1. Introdução
O presente artigo visa trazer à baila a discussão sobre a hierarquia dos tratados de direitos humanos, com especial enfoque para o sistema jurídico brasileiro.
Sobre o tema da hierarquia dos tratados de direitos humanos, existem quatro posições a respeito: 1) hierarquia supraconstitucional; 2) constitucional; 3) infraconstitucional, mas supralegal; 4) da paridade hierárquica com a lei.[1]
Assim é que, preliminarmente, serão expostas cada uma das correntes sobre a matéria e, logo em seguida, será colocada a posição que, na atualidade, parece ser a mais condizente com a proteção dessa categoria de direitos, levando-se em consideração, o direito interno nacional.
2. A hierarquia supraconstitucional
A corrente que defende a hierarquia supraconstitucional assenta-se, basicamente, sobre o argumento de que, por tratarem de direitos pertencentes ao gênero humano, estes tratados são especiais, devendo prevalecer sobre a Constituição. É defendida pela maioria dos internacionalistas, entre eles, Agustín Gordillo, André Gonçalves Pereira, Fausto de Quadros e Marotta Rangel.
Com efeito, para AGUSTÍN GORDILLO, a ordem supranacional preexiste a ordem nacional e, nesse sentido, a sua supremacia só pode ser uma supremacia jurídica, normativa, detentora de força coativa e de imperatividade.[2]
No mesmo diapasão, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA e FAUSTO DE QUADROS, depois de afirmarem expressamente que defendem a hierarquia supraconstitucional do Direito Internacional Geral, apontam, como um dos fundamentos de suas posições, o fato do Direito Internacional Geral ou Comum ser essencialmente imperativo (ou, seja, jus cogens) e não pode uma norma ser imperativa para um Estado se não prevalecer sobre todas as suas fontes, inclusive sobre a sua Constituição.[3]
Para MAROTTA RANGEL, a jurisprudência internacional consagrou a superioridade do tratado em relação às normas do Direito interno sob o fundamento da noção de unidade e solidariedade do gênero humano e de princípios fundamentais, como o do pacta sunt servanda e o voluntas civitatis maximae est servanda.[4]
3. A hierarquia constitucional
Com relação à corrente da hierarquia constitucional, os tratados internacionais de direitos humanos têm a mesma hierarquia das normas constitucionais. É a posição defendida posição defendida por Flávia Piovesan e Cançado Trindade.
Para FLÁVIA PIOVESAN, a força expansiva da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, como parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional, fazem com que a interpretação sistemática e teleológica da Constituição brasileira de 1988 sejam no sentido de integrar os tratados internacionais de direitos humanos, de que o Brasil é parte, no elenco dos direitos constitucionalmente consagrados.[5]
No mesmo norte, afirma CANÇADO TRINDADE que espera pelo dia em que venha a ser dada a devida aplicação ao artigo 5º, § 2º, da Constituição brasileira de 1988, em virtude do qual os direitos constitucionalmente consagrados abarcam igualmente os constantes dos tratados de direitos humanos. [6]
Na América Latina, algumas Constituições – como as da Argentina, do Peru e da Venezuela - consagram expressamente a tese da equiparação hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos.
Com efeito, a título de exemplo, a Constituição Argentina estabelece no seu artigo 75, inciso 22, que vários tratados e instrumentos internacionais nele enumerados possuem hierarquia constitucional, só podendo ser denunciados através de aprovação prévia de dois terços dos membros do Poder Legislativo.
4. A hierarquia supralegal
Há também uma terceira corrente que defende a natureza infraconstitucional, mas supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos. É a posição do Ministro Sepúlveda Pertence, que no RHC n. 79.785-RJ, expressou que estes tratados têm força supralegal, sempre que, sem ferir a Constituição, a complementem, especificando ou ampliando os direitos e garantias dela constantes.
Na América Latina, algumas Constituições – como as da Guatemala, do Peru e da Colômbia - expressam essa posição. Também a título de exemplo, o artigo 101 da Constituição Peruana preceitua que “Os tratados internacionais, celebrados pelo Peru com outros Estados, formam parte do direito nacional. Em caso de conflito entre o tratado e a lei, prevalece o primeiro”.
Assim, para essa corrente, muito embora os tratados internacionais, incluindo os que versam sobre direitos dos seres humanos, não possam jamais se opor ao texto expresso da Constituição, prevalecem em caso de conflitos com as leis, derrogando-as e sendo observados pelo direito infraconstitucional superveniente.
5. A paridade hierárquica com a lei
Por último, tem-se a corrente da paridade hierárquica entre os tratados internacionais dos direitos humanos e a lei. É a posição defendida por Francisco Rezek, Luís Roberto Barroso e Bernard Schwartz.
Para FRANCISCO REZEK, a solução quanto à paridade hierárquica depende muito das Constituições dos países. No Brasil, porém, garante-se-lhes um tratamento paritário entre os tratados internacionais e a lei, de forma que ante o conflito entre o tratado e a lei posterior, esta deve ter sua prevalência garantida posto que é a expressão última da vontade do legislador republicano.[7]
LUÍS ROBERTO BARROSO também advoga a mesma tese. Não fazendo qualquer distinção entre os tratatos comuns e o de direitos humanos (da mesma forma que Rezek), assevera que os tratados internacionais são incorporados ao direito interno em nível de igualdade com a legislação ordinária, aplicando-se, em caso de conflito, o princípio da norma posterior revoga a anterior.[8]
BERNARD SCHWARTZ, comentando a Constituição dos Estados Unidos, afirma que a supremacia garantida aos tratados internacionais pela Constituição significa que o tratado prevalece sobre a legislação ordinária dos estados federados, tal como a lei federal ordinária. Desta forma, em caso de conflito entre tratados internacionais e as leis do Congresso, prevalece nos Estados Unidos a norma mais recente. É certo, portanto, que uma lei federal pode repelir a eficácia de um tratado, no plano interno, porquanto, se assim não fosse, estar-se-ia dando aos tratados não força de lei, mas de restrição constitucional.[9]
Esta era a posição do Supremo Tribunal Federal brasileiro, pacificada, até então, no julgamento HC 73044/SP em 1996, em que julgou que o art 7, VII, do Pacto de San José da Costa Rica, que proíbe a prisão civil por dívida, excetuando apenas o devedor de pensão alimentícia, não poderia se sobrepor ao texto constitucional do art. 5º, LXVII, que prevê, como modalidades de prisão civil, a do devedor de pensão alimentícia e do depositário infiel.[10]
Entretanto, posteriormente, o STF, no HC 92817/RS, em 2009, mudou de entendimento, admitindo apenas a prisão do devedor de pensão alimentícia no sentido, portanto, do referido Pacto.[11]
6. A posição mais adequada
Como se vê, existem fortes divergências doutrinárias a respeito da posição hierárquica dos tratados internacionais de direitos humanos em relação ao direito interno dos mais variados países.
É que claro que o status desses tratados passa inequivocamente pelo que dispõe o texto constitucional. É a Constituição que, em primeira linha, determina a posição desses acordos internacionais, de acordo, pois, com a soberania estatal e o princípio democrático.
Entretanto, atualmente predomina o entendimento de que a soberania estatal é ilimitada, pois sofre limitações em favor dos próprios direitos humanos, ditadas por imperativos princípios de justiça presentes na comunidade internacional.
Sobre esse aspecto, GOMES CANOTILHO, após enfatizar que a doutrina atual rejeita a teoria clássica do poder constituinte (que afirma que este é autônomo, incondicionado e livre), assevera que o criador de uma nova Constituição deve observar “certos princípios de justiça que, independentemente da sua configuração (como princípios suprapositivos ou como princípios supralegais mas infra-jurídicos) são compreendidos como limites da liberdade e omnipotência do poder constituinte”. [12]
Nesse diapasão, pode-se asseverar que até mesmo a democracia, assente no critério da vontade da maioria popular, é limitada, pois mesmo a maioria de um determinado povo não pode fazer tudo o que quer, porquanto sofre limitações ditadas por certos valores dos seres humanos.
Consoante a lição de ALEXIS DE TOCQUEVILLE, a maioria de um povo, da mesma forma que um único homem investido de todo o poder, pode abusar desse poder.[13] Assim, a maioria nem sempre tem o direito de fazer o que quiser, pois a justiça, sendo expressão da soberania comum a todos os homens e não apenas de um determinado povo, é um limite ao direito de cada povo.[14]
É que existem certos direitos que pela sua própria natureza (como, por exemplo, direito à vida e à dignidade) devem ser respeitados já pelo próprio poder constituinte originário, como limites transcedentes.[15] Indo um pouco mais além, até mesmo a ordem internacional (como, por exemplo, as Nações Unidas) não podem desrespeitar ou transgredir esses direitos (quando, por exemplo, aplica a pena de morte a alguns ditadores).
Destarte, particularmente, no que tange a esses direitos, deve-se assegurar o caráter de supranacionalidade, impondo-se, por si só, sobre as Constituições dos demais países, que devem respeitá-los incondicionalmente porquanto limitam o próprio poder constituinte originário.
Quanto às demais espécies de direitos, que não tenham correlação direta com a vida ou a dignidade da pessoa humana, mas que configuram ainda um direito dos seres humanos, podem receber o status de norma constitucional, pois apenas na hipótese de não se configurar um direito humano é que a norma prevista no tratado pode ter uma hierarquia inferior.
7. Conclusão
Uma Constituição verdadeiramente democrática deve respeitar os valores da pessoa humana, pelo que, já de antemão, hão de ser rejeitadas as concepções que colocam os tratados internacionais de direitos humanos abaixo da Constituição. Deve-se dar a esses acordos, no mínimo, a mesma paridade hierárquica.
Há de se fazer, portanto, uma distinção. Alguns valores dos seres humanos, expressos em normas internacionais, são tão importantes (como, por exemplo, o direito à vida e à dignidade da pessoa humana), que a sua imperatividade, decorrente de seu conteúdo axiológico, implica que sejam efetivamente tratados como normas supranacionais. Outros, porém, não revestem o mesmo grau de importância, pelo que devem ser considerados no mesmo nível hierárquico da Constituição.
Assim, os tratados internacionais de direitos humanos, ou algumas de suas normas, ora têm valor supranacional, ora têm o mesmo nível hierárquica; nunca, porém, podem estar abaixo de qualquer Constituição.
[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max
Limonad, 1997, p. 71.
[2] GORDILLO, Agustín. Derechos humanos, doctrina, casos y materiales: parte general. Buenos Aires:
Fundación de Derecho Administrativo, 1990, p. 53 e 55.
[3] PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de Direito Internacional Público. 3ª ed.
Coimbra: Almedina, 1993, p.118.
[4] RANGEL, Vicente Marotta. Os conflitos entre o direito interno e os tratados internacionais. In:
Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. Rio de Janeiro, 1967, p. 54-55.
[5] PIOVESAN, Flávia. (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, …, p. 52).
[6] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A Emancipação do Ser Humano como Sujeito do Direito
Internacional e os Limites da Razão de Estado. In: A Humanização do Direito Internacional. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, P. 112-113.
[7] REZEK, Francisco. Direito Internacional Público. Curso Elementar. São Paulo: Saraiva, 1995,
p. 104-106.
[8] BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, p. 33.
[9] SCHWARTZ, Bernard. Constitutional Law. Nova York: Macmillan, 1972, p. 87-88.
[10] HC Nº 73044/SP; 2ª Turma; Rel. Min. Maurício Correa; Julgamento 19/03/96; Publicado no DJ de
20/09/96 PP 34534.
[11] HC 92817/RS; 1ª Turma; Rel. Min. Ricardo Lewandoski; Julgamento: 16/12/2008; Publicado no DJ de
13/02/2009.
[12] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra:
Almedina, 2003, p. 81.
[13] TOCQUEVILLE, Alexis. Da Democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 300.
[14] Idem, p. 299.
[15] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, t. IV,
p. 15.
Procurador do Min. Público junto ao TCE-RN, Professor de Direito Constitucional da FAL e da UNP, Mestre em Direito Constitucional pela UFRN<br>.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Carlos Roberto Galvão. A hierarquia constitucional dos tratados de direitos humanos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jul 2010, 12:01. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/20228/a-hierarquia-constitucional-dos-tratados-de-direitos-humanos. Acesso em: 22 nov 2024.
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