1. Introdução
O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre o processo de internacionalização dos direitos humanos e suas peculiaridades, analisando, ainda que de forma bem resumida, o histórico desse processo e o seu contributo para a humanidade.
Assim que, preliminarmente, far-se-á um estudo do início da internacionalização dos direitos humanos, apontando-se os seus primeiros passos, e, logo em seguida, o seu ponto culminante, que ocorreu depois da segunda guerra. Posteriormente, será feito um exame das peculiaridades desse processo de universalização e em que essas peculiaridades podem contribuir para a proteção dos direitos dos seres humanos.
2. O início da internacionalização
Historicamente, o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho são apontados como os primeiros passos do processo de internacionalização dos direitos humanos fundamentais.[i]
Consoante FÁBIO KONDER COMPARATO, o Direito Humanitário pode ser compreendido como o conjunto das leis e costumes de guerra que visa diminuir o sofrimento de soldados prisioneiros doentes e feridos, bem como das populações civis atingidas pelo conflito bélico. Seu primeiro documento normativo internacional foi a Convenção de Genebra de 1864, a partir da qual fundou-se a Cruz Vermelha Internacional em 1880. [ii]
Ao conferir proteção à população civil e aos militares colocados fora de combate em época de guerra, resguardando-se seus direitos fundamentais acima de qualquer circunstância de violência desencadeada, o direito humanitário, limitando o poder estatal quanto a esses aspectos, começa efetivamente por dar os primeiros passos no processo de internacionalização dos direitos humanos.
A Liga das Nações, criada após a primeira guerra mundial, tinha a finalidade primordial de promover a paz, cooperação e segurança internacional, condenando as atitudes de violência, agressões externas contra a integridade territorial e independência política dos seus membros e reforçando a necessidade imperiosa da relativização da soberania dos Estados em prol da consagração dos direitos humanos fundamentais.[iii]
Apesar de seu fracasso e extinção, a Liga das Nações não só contribuiu para o surgimento de um sistema de proteção internacional dos direitos humanos, mas também foi o embrião do surgimento da mais forte organização criada até hoje para a proteção desses direitos, a Organização das Nações Unidas.
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) também veio contribuir com a internacionalização dos direitos humanos, diante do seu intuito de garantir padrões internacionais de condições justas e dignas de trabalho e bem estar a todos os trabalhadores.
Para LOUIS HENKIN, essa organização foi quem mais contribuiu para a formação do Direito Internacional dos Direitos Humanos, posto que nos mais de setenta anos de existência promulgou mais de uma centena de Convenções internacionais, que receberam ampla adesão e razoável observância. [iv]
Diante dessa breve análise, pode-se vislumbrar, de forma global, a contribuição de cada uma das instituições anteriormente mencionadas no estabelecimento da internacionalização dos direitos humanos, mediante a imposição de obrigações internacionais entre os Estados de maneira universal.
3. O pós segunda guerra
Entretanto, é mesmo após a segunda guerra mundial, no período de pós-guerra, que os direitos humanos passam a serem vistos com a absoluta relevância que lhes é peculiar. Diante das atrocidades assistidas pelo mundo, com pessoas sendo sistematicamente assassinadas em escala industrial nos campos de concentração, a humanidade acorda para a real importância da efetivação de todos aqueles direitos referentes ao ser humano, em especial os relacionados a sua dignidade como pessoa, a fim de puder ser evitado um novo holocausto e para que os mesmos sejam fortalecidos e propagados em todo o mundo.
É nesse contexto histórico, face à experiência não satisfatória das estruturas jurídico-internacionais de entre as duas guerras, que as potências vencedoras de 1945 implantam um novo, mais completo e dinâmico sistema mundial.[v]
Assim, em 1945, surge a Organização das Nações Unidas, e, logo em seguida, em 1948, é promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com suprema importância para a consagração dos direitos humanos, como um verdadeiro código de regras imputadas ao mundo para que toda a humanidade respeite, ampare e combata a violação desses direitos.
A Organização das Nações Unidas e suas agências especializadas consagram um novo modelo de relações internacionais, sobretudo em relação à manutenção da paz e da segurança entre os Estados, com o aparecimento de muitos outros organismos internacionais com o mesmo objetivo de cooperação, através do estabelecimento de um relacionamento amistoso entre todas as nações.
Conforme afirma FLÁVIA PIOVESAN, “a Carta das Nações Unidas de 1945 consolida o movimento de internacionalização dos direitos humanos, a partir do consenso de Estados que elevam a promoção desses direitos a propósito e finalidade das Nações Unidas.”[vi]
Com a Declaração de 1948, o caráter de universalidade dos direitos humanos é evidenciado e corroborado, sendo a partir dela regulamentado e posta a conhecimento do mundo uma ética internacional de tratamento aos direitos inerentes à pessoa humana e a urgência de se fazer valer a respeito todas as normas consignadas nesse instrumento, por motivos relacionados a sua dignidade como pessoa.[vii]
O ineditismo adotado pela Declaração de 1948 vem desvendar o significado do que seriam os direitos humanos e as liberdades fundamentais, trazendo expressamente especificados em seu texto direitos sociais e de cidadania. [viii]
Além disso, coloca expressamente a democracia como único regime político compatível com os direitos humanos (artigos XXI e XXIX, alínea 2, da Declaração), tornando-a como única solução legítima para a organização do Estado. [ix]
Outrossim, de acordo ainda com FÁBIO COMPARATO, inegavelmente, a Declaração Universal de 1948 representa a culminância de um processo ético que, iniciado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa, levou ao reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa.[x]
Posteriormente, foram confeccionadas diversas outras Declarações e foram feitos vários outros tratados, como a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial (1965), o Pacto internacional dos direitos civis e políticos (1966), o Pacto internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais (1966), e muitos outros, visando ampliar cada vez mais os direitos fundamentais do ser humano numa clara tendência de universalização desses direitos e de limitação da soberania dos Estados.
O processo de internacionalização, porém, ainda não cessou e ainda tem muito a avançar. Numa época em que se assiste ao florescimento de novas agressões aos direitos humanos por parte dos Estados totalitários e do terrorismo de grupos extremados, combinada com uma certa xenofobia em vários países, faz-se necessário, cada vez mais, garantir e efetivar o seu aperfeiçoamento.
4. As peculiaridades do processo de internacionalização
Entre as princípais características do processo de internacionalização dos direitos humanos, que se consolidou efetivamente após 1945, estão: 1) o estabelecimento do princípio da dignidade da pessoa humana como referencial axiológico a ser respeitado por todos os Estados; 2) a limitação da soberania estatal.
4.1. A dignidade da pessoa humana
A segunda guerra mundial sublinhou a lógica da destruição, da barbárie, da exterminação e da descartabilidade da vida humana. Foi deflagrada com base em proclamados projetos de subjugação de povos considerados inferiores e, como ato final da tragédia, com o lançamento de duas bombas atômicas, culminou com a constatação de um prenúncio de apocalipse: o homem acabara de adquirir o poder de destruir toda a vida na face da Terra. [xi]
Nesse cenário de total desrespeito pelos seres humanos, é que começa-se a repensar a reconstrução dos direitos humanos a partir de um referencial que restaurasse o valor do ser humano. Assim é que, principalmente após a segunda guerra mundial, o princípio da dignidade da pessoa humana passou a ser consagrado com maior ênfase nas Constituições e nos grandes textos internacionais, como resposta aos regimes que tentaram sujeitar e degradar os seres humanos.[xii]
Passa, então, o referido princípio a ser fundamento da Constituição que, por sua vez, confere unidade de sentido, valor e concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. Destarte, a dignidade da pessoa humana, concebida como um princípio que faz da pessoa fundamento da sociedade e do Estado, passa a ser diretamente uma fonte de ética dos direitos, liberdade e garantias pessoais e dos direitos económicos, sociais e culturais. [xiii]
Atualmente, não há dúvidas quanto ao fato da dignidade da pessoa humana ser pressuposto filosófico de qualquer regime jurídico civilizado e das sociedades democráticas em geral [xiv], operando como princípio axiológico fundamental e como limite transcedente do próprio poder constituinte originário. [xv]
Outrossim, esse princípio adquire, como fonte ética e de unidade de sentido dos sistemas consitucionais, novas e numerosas projeções, que vão desde o reconhecimento do ser humano como pessoa, independentemente dos seus comportamentos sociais ou da capacidade de autodeterminação, até à concepção de igual dignidade de todos os homens e mulheres como parte integrante da família humana. [xvi]
Essa consagração do princípio da dignidade da pessoa humana caminhou simultaneamente ao aperfeiçoamento do sistema internacional de proteção dos direitos humanos.
Enquanto esses projetavam, no âmbito internacional, a vertente de um constitucionalismo global destinado à proteção dos direitos fundamentais e a limitação do poder estatal (exatamente os lemas do constitucionalismo do século XVIII), a dignidade da pessoa humana projetava, no âmbito do Direito Constitucional, novos referenciais axiológicos de justiça baseados no respeito da pessoa humana. [xvii]
4.2. A limitação da soberania estatal
Da mesma forma, nessa reconstrução dos direitos humanos após a segunda guerra, cristalizou-se no Direito Internacional a concepção de que os Estados não eram soberanamente ilimitados. Passou-se, então, a ser aceita a tese de que a soberania dos entes estatais poderia ser limitada em prol dos direitos humanos, quando agressões injustas fossem contra esses perpetradas.
Como assevera ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS,
eventual alegação de “competência exclusiva dos Estados” ou mesmo de “violação da sagrada soberania estatal” no domínio da proteção dos direitos humanos encontra-se ultrapassada, após anos de aquiescência pelos Estados da normatização internacional sobre a matéria. [xviii]
Deixou de ser, portanto, um assunto de jurisdição exclusivamente doméstica a forma pela qual os Estados trata dos seus nacionais e das pessoas que se encontram sob a sua jurisdição. Desta forma, a proteção dos direitos humanos passou a ser um assunto de jurisdição universal, sendo, outrossim, as pessoas alçadas à categoria de sujeito de direito internacional, passíveis de proteção de toda comunidade internacional.
Nesse diapasão, ANDRÉ GONÇALVES PEREIRA E FAUSTO DE QUADROS afirmam que
o Direito Internacional ficará muito próximo de um verdadeiro direito das gentes e ter-se-á afastados irreversivelmente de um simples Direito entre Estados. Onde já vai o tempo em que os manuais se podiam esquecer do indivíduo como sujeito do Direito Internacional. [xix]
Assim é que passaram-se a ser consideradas legítimas as intervenções da Organização das Nações Unidas nos Estados em que, comprovadamente, as agressões aos direitos humanos se tornaram patentes, de modo que não mais se admite a concepção de Hans Kelsen que identifica o direito com a vontade do Estado, pela qual este pode, de acordo com a norma hipotética fundamental, estabelecer ilimitadamente o direito sem qualquer vinculação com o valor justiça.[xx]
Nesse processo de limitação da soberania estatal, sem dúvida alguma, foi imensa a contribuição do Tribunal de Nuremberg, criado pelo Acordo de Londres de 1945 para o julgamento dos criminosos de guerra.
Muito embora tenha havido intensa discussão sobre a alegada ofensa ao princípio da legalidade penal, o Tribunal de Nuremberg teve uma importância singular para o processo de internacionalização dos direitos humanos: não apenas consolidou a idéia da necessidade da limitação da soberania estatal, como também reconheceu que as pessoas têm direitos protegidos pelo Direito Internacional.[xxi]
5. Conclusões
Dessas breves considerações, conclui-se que atualmente não mais se põe em dúvida o fato de que o processo de internacionalização dos direitos humanos encontra-se intimamente ligado a dois elementos fundamentais: 1) a idéia de que o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser respeitado por todos os povos, independentemente de concepções culturais; 2) a idéia de que os Estados não são soberanamente ilimitados, podendo sofrer intervenções em prol da defesa dos direitos humanos.
Resta saber, porém, a forma como o princípio da dignidade da pessoa humana pode e deve ser universalizado, de modo a não colocar em risco o direito (humano) à cultura das mais diversas sociedades, e como os Estados podem sofrer limitações em sua soberania sem por em risco também o direito à autodeterminação dos povos, que deve ser também garantido e prestigiado por toda a comunidade in
[i] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max
Limonad, 1997, p.27
[ii] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 1999,
p. 42.
[iii] PIOVESAN, Flávia. (Direitos Humanos e o Direito Constitucional …, p. 112).
[iv] HENKIN, Louis. The Age of Rights. New York: Columbia University Press, 1990, p. 15.
[v] MIRANDA, Jorge. Curso de Direito Internacional Público. 3ª ed. Estoril: Principia, 2006, p. 16.
[vi] PIOVESAN, Flávia. (Direitos Humanos e o Direito Constitucional …, p. 131).
[vii].COMPARATO, Fábio Konder. (A Afirmação Histórica …, p. 211).
[viii] Idem, p. 215.
[ix] Idem, p. 215.
[x] Idem, p. 215.
[xi] Idem, p. 200.
[xii] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, tomo IV,
p. 194-195.
[xiii] Idem, p. 197.
[xiv] BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. O princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 203
[xv] MIRANDA, Jorge Manual de Direito Constitucional. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, tomo II,
p. 134-135.
[xvi] MIRANDA, Jorge. (Manual de Direito …, tomo IV, p. 199)
[xvii] PIOVESAN, Flávia. A Força Normativa dos Princípios Constitucionais Fundamentais: O princípio
da Dignidade da Pessoa Humana. In: Temas de Direitos Humanos. Sâo Paulo: Max Limonad, 2003,
p. 357.
[xviii] RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 78.
[xix] PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Manual de Direito Internacional Público. 3ª ed.
Coimbra: Almedina, 1993, p. 392).
[xx] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. Coimbra, 1984, p. 420 e ss.
[xxi] PIOVESAN, Flávia. (Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, …, p. 124).
Procurador do Min. Público junto ao TCE-RN, Professor de Direito Constitucional da FAL e da UNP, Mestre em Direito Constitucional pela UFRN<br>.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Carlos Roberto Galvão. A internacionalização dos direitos humanos e as suas peculiaridades Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 27 jul 2010, 15:17. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/20518/a-internacionalizacao-dos-direitos-humanos-e-as-suas-peculiaridades. Acesso em: 22 nov 2024.
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