Do ponto de vista legal, a “igualdade” pressupõe a ausência de quaisquer predicados que impregnem o conceito com asseverações antagônicas, ou seja, por mais deselegante que pareça igual é o que não se diferencia. Conforme disposto no artigo 5º da Constituição Federal de 1988: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
É de todos sabido, que a ninguém compete desconhecer a lei. Contudo, parece que a parte mais comprometida com tal juízo, é a que menos parece conhecê-la, qual seja a própria nação representada por seus mandatários.
Afinal, que direito inviolável é esse à vida, que tão facilmente vê-se aviltada no atendimento público à saúde, ameaçada constantemente pela criminalidade desenfreada, à liberdade, já que não se pode ir e vir pela própria calçada depois de certa hora, à segurança se não há permissão de se abrir as janelas dos carros nos faróis, ou percorrer contemplativo os caminhos que um dia foram seguros, à propriedade se invariavelmente a distância entre o sonho e a realidade da posse é sempre acrescida em alguns anos, à igualdade, se freqüentemente multiplicam-se as minorias e os subterfúgios que as atendem.
A igualdade é um conceito abstrato e, portanto, intangível. Seu alcance, ou sua materialização se dá nas realizações da justiça plena. Aos olhos da lei, todos os homens são iguais, contudo, esta mesma lei só tem plena operacionalidade se considerar as diferenças destes indivíduos.
Neste sentido, é possível afirmar que o direito à igualdade é principio constitucional; é norma constitucional básica, determinando a igualdade jurídica de todos diante da lei e tem por escopo abolir os princípios. Proíbe o arbítrio diante das diferenciações fundamentadas em qualidades pessoais do indivíduo, tais como raça, riqueza, orientação sexual, profissão, etc. Este princípio determina tratamento igual aos realmente iguais. Consiste em assegurar às pessoas, em situações iguais, os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens com as obrigações correspondentes.
No preâmbulo da Constituição Federal, o legislador destacou um conjunto de valores para a sociedade brasileira, dentre os quais se incluem a valorização dos direitos humanos e o combate a todos os tipos de discriminação:
Nós representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (CONSTITUIÇÃO FEDERAL DO BRASIL, 1988).
Ocorre que a lei é letra para intérpretes, e mais, inúmeras vezes letra para ninguém, há quem chame a isso de retórica. Praticar a lei em toda sua amplitude é o mesmo que ver nascer uma nova espécie. A concretização do direito é assimétrica, isto é, mais deveres para alguns e mais direitos para outros. A Constituição se propôs não só a enumerar direitos, mas também os deveres dos brasileiros e estrangeiros radicados no país, e muito curiosamente, os deveres são mais bem fiscalizados.
Há, ainda, uma outra vertente, e esta atrelada à própria natureza humana. Mesmo que dois indivíduos compartilhem de um mesmo ideário político, de uma idêntica predileção por uma agremiação esportiva, de uma mesma orientação sexual, e tantas outras similaridades, estes indivíduos serão únicos e completamente diferentes, pois, suas reações serão diferentes, seus comportamentos diários serão completamente antagônicos, de forma a se gerar uma infinidade de outros eventos que cada vez mais os tornarão particulares, ímpares.
Hegel (1997) a este respeito, observa que, em verdade há um “ser em si” e um “ser para si”, o que conotaria prova cabal de que na própria particularidade do indivíduo já se reclamariam diferenças. Para o filósofo:
A separação entre o ser em si e o ser para si que no finito se produz, constitui simultaneamente, a sua existência bruta e a sua aparência [...] Limitando-se à pura existência em si, o intelecto chama à liberdade uma faculdade, pois, para aquela espécie de ser, ela apenas constitui efetivamente uma possibilidade. Ora, o intelecto considera esta determinação como absoluta e definitiva, encerra-a na relação ao que ela quer, à realidade em geral, como aplicação a uma matéria dada que não pertenceria à essência da mesma liberdade. Assim se limita o intelecto ao que há de abstrato na liberdade sem alcançar a sua idéia e a sua verdade (HEGEL, 1997, p.19).
Outrossim, saliente-se que a lei vem disciplinar esta possibilidade que está sempre por acontecer, pois, do contrário, ver-se-ia praticada liberdades múltiplas e com objetivos que invariavelmente atenderiam perspectivas diferentes. Igualdade plena e absoluta é um ideal da justiça sob flagrante domínio da utopia.
O princípio de igualdade, contudo, é vital. O seu conceito estabelece os limites da própria legislação. Para ilustrar tal afirmativa, Von Ihering escreveu:
O Poder Legislativo não está, como o juiz, como o governo, colocado sob a lei, antes, está acima da lei. Cada lei que ele proclama, qualquer que seja seu teor, é, em direito, um ato perfeitamente legal. Portanto, em sentido jurídico, o legislador não pode cometer nunca uma arbitrariedade; sustentar o contrário seria o mesmo que dizer que lhe não assistia o direito de mudar as leis existentes; seria colocar o Poder Legislativo em contradição consigo mesmo (VON IHERING, 1953, p. 297).
Não houvesse tais limitações, a lei passaria a legislar em causa própria, de modo a beneficiar o legislador e grupos de interesses. A própria lei não pode ser editada em desconformidade com o princípio da igualdade. Segundo Fagundes:
Em verdade, sob pena de se ter como nenhum o sistema de direitos subjetivos constitucionais, o legislador se há de considerar sujeito ao princípio da igualdade, quando elabora, tanto as leis materiais, não podendo tratar desigualmente situações idênticas, nem com igualdade situações desiguais (sujeição imediata à Constituição), como quando vota as leis em sentido formal, que não pode servir de instrumento a tratamento preferencial ou opressivo, porque, à sua vez, necessariamente conforme as leis materiais preexistentes (sujeição mediata aos mesmos termos da Constituição) (FAGUNDES, 1957, p. 238).
Se tal sujeição ocorre, a lei se formaliza de tal maneira que o rol de indivíduos atendidos será muito mais significante, uma vez que seu propósito estará formulado a partir da mais ampla isenção. Mesmo porque, as idéias de igualdade e de eqüidade são caras ao pensamento ocidental e desempenham um papel central na construção de uma concepção filosófico-política igualitarista.
É fato que as constituições devam dignar-se a representar da melhor maneira possível as aspirações de um povo. Segundo Bonavides:
As constituições rígidas, sendo constituições em sentido formal, demandam um processo especial de revisão. Esse processo lhes confere estabilidade ou rigidez bem superior àquela de que as leis ordinárias desfrutam. Daqui procede, pois, a supremacia incontrastável da lei constitucional sobre as demais regras de direito vigente num determinado ordenamento (BONAVIDES, 2001, p. 267).
Não se trata sequer de incutir à expressão “rigidez”, um caráter de inflexibilidade ou insensibilidade, ao contrário, é a fórmula encontrada pela lei para manter-se, ao menos teoricamente, acondicionada sob os ditames da coerência. Na busca igualdade utópica é necessário se avançar o máximo possível sobre a prática, e só a conduta rígida, rigorosa é capaz desse avanço.
O direito à igualdade, invariavelmente identificado entre os direitos humanos, políticos e civis, constitui-se na base de argumentação para a defesa dos direitos humanos econômicos, culturais e sociais. Nesse sentido, tratar-se-ia de um direito identificado como mais relacionado a esta categoria que àquela.
O direito à igualdade, defendido hoje em dia, estendido a partir do mesmo processo histórico que ampliou o sentido do direito à propriedade, não pode mais significar a representação de um direito formal para os cidadãos; mas tem que reconhecer a possibilidade real de se tornar acessível a todos. É esse o sentido em que se fala hoje em dia, por exemplo, em universalização do direito à educação ou à saúde [1].
Já que a igualdade é um direito, quem exatamente a ela tem direito, uma vez que se sabe perfeitamente que tal direito não é do alcance de todos? Alexy apud Portinho (in: http://www.direitonet.com, 2009) formula:
[...] para tanto, propõe-se a presença significante do mandato de tratamento igual e do mandato de tratamento desigual, orientados conforme a seguir: a) se não existe razão que permita um tratamento desigual, está formalizado o tratamento igual; b) se existe razão que permita um tratamento desigual, está disposto o tratamento desigual.
Tal propositura revela que, uma vez depreender que o tratamento desigual se despertado justamente deve valer-se de amplo respaldo legal. Do mesmo modo, a idéia de igualdade deve referir-se incontinente às proposituras que se perfazem a partir da ação desigual, ou seja, a partir de uma dada situação onde a composição binária (status, raça, gênero, opção sexual, etc.) se estabeleça e promova confronto[2].
Para que se possa pensar em qualquer estratégia, do ponto de vista político e social, de intervenção, se faz necessário reconhecer as formas de instituição das desigualdades sociais. Assim, as políticas de ação afirmativa voltadas para as população indígena, para a mulheres, população afro ou para outros grupos relegados ou objetos de discriminação na sociedade brasileira, seriam uma estratégia a ser utilizada para a afirmação de políticas de identidade e para favorecer uma verdadeira igualdade de oportunidades em sociedades desiguais como o Brasil[3].
Conforme asseveração de Kelsen (1996, p.3), “a justiça é uma qualidade ou atributo que pode ser afirmado de diferentes objetos”, o mesmo se pode afirmar da igualdade, enquanto entidade dependente dos ditames preconizados pela justiça. Kelsen prossegue seu raciocínio discorrendo sobre tais objetos:
[...] em primeiro lugar, de um indivíduo. Diz-se que um indivíduo, especialmente um legislador ou um juiz, é justo ou injusto. Neste sentido, a justiça é representada como uma virtude dos indivíduos. Como todas as virtudes, também a virtude da justiça é uma qualidade moral; e nessa medida, a justiça pertence ao domínio da moral (KELSEN, 1996).
Afirmando-se que, a todo indivíduo compete pautar-se pela moralidade, em especial aqueles que justamente farão juízo sobre os outros, Kelsen propõe que as desigualdades sejam do mesmo modo interpeladas, ou seja, pelo viés da moralidade. Deste modo compete a todo indivíduo reportar-se ao seu semelhante baseado em conceitos comuns de moralidade. Não se há de exigir que um cidadão afegão concorde com o modo de vida de um índio do Alto Xingu, no entanto, ambos os interlocutores têm o dever moral de se respeitarem. O mesmo raciocínio se aplica às desigualdades sociais dentro de um mesmo sistema.
A Assembléia Geral da ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, colocando os dogmas ali previstos como um ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações. Ela dirigia seu campo de validade, portanto, a todas as pessoas, independente do Estado ou nação a que pertençam ou de qualquer outra especificidade.
Ainda, ao dispor que cada pessoa e cada órgão da sociedade devia se esforçar para promover o respeito aos direitos humanos e para a adoção de medidas progressivas para assegurar seu reconhecimento e observância, universais e efetivos, previa, efetivamente, que não somente aos Estados caberia a incumbência de cuidar para a proteção, não violação e promoção desses direitos, mas a todos os membros da sociedade, quer fossem pessoas, quer fossem empresas com fins lucrativos, quer organizações não governamentais, já que todos são órgãos da sociedade.
Matteucci apud Piovesan (1996, p.133), a esse respeito, pondera que:
[...] as ameaças podem vir do Estado, como no passado, mas podem vir também da sociedade de massa, com seus conformismos, ou da sociedade industrial, com sua desumanização. É significativo tudo isso, na medida em que a tendência do século atual e do século passado parecia dominada pela luta em prol dos direitos sociais, e agora se assiste a uma inversão de tendências e se retoma a batalha pelos direitos civis.
No entanto, mesmo que cruciais, tais redirecionamentos não encontram respaldo junto às sociedades. É evidente que a situação atual é muito menos dramática que na época da Declaração, mas longe ainda de atender ou representar o todo de forma igualitária.
Foi Habermas quem pesquisou sobre a influência do Estado sobre o comportamento humano, no sentido de que aquele impingisse a este um comportamento discriminador. Citado por Mozzicafredo (1997), Habermas faz a seguinte ponderação:
O desenvolvimento do conjunto dos elementos de cidadania é significativo na medida em que estabelece mecanismos institucionais que organizam as relações, por um lado, entre os indivíduos e os grupos sociais e, por outro, entre estes e as instituições sociais e políticas. Os direitos de cidadania operam assim como mediadores entre a ação dos indivíduos e as estruturas sociais: nesse sentido, a progressiva constituição da categoria de cidadania configura, nas sociedades democráticas e industrializadas, uma forma especial de organização do espaço político. A institucionalização dos direitos de cidadania acompanha o desenvolvimento da indústria e do mercado e a formação de um espaço social e político onde a lei, e, portanto, a legalidade das relações sociais, estrutura o Estado de direito (HABERMAS apud MOZZICAFREDO, in: http://www.eselx.ipl.pt, acessado em 01/11/2004).
Em termos conclusivos, as relações e o caráter interdependente entre Estado e cidadão, toda uma gama de situações reais e outras meramente convencionais, ou seja, situações previstas em lei que, não se realizam. A própria estrutura econômica gerada pelo Estado cria eventos que se configuram altamente discricionários. A expansão econômica exige do cidadão cada vez mais especialização, contudo, o Estado que em tese seria responsável pela formação profissional deste elemento se ausenta, negligencia sua educação, e o estigmatiza como desempregado – em tempo, saiba-se que se desemprega aquilo que não tem valor.
REFERÊNCIAS
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BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 5ª ed. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1986.
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BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional. 4ª ed. Rio: Forense, 2001.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional, 6ª ed., Coimbra, Almedina, 1991.
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1988.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1989.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2004.
GOHM, Maria da G. Movimentos Sociais Urbanos: produção, teórica e projetos. políticos. São Paulo: Loyola, 1987.
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HERKENHOFF, João Baptista. Para Onde Vai o Direito? Porto Alegre : Livraria do Advogado, 1997.
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KELSEN Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
____________. O Problema da Justiça. Tradução de João Baptista Machado, 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1996.
____________. A Ilusão da Justiça. Tradução de Sérgio Tellaroli: revisão técnica de Sérgio Sérvulo da Cunha. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
http://www.direitonet.com (acessado em 2009)
LIMA JR., Jayme. Os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais. Editora Renovar. Rio de Janeiro – São Paulo. 2001. P. 77.
MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Atlas S/A, 2003.
MOZZICAFREDO, Juan, Estado Providência e Cidadania em Portugal.
Lisboa: Celta, 1997, in: http://www.eselx.ipl.pt, acessado em 01/11/2004.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 2ª ed. São Paulo : Max Limonad, 1997.
[1] Para maiores esclarecimentos, Jayme Lima Jr em “Os Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais”.
[2] Aristóteles já havia formulado conceito semelhante em “Ética a Nicomano” e atualmente, essa noção de justiça é retomada por Rawls em “Uma Teoria de Justiça”.
[3] Para maiores informações consultar Nelson Do Valle em “Estrutura social, mobilidade e raça”.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe. Formado pela Universidade Tiradentes. Pós-Graduado pela Unisul em Direito Constitucional e Direito Processual Penal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FIGUEIREDO, Gerson Aragão Silva. Uma análise de ordem técnica e política ao princípio da igualdade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 set 2010, 07:52. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21560/uma-analise-de-ordem-tecnica-e-politica-ao-principio-da-igualdade. Acesso em: 22 nov 2024.
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