1. Introdução
O presente artigo visa trazer novas luzes a uma discussão bastante controvertida em sede doutrinária, que é a natureza das decisões dos Tribunais de Contas e a possibilidade de revisão dessas decisões pelo Poder Judiciário.
Esclareça-se, de início, que uma decisão judicante (que diz definitivamente o Direito) não é necessariamente originária do Poder Judiciário. A decisão pode ser judicante – fazendo, pois, coisa julgada – mesmo sendo proveniente dos demais poderes ou até mesmo de um órgão administrativo, como acontece nos países que adotam o contencioso administrativo.
Não se está querendo aqui dizer que o Brasil tenha adotado o contencioso administrativo[1], posto que indubitavelmente o Brasil adotou o sistema da unidade da Jurisdição, mas fazer uma análise da norma presente no artigo 71, II, da Constituição brasileira, verificando, de forma perfunctória, os argumentos contrários e favoráveis às decisões judicantes dos tribunais de contas brasileiros, indicando, outrossim, qual a posição mais adequada no nosso sistema jurídico.
2. Argumentos contrários às decisões judicantes dos tribunais de contas
O principal argumento contrário às decisões judicantes dos Tribunais de Contas encontra supedâneo no princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Partindo da premissa de que as decisões das Cortes de Contas têm natureza administrativa, os doutrinadores partidários desta corrente majoritária – como é o caso de Jose Cretella Júnior, José Afonso da Silva e Odete Medauar – defende a possibilidade de controle jurisdicional dessas decisões.
Isto porque o ordenamento jurídico brasileiro, através da norma insculpida no artigo 5 , XXXV, da Constituição Federal, adotou o sistema de jurisdição una, de sorte que as decisões administrativas dos Tribunais de Contas, enquanto atos administrativos, estão sujeitas ao controle jurisdicional.
Nesse diapasão, vale a pena citar o posicionamento de ODETE MEDAUAR:
(...)nenhuma lesão de direito poderá ficar excluída da apreciação pelo Poder Judiciário; qualquer decisão do Tribunal de Contas, mesmo no tocante à apreciação de contas de administradores, pode ser submetida ao reexame pelo Poder Judiciário se o interessado considerar que seu direito sofreu lesão; ausente se encontra, nas decisões do Tribunal de Contas, o caráter de definitividade ou imutabilidade dos efeitos inerentes aos atos jurisdicionais.[2]
Assim, diante da unicidade da jurisdição brasileira, não há como afastar da apreciação do Poder Judiciário as decisões dos tribunais de contas, mesmo quando esses órgãos exercem a sua função principal, atribuída pela Constituição, que é julgar as contas dos administradores.
3. Argumentos favoráveis às decisões judicantes dos tribunais de contas
Em pese os argumentos expendidos pela maioria dos doutrinadores, existe uma corrente minoritária no sentido de defender que as decisões dos Tribunais de Contas que julgam as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos, bem como daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público (art. 71, II, CF), fazem efetivamente coisa julgada, ao menos nos seus aspectos técnicos, os quais a Constituição cometeu expressamente estas atribuições às Cortes de Contas (art. 70 c/c art. 71 da CF).
Defendem esta idéia, dentre outros juristas, Pontes de Miranda, Seabra Fagundes e, mais recentemente, JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES, o qual defende que, como regra, o Tribunal de Contas não tem competência para dizer o direito no caso concreto, com força de coisa julgada. Entretanto, por exceção, detém essa competência quando se trata da norma do artigo 71, II, da Constituição brasileira.[3]
SEABRA FAGUNDES vai um pouco mais adiante em seu posicionamento quando afirma que
a força jurisdicional da decisão do Tribunal de Contas não ocorre pelo simples emprego da palavra “julgar”, mas sim pelo sentido definitivo da manifestação da Corte, pois se a irregularidade das contas pudesse dar lugar à nova apreciação pelo Judiciário, o seu pronunciamento resultaria em mero e inútil formalismo.[4]
Nesse mesmo diapasão, PONTES DE MIRANDA, comentando a Constituição brasileira de 1946, defendeu a impossibilidade de revisão dos julgados dos tribunais de contas, nos seguintes termos:
Hoje, e desde 1934, a função de julgar as contas está, claríssima, no texto constitucional. Não haveremos de interpretar que o Tribunal de Contas julgue e outro juiz as rejulgue depois. Tratar-se-ia de absurdo bis in idem (...) Tal jurisdição exclui a intromissão de qualquer juiz na apreciação da situação em que se acham, ex hiphotesi, os responsáveis para com a Fazenda Pública.[5]
4. Posição mais adequada
Razão parece assistir aos partidários da defesa das decisões judicantes dos tribunais de contas, pelo menos no ponto em que aduzem que o Judiciário não pode rever o julgamento feito pelos tribunais de contas dos responsáveis pela administração de dinheiros ou outros bens públicos.
Deveras, na hipótese do artigo 71, II, a Constituição empregou expressamente o termo “julgar”. A vontade do legislador constituinte, portanto, foi que efetivamente houvesse a produção de coisa julgada. Do contrário, teria mencionado outro termo.
Aliás, em diversas ocasiões, a Constituição brasileira de 1988 atribuiu a competência a outros órgãos para julgar definitivamente determinados fatos e/ou autoridades, como, por exemplo, os seguintes:
a) Contas prestadas pelo Presidente da República: competência exclusiva do Congresso Nacional (artigo 49, IX, da CF);
b) Julgamento do Presidente e do Vice-Presidente da República, nos crimes de responsabilidade, e os Ministros de Estado, no crimes da mesma natureza, conexos com aqueles: competência privativa do Senado Federal (artigo 52, II, da CF);
c) Julgamento dos Ministros do STF, do Procurador-Geral da República e do Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade: competência privativa do Senado Federal (artigo 52, II, da CF).
Ademais, não são somente os argumentos literais e sistemáticos que embasam essa posição. Corrobora, ainda, essa assertiva, a norma insculpida no artigo 71, § 3°, da CF, a qual dispõe que: “As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo”.
Ora, se têm eficácia de título executivo as decisões dos tribunais de contas, significa dizer que não há de se cogitar do conhecimento da matéria, já discutida, cabendo ao devedor deste título executivo extrajudicial apenas interpor embargos à execução quando esse título for executado perante o Poder Judiciário.
Além disso, quando o artigo 5°, XXXV, da CF, estatui que “a lei não excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça à direito”, refere-se unicamente à Lei. Esta é que não pode excluir da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito.
O poder constituinte originário pode, tanto que o fez no seu próprio texto quando conferiu, excepcionalmente, ao Tribunal de Contas a competência para julgar as contas dos administradores públicos.
5. Conclusão
Ante o exposto, deve-se ter, como posição mais adequada, a que defende a força judicante dos tribunais de contas brasileiros quando estes julgam as contas dos responsáveis pela administração de dinheiros ou outros bens públicos (artigo 71, II, da CF).
Os argumentos favoráveis a esse respeito são vários e muito mais expressivos do que a argumentação contrária, que se apega unicamente ao dogma da inafastabilidade da função jurisdicional.
É necessário ressaltar, porém, que a força judicante definitiva das decisões dos tribunais de contas só ocorre na hipótese expressamente prevista no artigo 71, II, da CF, ou seja, quando se tratar da análise e julgamento das contas dos responsáveis por bens e valores públicos. Nos demais casos, ou seja, na apreciação dos contratos, aposentadorias, reformas, ou pensão, fica ressalvada a natureza eminentemente administrativa das decisões das cortes de contas.
Só assim se tem uma interpretação adequada, que compatibiliza a vontade do legislador constituinte com o sentido e o alcance das relevantes funções dos tribunais de contas no nosso ordenamento jurídico.
[1] Por esse sistema, vigorante em boa parte dos países da Europa, um órgão administrativo pode ter competência
para dar a última palavra sobre determinada questão que envolva a Administração Pública, sem que as partes
possam recorrer ao Poder Judiciário.
[2] MEDAUAR, Odete. Controle da Administração Pública pelo Tribunal de Contas. Brasília: Imprensa
Nacional, Revista de Informação Legislativa, 1990, p. 124-125.
[3] FERNANDES, Jorge Ulisses Jacoby. Tribunais de Contas do Brasil. Jurisdição e Competência. 2ª Ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2005, p. 149.
[4] FAGUNDES, Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 5ª Ed. São Paulo: Saraiva,
1979, p. 137-139.
[5] MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Livraria Boffoni, 1947, vol II,
p. 45.
Procurador do Min. Público junto ao TCE-RN, Professor de Direito Constitucional da FAL e da UNP, Mestre em Direito Constitucional pela UFRN<br>.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Carlos Roberto Galvão. A revisão das decisões dos Tribunais de Contas pelo Poder Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jul 2010, 09:25. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/20435/a-revisao-das-decisoes-dos-tribunais-de-contas-pelo-poder-judiciario. Acesso em: 22 nov 2024.
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