A Lei de Locações Urbanas (8245/91) prevê uma importante peculiaridade em se tratando de um contrato de locação: para o resgate da posse direta, o possuidor indireto lança mão de um instrumento processual especial: a ação de despejo. Trata-se de meio processual distinto do ordinariamente utilizado quando se busca recuperar a posse de um bem, qual seja, a ação de reintegração de posse.
Conhecendo-se essa distinção, perquire-se: ocorrendo, em um contrato de locação, a chamada interversio possessionis, qual seria o instrumento processual cabível para que o proprietário resgatasse sua posse?
Para que seja respondida a questão, faz-se necessário enfrentar a questão da possibilidade ou não da interversão da posse em se tratando de posse precária, como é a do locador que se recusa a devolver o bem no fim do contrato.
Há quem entenda que, mesmo que o locatário mantenha o bem por muitos anos, se opondo claramente ao possuidor indireto, não ocorreria a interversio possessionis (que nada mais é do que a mudança no título da posse), pois para estes a posse precária jamais convalesceria. O entendimento é fruto da interpretação do artigo 1208, do CC/02, in fine, quando dispõe: “senão depois de cessar a violência ou grave ameaça”, ou seja, o dispositivo não prevê a possibilidade de cessação da precariedade. Defende esse posicionamento Tupinambá Miguel de Castro.
Não obstante, parece ser atualmente mais pujante a parcela da doutrina que defende a admissibilidade da interversão nesse caso. Nesse sentido, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald entendem que a redação do artigo 1203 do CC/02 permite que se chegue à essa conclusão, quando dispõe: ”Salvo prova em contrário, entende-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida”. Se é admitida a prova em contrário, logo trata-se de presunção iuris tantum.
À conclusão idêntica chega o enunciado 237 do CJF, que apenas condiciona a interversão da posse à oposição clara e inequívoca do possuidor direto e à inércia do, até então, possuidor indireto.
Outro interessante argumento a favor da corrente que ora se adota é que o artigo 1198, § único, admite que o fâmulo da posse, mero detentor, pode, por conduta unilateral, passar a possuidor, obviamente uma posse injusta, mas dotada de animus domini. Ora, se ao detentor é permitida a transmudação da detenção nesse tipo de posse, seria injustificável que ao possuidor direto não fosse dado o mesmo tratamento.
De resto, a corrente que inadmite a interversio possessionis se utiliza de um argumento legal que não tem pertinência com o assunto tratado, pois o artigo 1208 trata da conversão da detenção em posse, já a interversão da posse diz com a transmudação de uma posse precária em uma posse dotada de animus domini.
Assentada essa premissa, cumpre investigar o meio processual adequado para o locador desidioso buscar de volta sua posse, após a ocorrência da interversão da posse, num caso em que o locatário, por exemplo, já esteja exercendo a posse injusta com animus domini a 4 anos, após o fim do contrato de locação.
O caminho mais simples é pensar na ação de despejo como a adequada, tanto pela especialidade quanto pela maior regulamentação, bem como pelo maior número de hipóteses que rendem ensejo ao seu ajuizamento.
Entretanto, neste trabalho defende-se hipótese outra. Com efeito, como chegou-se aqui à conclusão de que é possível a interversio possessionis nesse caso, deve-se entender que a posse do antigo locatário desprendeu-se do contrato de locação, não sendo mais uma posse decorrente da violação de uma obrigação de restituir. Tratando-se agora de simples posse injusta dotada de animus domini, volta-se ao instrumento genérico de recuperação de posse, que é a ação reintegratória, pois o que impõe a ação de despejo é justamente o contrato de locação.
A questão não é meramente acadêmica e desprovida de utilidade prática, pois são cediças as diferenças existentes entre esses dois meios processuais.
Pode-se ir um pouco além: sendo indubitável a ocorrência da interversão da posse, parece incabível inclusive a aplicação do princípio da fungibilidade entre a reintegratória e ação de despejo. É que as ações guardam peculiaridades, mesmo formais, que tornam inadmissível que se receba a inicial de uma como se fosse outra, sem contar que o STJ considera necessária a existência de dúvida objetiva para a aplicação do referido princípio. Ora, em última análise, crê-se ter demonstrado que trata-se de hipóteses bastante distintas, com diferentes espécies de posse, o que, conseqüentemente, demanda diferentes espécies de instrumentos processuais, o que afasta, definitivamente, a aplicação do princípio da fungibilidade.
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