.
Noutro raciocínio, com o escopo de negar o poder limitador do Judiciário, debruçar-se-ão doutrinadores para suscitar a impossibilidade de intervenção coercitiva do Estado no planejamento da família. Aliás, o socorro do argumento encontrará a mais precípua fonte do direito positivo vez que a Constituição Federal, no art. 226 § 7º dispõe:“Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”.
Para esta última corrente, portanto, em o Estado-juiz reconhecendo o direito à inseminação mas limitando-o quantitativamente, presenciar-se-ia ingerência inconstitucional na autonomia da vontade da genitora, vez que o Judiciário se arrogaria da prerrogativa de determinar o número de membros das famílias.
Ante a discussão de relevância emergente, qual a solução juridicamente adequada?
Com a vênia aos partidários da primeira corrente (pró-intervenção), esta desemboca na inviabilidade da execução do direito acertado -inseminação sem consentimento do ex-cônjuge varão-, por impedir a mensuração do abuso de direito da parte vencedora da demanda.
Com efeito, firmado que o Estado-juiz não pode limitar o direito à procriação, não resta alternativa senão permitir a inseminação de tantos zigotos quanto existirem e a ex-consorte desejar, resvalando no genitor todas as implicações jurídicas que daí advierem.
Logo, com espeque nessas razões, afigura-se-nos mais correto que determinar a extensão da prole de um casal não está e nem deve situar-se entre as competências dos órgãos jurisdicionais, forte na expressa vedação da interferência coercitiva estatal na seara reprodutiva.
Nesse particular “todo casal e todo indivíduo têm o direito fundamental de decidir livre e responsavelmente acerca do número de seus filhos, do espaço de seu nascimento e de dispor da informação, da educação e dos meios desejados na matéria.”11
Em acréscimo, a eleição da vertente não intervencionista como acertada empresta validade da Teoria multifásica do consentimento por ser o arcabouço teórico que permite a decisão livre e responsável do genitor em todos os momentos do processo reprodutivo, decisão esta que, reitere-se, não está sujeita à apropriação pelo Estado.
4 Conclusões
No desfecho deste articulado, pontuamos a importância dos seguintes aspectos da Fertilização in vitro no contexto da liberdade de consentimento multifásico:
a) a sociedade contemporânea exige respostas para as discussões bioéticas, dentre as quais está a utilização dos embriões excedentários por um dos genitores após o término do vínculo afetivo entre estes;
b) tais embriões são hauridos do processo de fertilização homóloga in vitro que se compõe de três etapas para as quais deve-se exigir o consentimento específico de cada um dos fornecedores do material genético, independentemente do vínculo afetivo dos mesmos;
c) a esta particularização da vontade denomina-se Teoria do consentimento multifásico;
d) o Estado-juiz, por ser impedido de conduzir o projeto parental, deve reconhecer a aplicabilidade da teoria para evitar abusos de direito de um dos cônjuges.
e) os embriões congelados, em havendo separação do casal que os gerou, só poderão ser implantados se expressamente consentirem ambos os genitores.
Referências
AZEVEDO, Armando Dias de. A inseminação artificial em face da moral e do direito. Revista Forense, setembro/outubro de 1953, vol. 149;
CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana:ética e direito. Campinas: Edicamp, 2004.
Constituição da República Federativa do Brasil;
DELGADO, Mario Luiz. In: http://www.intelligentiajuridica.com.br/v3/artigo_visualizar.php?id=656. Acesso em 25.01.10;
KRIGER FILHO, Domingos Afonso, Revista da Esmesc, v. 14, n. 20, 2007;
LEITE, Eduardo de Oliveira Leite. As procriações artificiais e o direito. São Paulo: RT, 1995;
MESTIERI, João. Embriões. In: Doutrina v.III. Instituto de Direito. Rio de Janeiro, 1997;
OLIVEIRA, Deborah Ciocci Alvarez de. BORGES JR. Edson. Reprodução Assistida: Até onde podemos chegar? Compreendendo a ética e a lei. São Paulo: Gaia, 2000;
Recueil International de Législation Sanitaire, v. 46, n. 3, 1995.
2. Considerações acerca dos efeitos jurídicos do uso indevido do material genético, KRIGER FILHO, Domingos Afonso, Revista da Esmesc, v. 14, n. 20, 2007 apud A inseminação artificial em face da moral e do direito. Revista Forense 149/497.
3. CAMARGO, Juliana Frozel de. Reprodução humana:ética e direito.Campinas: Edicamp, 2004; p.30-31.
4. “Preocupados com o êxito do tratamento e com a obtenção da gravidez, propósito das técnicas de reprodução assistida, são fecundados tantos oócitos quantos possíveis, fato que gera em alguns casos número de pré-embriões incompatíveis com a transferência a fresco. Também quando há um grande quadro de heperestímulo ovariano, recomenda-se que todos os pré-embriões sejam criopreservados para posterior transferência em outro ciclo de tratamento” (OLIVEIRA, Deborah Ciocci Alvarez de. BORGES JR. Edson. Reprodução Assistida: Até onde podemos chegar? Compreendendo a ética e a lei. São Paulo: Gaia, 2000).
5. O novo código civil e a inseminação artificial; DELGADO, Mario Luiz. In: http://www.intelligentiajuridica.com.br/v3/artigo_visualizar.php?id=656.
6. MESTIERI, João. Embriões. In: Doutrina v.III. Instituto de Direito. Rio de Janeiro, 1997, p. 509.
7. DELGADO, Mario Luiz, op. cit. p. 03.
8. “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas”
9. “Da mesma forma como a mulher não é obrigada a se submeter à conjunção carnal, por configurar tal coação um abuso de direito, não poderia se submeter à inseminação artificial (homóloga ou heteróloga) sem expressa manifestação de vontade, mesmo porque inexiste qualquer previsão ilegal assim dispondo. Nesse sentido, a CF, que assim dispõe no art. 5º, II: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.” (LEITE, Eduardo de Oliveira Leite. As procriações artificiais e o direito. São Paulo: RT, 1995, p. 225).
10. “o que a lei reprova essencialmente não é a cópula mesma, mas a violência do que o ser feminino tem de mais íntimo e de mais reservado, do que só a sua liberdade pode dar, pois as graves conseqüências sociais de ambos os atos (cópula e inseminação), em tal hipótese, são iguais”(AZEVEDO, Armando Dias de. A inseminação artificial em face da moral e do direito. Revista Forense, setembro/outubro de 1953, vol. 149, p. 505).
11. Recueil International de Législation Sanitaire, v. 46, n. 3, p. 407, 1995.
Acadêmico de Direito da Universidade do Estado da Bahia em Juazeiro
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUSA, Leonardo Lima. O alcance jurídico do consentimento na reprodução assistida Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 fev 2010, 07:49. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19291/o-alcance-juridico-do-consentimento-na-reproducao-assistida. Acesso em: 22 nov 2024.
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