A Lei 11.977 instituiu o programa Minha Casa, Minha Vida, com o legítimo propósito de regularizar a posse em assentamentos irregulares e facilitar a aquisição de unidades habitacionais pela população de baixa renda.
Para atingir tal finalidade, a Lei trouxe diversas novidades, entre novos institutos jurídicos, como a demarcação urbanística, e releituras de institutos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, como a legitimação da posse.
Ocorre que, na ânsia de resolver grande parte do problema do direito constitucional à moradia, o legislador acabou por criar uma situação conflituosa entre o texto da citada Lei ordinária e o texto da Carta Constitucional de 1988.
Com efeito, esta é a redação do caput do artigo 60 da Lei 11.977/09:
Art. 60. Sem prejuízo dos direitos decorrentes da posse exercida anteriormente, o detentor do título de legitimação de posse, após 5 (cinco) anos de seu registro, poderá requerer ao oficial de registro de imóveis a conversão desse título em registro de propriedade, tendo em vista sua aquisição por usucapião, nos termos do art. 183 da Constituição Federal.
O artigo 183, § 3º, e o 191, § único, da CRFB/88, além do enunciado 340 da Súmula do STF vedam a usucapião de bens públicos. Haveria alguma contradição entre esses dispositivos e o artigo 60 supracitado?
Para chegar à uma conclusão, é preciso averiguar, ainda que perfunctoriamente, os institutos da demarcação urbanística e da legitimação da posse previstos da Lei 11.977/09.
Visando a regularização fundiária dos assentamentos urbanos, o artigo 47 da referida Lei trouxe o conceito de demarcação urbanística, em seu inciso III, que seria um procedimento administrativo para identificar imóveis, definido seus limites, confrontantes e ocupantes, a fim de qualificar a natureza e o tempo da posse destes últimos.
O problema é que, neste conceito, a lei expressamente menciona que tais imóveis objetos de demarcação podem ser privados ou públicos.
Pois bem, definida a área objeto de demarcação urbanística, ao seu ocupante, desde que não possua ou seja concessionário de outro imóvel, será concedida a legitimação da posse, contanto que não sejam imóveis maiores de 250 metros quadrados e os beneficiários não tenham sido agraciados anteriormente com o benefício. O artigo 59 expressamente consigna que a legitimação da posse registrada constitui direito em favor do detentor da posse direta para fins de moradia.
Já o artigo 60, supracolacionado, prevê que, 5 anos após a concessão da legitimação da posse, o beneficiário pode requerer, e não solicitar, ao oficial do registro de imóveis a conversão desse título em propriedade, sendo de se ressaltar a parte final do artigo que prevê que tal se dá devido à aquisição por usucapião, citando inclusive o artigo 183 da CRFB/88.
Não se sabe se foi um lapso do legislador ou realmente um desígnio consciente, mas a questão é que a Lei prevê que dentre os imóveis passíveis de demarcação urbanística estão imóveis públicos. A partir daí, não é difícil deduzir que tais imóveis poderão ser objeto de concessão de legitimação da posse, a qual pode ser convertida em título de propriedade, diretamente em cartório, “tendo em vista sua aquisição por usucapião” (art. 60, in fine).
Obviamente, o raciocínio articulado parece demonstrar ofensiva afronta da Lei 11977/09 à vedação constitucional da usucapião de bens públicos.
Já começa a surgir, principalmente no âmbito das Defensorias Públicas, entendimento que visa contornar o aparente conflito. A tentativa de conciliação parte do reconhecimento que o legislador teria cometido uma falha ao mencionar que a conversão da legitimação da posse em propriedade se daria devido à aquisição desta por usucapião.
Com efeito, sem esse reconhecimento, ou ao menos sua tentativa, não há como salvar o artigo 60 da citada Lei do vício da inconstitucionalidade. Admitida a impropriedade cometida pelo legislador, deveria se entender a conversão em propriedade numa nova forma de alienação de bens públicos, ou ainda, uma forma de alienação forçada de bem público, eis que a Lei prevê expressamente que tal é direito do concessionário.
Embora tal interpretação seja engenhosa, e o desiderato legal seja nobre, parece que não é uma prerrogativa do hermeneuta alterar, a seu talante, as palavras inseridas no texto da Lei pelo legislador, ainda mais num caso como esse, em que ele expressamente citou o dispositivo constitucional que prevê a usucapião especial.
É sabido que há métodos interpretativos constitucionais modernos, como o normativo estruturante, que prevêem que a interpretação se dá em dois momentos: primeiro se cria um quadro, uma moldura que se constitui no texto legal após uma interpretação de acordo com os métodos tradicionais (literal, sistemático, etc.). Só após a definição dessa moldura, aplica-se também a moderna técnica alemã do topos, no interior da moldura ou programa normativo, de forma a conseguir um consenso sobreposto albergado pela norma (âmbito normativo).
Não se vislumbra como a interpretação supra articulada possa se inserir na moldura normativa, no chamado programa normativo. Com efeito, apesar de sedutora, é uma velada forma de instituir uma subversão entre intérprete e legislador. Ora, cada um deles tem uma função, e não cabe ao hermeneuta distorcer o texto da lei o tanto quanto baste para que atinja o significado que este entende adequado.
Por todo o exposto, o entendimento adotado nesse trabalho é no sentido da inconstitucionalidade no artigo 60 da Lei 11977/09.
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