Por: ALVARO CIARLINI
Questão que vem sendo intensamente questionada e discutida refere-se ao poder de revisão dos atos administrativos, seja por parte da própria autoridade que o editou, seja por parte do Poder Judiciário, através de sua atividade jurisdicional e, ainda, do Conselho Nacional de Justiça, no exercício do controle administrativo desse Poder, por força do que dispõe o art. 103-B, § 4º da Constituição Federal, com redação da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004.
Está-se falando da revisão de atos administrativos sejam eles legítimos, hipótese em que tal ocorre para atender ao interesse da Administração, no que se refere à oportunidade e conveniência dos atos discricionários, ou ilegítimos, por vício de forma ou de substância, em que se exerce o controle de regularidade e legalidade.
A partir do trabalho realizado pelo Conselho Nacional de Justiça, no âmbito da atividade das Varas de Execução Penal dos estados, com a realização de mutirões carcerários para a correção de ilicitudes relativamente ao excesso de tempo no cumprimento de penas, ou ainda no controle do tratamento dado aos presos provisórios, iniciou-se, em alguns setores da sociedade, um debate sobre as conseqüências da soltura daqueles que se encontram irregularmente encarcerados.
Alguns adotam uma postura temerosa e sinceramente gostariam que essas pessoas não fossem soltas. Certamente, para o gosto popular médio, bandidos deveriam ficar atrás das grades.
No entanto, a referida discussão está fora de foco. A questão que subjaz a essa temática não consiste em saber se bandidos devem ou não permanecer nos presídios.
É preciso entender que o aprisionamento de alguém, salvo nas hipóteses de prisão cautelar, devidamente justificada a necessidade em cada caso e dentro dos prazos legais, só pode ocorrer após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Tal orientação, que se extrai limpidamente das normas jurídicas de regência, ficou devidamente reforçada no julgamento do HC 84078 pelo Supremo Tribunal Federal, que fixou a premissa segundo a qual a prisão antes do trânsito em julgado só pode ser admitida quando for “absolutamente necessária”.
O cumprimento de penas, portanto, só pode ser admitido se em conformidade com as leis e a Constituição Federal, nos exatos termos da sentença penal condenatória irrecorrível.
Essa garantia criminal preventiva é uma conquista histórica da cidadania. Se o Sistema de Justiça é lento e moroso e não consegue julgar com a devida eficiência e celeridade os processos criminais, a reação dos poderes constituídos não pode consistir na supressão dos direitos subjetivos constitucionalmente garantidos.
A resposta à morosidade deve ser o trabalho constante e permanente no sentido da reestruturação e organização adequada de nossa Justiça, mas nunca a renúncia às nossas conquistas históricas.
Assim, as afirmações contra o incansável e permanente trabalho desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça, ora sob a direção e inspiração de seu presidente, Ministro Gilmar Mendes, pecam por pregar um regime de restrição das liberdades dos cidadãos, e, assim, atentam contra o texto constitucional, afrontando as normas legais que são, sabidamente, nossas únicas salvaguardas contra a onipotência e a eventual prepotência do Estado.
O temor e a liberdade nem sempre formam combinações sociais saudáveis. Sobre esse particular, existem vários exemplos históricos a lembrar, mas vou me fixar apenas em dois: o Nacional Socialismo na Alemanha e seus campos de concentração e a prisão de Guantánamo. Bem conhecemos os resultados vergonhosos de ambos os modelos.
A atitude temerosa em relação às pessoas que hoje se encontram ilegalmente presas em nosso país representa, portanto, um perigoso atentado contra as liberdades públicas. Essa lógica, cuja premissa maior é o medo, mostra-se contraditória e irracional. Por meio dela, chega-se à conclusão de que o fato de alguém estar encarcerado, mesmo sem julgamento, provas, direito de defesa etc, já seria, por si só, um evento legitimador dessa privação da liberdade.
Talvez algumas pessoas só venham a perceber que nosso direito à liberdade está preso a essas incongruências quando se encontrarem nessa mesma situação, vitimadas pela prepotência e pelo descaso de um sistema que não ouve, não fala e não quer ver.
O direito fundamental à liberdade se perfaz em um molde conceitual contrafactual. Só existe se exercido. Seu exercício só é possível a partir de articulações sociais que primem pela legitimidade do poder público e, portanto, pelo respeito à Constituição e às Leis.
Somente uma sociedade desperta e corajosa será capaz de por termo a essa série de desmandos e de abusos que comprometem e amesquinham nossos direitos fundamentais.
Nosso tempo é de luta e de trabalho. Não há tempo a perder.
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