RESUMO: O texto aborda a complexidade da sexualidade humana, explorando conceitos centrais como identidade de gênero, expressão de gênero, sexo biológico e orientação sexual. A identidade de gênero refere-se à autopercepção de um indivíduo, podendo ser cisgênero, transgênero ou outras categorias, enquanto a expressão de gênero está relacionada à aparência e comportamento social. O texto também destaca que o sexo biológico não é limitado ao binarismo macho/fêmea, incluindo casos intersexuais, cuja existência desafia normas sociais e históricas de classificação. Michel Foucault é amplamente analisado, especialmente sua ideia da sexualidade como um dispositivo de controle social e político, que evoluiu ao longo dos séculos para disciplinar corpos e populações. A intersexualidade é exemplificada pela história de Herculine Barbin, que ilustra as limitações impostas por categorias binárias de sexo e gênero. A crítica de Judith Butler aos escritos de Foucault reforça a noção de que a sexualidade e o gênero são campos fluídos, em constante transgressão e construção. Por fim, o texto apresenta a Teoria Queer como uma resposta política às opressões das normas sociais. Surgida no contexto dos movimentos sociais dos anos 1960 e impulsionada pela epidemia de AIDS nos anos 1980, a teoria rejeita a normalização e a aceitação, promovendo a visibilidade de injustiças e violências ocultas nas convenções culturais. Assim, o queer desafia padrões autoritários e defende a pluralidade de existências.
Palavras-chave: Direito constitucional; intersexualidade; gênero; Teoria Queer.
ABSTRACT: The text addresses the complexity of human sexuality, exploring central concepts such as gender identity, gender expression, biological sex and sexual orientation. Gender identity refers to an individual's self-perception, which may be cisgender, transgender or other categories, while gender expression is related to appearance and social behavior. The text also highlights that biological sex is not limited to the male/female binary, including intersexual cases, whose existence defies social and historical norms of classification. Michel Foucault is extensively analyzed, especially his idea of sexuality as a device of social and political control, which evolved over the centuries to discipline bodies and populations. Intersexuality is exemplified by the story of Herculine Barbin, who illustrates the limitations imposed by binary categories of sex and gender. Judith Butler's critique of Foucault's writings reinforces the notion that sexuality and gender are fluid fields, in constant transgression and construction. Finally, the text presents Queer Theory as a political response to the oppressions of social norms. Emerging in the context of social movements in the 1960s and driven by the AIDS epidemic in the 1980s, the theory rejects normalization and acceptance, promoting the visibility of injustices and violence hidden in cultural conventions. Thus, queerness challenges authoritarian standards and defends the plurality of existences.
Keywords: Constitutional law; intersexuality; gender; Queer Theory.
1.INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende introduzir a Teoria Queer como um dos fundamentos teóricos da diversidade de gênero e sexual, para que se abra espaço para esta parcela da sociedade viver de forma livre e despatologizada.
O que se notará com esta investigação é que os corpos intersexuais colocam em evidência a compulsoriedade das identidades de gênero e sexual e a restrição à qual estão submetidos, isto é, ao binarismo homem-mulher. Com isso, se perceberá que o empoderamento das crianças intersexuais pode se dar, de forma bem evidente, através da Teoria Queer, pois ela permite que o sujeito se aproprie de sua condição enquanto tal e desbrave o mundo!
Assim, em um primeiro momento, será aproveitado o espaço para introduzir as noções sobre os termos que expressam a sexualidade humana e que por vezes causam confusão, para depois disso, partir para as análises teóricas de Michel Foucault, Judith Butler e outros expoentes da Teoria Queer.
2. A GARANTIA DAS LIBERDADES INDIVIDUAIS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
A Constituição Federal de 1988, conhecida como "Constituição Cidadã", estabeleceu um marco fundamental na proteção das liberdades individuais no Brasil. Em resposta a um período histórico de autoritarismo, ela consagrou um catálogo abrangente de direitos e garantias fundamentais, promovendo a dignidade humana como eixo central do Estado Democrático de Direito.
O artigo 5º da Constituição é o principal dispositivo que trata das liberdades individuais, assegurando direitos como a liberdade de expressão, de religião, de locomoção e de associação. Esses direitos refletem os princípios democráticos e pluralistas, garantindo que cada cidadão possa exercer sua autonomia e viver de acordo com suas convicções. Conforme preconiza Silva (2005), a proteção dessas liberdades individuais é imprescindível para o funcionamento de uma sociedade democrática e para a limitação do poder estatal.
A liberdade de expressão, por exemplo, está diretamente relacionada à pluralidade de ideias e ao debate público. Segundo Canotilho (2003), esse direito é um dos pilares da democracia, permitindo que os indivíduos participem ativamente na formação da opinião pública e na fiscalização do poder estatal. Contudo, a liberdade de expressão não é absoluta, devendo ser equilibrada com outros direitos, como a proteção à honra e à privacidade.
Outro aspecto relevante é a liberdade religiosa, que assegura a todos o direito de professar, praticar e divulgar suas crenças. Nesse sentido, a Constituição de 1988 reforça o caráter laico do Estado brasileiro, estabelecendo a igualdade de tratamento entre as religiões e o respeito às minorias. Essa proteção tem sido essencial para a convivência pacífica em uma sociedade multicultural, conforme destaca Barroso (2015).
A proteção das liberdades individuais também se estende à liberdade de locomoção e à inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem. Tais direitos são resguardados por meio de instrumentos como o habeas corpus e o habeas data, que garantem a eficácia dessas prerrogativas mesmo diante de abusos por parte do poder público ou de particulares.
Apesar das garantias constitucionais, o Brasil enfrenta desafios para assegurar a plena efetivação das liberdades individuais. A desigualdade social, o racismo estrutural e o autoritarismo institucional são obstáculos que limitam o exercício desses direitos por amplos setores da população. Nesse contexto, a atuação do Poder Judiciário, especialmente por meio do Supremo Tribunal Federal, tem sido decisiva na interpretação e aplicação desses dispositivos constitucionais, promovendo o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade.
A Constituição Federal de 1988, então, representa um avanço significativo na proteção das liberdades individuais no Brasil. No entanto, a concretização desses direitos demanda esforços contínuos de toda a sociedade, tanto na defesa de seus princípios quanto na superação das desigualdades que ainda persistem.
3.NOTA PRELIMINARES
A sexualidade humana é muito complexa e de forma alguma se pretende, aqui, ser reducionista ao abordar a questão das liberdades individuais, entretanto, em observância à didática serão delimitados alguns conceitos.
O primeiro é “identidade de gênero”.
Mas o que é gênero?
De acordo com Lanz (2015, p. 65), em leitura da obra de Judith Butler, o
[...] gênero deve ser visto como um conjunto de significados culturais que os sujeitos são compulsoriamente obrigados a aprender durante o processo de socialização. Na prática, os conceitos e significados apreendidos e introjetados pelos indivíduos se traduzem em “performances imitativas” realizadas nas diversas situações e esferas da vida diária, dando a cada sujeito, e ao conjunto da sociedade, a ilusão da existência de um ser interior generificado. [...]
Então, quando se pensa em gênero, é preciso ter a noção que existem identidades de gênero não divergentes e as divergentes, estas últimas, que costumam ser classificadas como transgêneras ou cisgêneras.
As pessoas cisgêneras são aquelas que se identificam com o gênero designado ao nascer. Entretanto, nem todas as pessoas são assim, existe uma vasta diversidade na identificação das pessoas com o gênero.
As pessoas que não se identificam com o gênero designado ao nascer são as não-cisgêneras, por exemplo, as transgêneras. Vale destacar, também, que existem pessoas que não se identificam com qualquer gênero, e em nosso país ainda não existe um consenso de como denominá-las, sendo que algumas pessoas as chamam de queer, outros de andróginas. (JESUS, 2012).
Lanz (2015) ensina que a palavra transgênero descreve o comportamento da pessoa gênero-divergente, ou seja, aquela cuja identidade ou expressão de gênero apresenta algum tipo de divergência, com as normas sociais aceitas ou sancionadas para a categoria de gênero em que foi classificada ao nascer. Isso porque a transgressão de gênero confronta o dispositivo binário de gênero, instituído pela sociedade como forma de classificação e hierarquização dos seres humanos.
A expressão “identidade de gênero” refere-se ao modo como o sujeito interpreta a si mesmo, isto é, se ao nascer designado homem e se se identifica com este gênero, então, se categoriza como cisgênero. De outro modo, se ao nascer homem o indivíduo não se identifica com tal gênero ou com nenhum dos dois, muito provavelmente se categorizará como transgênero ou como queer, independentemente do sexo.
Outra expressão importante é a “expressão de gênero”. De acordo com Jesus (2012), refere-se ao modo como as pessoas se apresentam, à sua aparência, ao seu comportamento em sociedade, isto é, o seu agir, o seu vestir e até mesmo o modo de interação com outras pessoas reforçam a ideia do conceito de expressão de gênero, que dentro de um binarismo são conhecidos como feminino e masculino, ou andrógino, quando não se encaixam no padrão.
Quando se pensa na expressão “sexo biológico”, é preciso refletir sobre o significado da palavra sexo e o seu contexto. Assim, segundo a mesma autora, Jesus (2012, p. 24), o sexo é uma
Classificação biológica das pessoas como machos ou fêmeas, baseada em características orgânicas como cromossomos, níveis hormonais, órgãos reprodutivos e genitais. Ao contrário da crença popular, reiterada em diferentes discursos, a categoria sexo não se configura como uma dualidade simples e fixa entre indivíduos deste e daquele sexo (binarismo ou dimorfismo sexual), mas, isso sim, como um contínuo complexo de características sexuais.
Portanto, é importante que se destaque que é possível existir sexo biológico que não se encontra dentro do binarismo macho/fêmea, isto é, escapam do discurso tradicional. Fato que subverte a ideia de que o que não for macho ou fêmea estaria deslocado na realidade, portanto, doente ou anormal. Estes casos, por exemplo, são os das pessoas intersexuais.
Jesus (2012) explica que o binarismo, também entendido como dimorfismo sexual, é uma crença que foi desenvolvida na história do homem, de que há uma dualidade simples entre os indivíduos, os de sexo masculinos e femininos.
Ao fazer uma análise descritiva do termo intersexual, a autora Jesus (2012) menciona que cada vez mais as pessoas intersexuais se mobilizam para que a intersexualidade não seja compreendida como patologia, mas sim como uma possibilidade a mais e pede para que não sejam submetidas a cirurgias reparadoras que mutilam e moldam os órgãos genitais que não concordam com suas identidades de gênero ou orientação sexual.
Jesus (2012, p. 25) descreve a pessoa intersexual como a
Pessoa cujo corpo varia do padrão de masculino ou feminino culturalmente estabelecido, no que se refere a configurações dos cromossomos, localização dos órgãos genitais (testículos que não desceram, pênis demasiado pequeno ou clitóris muito grande, final de uretra deslocado da ponta do pênis, vagina ausente, coexistência de tecidos testiculares e de ovários). A intersexualidade se refere a um conjunto amplo de variações dos corpos tidos como masculinos e femininos, que engloba, conforme denominação médica, hermafroditas verdadeiros e pseudo-hermafroditas.
Assim, intersexual é aquela pessoa que pode, inclusive, se identificar com ambos os gêneros, tanto masculino ou feminino, ou apenas um deles, ou nenhum deles, pois se trata de sua autoidentificação, a sua própria existência e vivência.
Além disso, é válido destacar que as pessoas intersexuais também podem orientar-se sexualmente de forma heterossexual, homossexual, bissexual, assexual, ou outra ainda não definida.
Por fim, a orientação sexual diz respeito a quem eu dirijo meus afetos e sentimentos. Isto é, se um homem, tanto transgênero como cisgênero, dirije seus sentimentos a outro homem, a sua orientação sexual é categorizada como homossexual, e isso apesar de estar ligado às questões de gênero por fazer parte de toda a sexualidade humana, não está diretamente associada a ela, pois se trata de afetos dirigidos a outra pessoa e não ao que a pessoa é, à sua autodeterminação enquanto indivíduo.
4.A SEXUALIDADE EM MICHEL FOUCAULT: A VONTADE DE SABER
Foucault (2014), no primeiro livro da trilogia História da Sexualidade, desenvolve a ideia de que, a partir do século XIX, o sexo foi estimulado a se expressar, através do anúncio da sexualidade humana por meio de instituições como família, Igreja, escola, médicos e de saberes como a biologia, a moral, a pedagogia.
Ao invés de afirmar que desde o século XVI a sexualidade vinha sendo reprimida, o que surgiu na verdade foi uma vontade de saber sobre a sexualidade. Isto é, se pudesse transformar esta afirmação em uma questão, poderia ser a seguinte: será que a sexualidade poderia ser utilizada como um dispositivo ou estratégia de controle dos indivíduos e populações?
Foucault (1979) entende por dispositivo um agrupamento heterogêneo de discursos, organizações e até mesmo leis. Assim, para ele não há como descolar do termo dispositivo o sentido de estratégia, o que leva a crer, que o dispositivo está sempre num jogo de poder, em que há fabricação de saberes como verdades, utilizando-se como meio de difusão de tais saberes os discursos.
Para Foucault (2014), a sexualidade, enquanto dispositivo, ganha força em meados do século XVIII, em razão do desenvolvimento das relações de poder na sociedade ocidental. Para ele o desenvolvimento das relações de poder ocorre no nível individual (micro) e no social (macro). No primeiro, estão as relações de poder sobre o corpo do indivíduo, enquanto no segundo encontram-se as relações de poder exercidas no corpo social, a chamada biopolítica da população.
E por que é importante saber que a sexualidade, em Foucault, é entendida como um dispositivo?
Algumas são as hipóteses, tais como: ao ser elevada à categoria de dispositivo, a sexualidade torna-se um conceito aberto, em construção e desconstrução, o tempo todo, o que permite a ressignificação da ideia de identidade de gênero e orientação sexual, o que facilitaria a ideia de despatologização da intersexualidade; outra é que sendo um dispositivo, a sexualidade é também algo individual e, portanto, permite a compreensão do que somos e no que podemos nos tornar, pois a sexualidade está sempre em transição.
A ideia de dispositivo de Foucault, segundo Gabriele, Oliveira e Arrais (s/d), pode ser entendida como um emaranhado de linhas que perpassa o indivíduo e toda a sociedade, com suas linhas de visibilidade, enunciação, força, subjetivação, ruptura e modificação constante.
Diante disso, Deleuze (1996) nos aponta que o que é real é construído no interior dos dispositivos com saberes localizados, e que a consequência disso é que há um abandono da busca pelo eterno em detrimento da necessidade do novo, isto é, o dispositivo, no caso a sexualidade, se define pelo seu teor de novidade e criatividade, que podem ser notadas em duas dimensões: aquilo que somos e aquilo que estamos nos tornando.
5.A INTERSEXUALIDADE DE HERCULINE BARBIN EM MICHEL FOUCAULT
Herculine Barbin, intersexual, nascida em 1838, foi declarada quando de seu nascimento sendo do sexo feminino. Estudou em colégio de freiras, e ao realizar uma consulta médica verificou-se que tinha também um órgão genital masculino. Foi obrigada a retificar judicialmente seu assento de nascimento passando a se chamar Abel Barbin. Suicidou-se em 1868.
Antes de suicidar-se, Herculine Barbin relatou toda sua experiência em diários, que juntamente com dossiês médicos e jurídicos foram trazidos à tona por Foucault, na década de 1970.
Nessa obra, Foucault trabalha com a ideia de transição do homem, de que nada é fixo, ou seja, que o homem é dotado de um sistema complexo de elementos múltiplos.
Para Foucault (1982, p.1), uma grande questão se colocava: “precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo?”.
O autor expõe que durante a Idade Média, as regras do direito canônico e civil determinavam que se chamaria “hermafrodita” aqueles em quem se justapunham os dois sexos. E que nestes casos era responsabilidade do próprio pai ou padrinho determinar o sexo que deveria ser mantido no mesmo momento do batismo.
Nos casos em que houvesse dúvidas, o direito canônico e civil aconselhava escolher dentre os sexos aquele que parecesse ser mais dominante, ou até mesmo aquele que se mostrasse mais vigoroso. No entanto, já quando em idade adulta, próximo do casamento, o “hermafrodita” poderia escolher manter o sexo que lhe fora atribuído ou se desejaria modificar, desde depois de alterado jamais poderia ser realizada outra modificação, sob pena de ser considerado sodomita, ou seja aquele que com práticas sexuais anormais, fora da naturalidade que Deus concedeu ao homem.
O que é importante notar é que desde sempre há registro de pessoas intersexuais ao longo da história da humanidade e que, apesar da modificação do contexto histórico e temporal, é possível notar que tais pessoas, ainda hoje, são consideradas fora da normalidade, pelo simples fato se serem quem são. Ou seja, sempre houve dúvida sobre a existência das pessoas intersexuais, entretanto, o que notamos, com o texto de Foucault, é uma pré-disposição à crítica da irracionalidade sobre este tema, forçando-nos a refletir sobre a expansão do conceito de sexualdiade.
De acordo com Foucault (1982), o fato de se nascer “hermafrodita” na Idade Média e Renascimento não dava azo à condenação dessas pessoas, mas sim o fato de elas quererem alterar o sexo já na idade adulta.
Fato este que culminou com a obrigatoriedade, em conjunto com as concepções jurídicas do indivíduo, da restrição da livre escolha dos “indivíduos incertos” (p.2). Vejamos.
A cada um sua identidade sexual primeira, profunda, determinada e determinante; quanto aos elementos do outro sexo que possam eventualmente aparecer, eles são apenas acidentais, superficiais, ou mesmo simplesmente ilusórios. Do ponto de vista médico, isto que dizer que não se trata mais de reconhecer no hermafrodita a presença dos dois sexos justapostos ou misturados, nem de saber qual dos dois prevalece; trata-se, antes, de decifrar qual o verdadeiro sexo que se esconde sob aparências confusas; o médico terá que de certo modo despir as anatomias enganadoras, e reencontrar por detrás dos órgãos que podem ter encoberto as formas do sexo oposto, o único sexo verdadeiro [...]. (p.2).
Dessa forma nota-se que desde o século XVIII é que é obrigatória a redução da sexualidade para as pessoas intersexuais, uma vez que eram conduzidas ao sistema binário, por inúmeros fatores históricos, em decorrência da pressão e/ou determinação dos médicos que, segundo Foucault, detinham todo o aparato moral da diagnosticação. Vale destacar também, que do ponto de vista do Direito, isso implicava no desaparecimento da livre escolha, tal qual acontece ainda hoje com inúmeras crianças submetidas a cirurgias de redesignação sexual.
Por fim, é importante destacar algumas passagens do diário de Herculine em que ela mesma relata que apesar de se identificar com o gênero feminino, “ela tem sempre para ela mesma um sexo incerto” (p.6), e que esta sua nova identidade forçada a “privava das delícias que experimentava em não ter esse sexo, ou em não ter totalmente o mesmo sexo que tinham aquelas com as quais vivia” (p.6).
Foucault (1982) relata que Herculine Barbin evocava o limbo feliz de uma não-identidade.
A crítica ao que Foucault considera como limbo, pode ser considerada como espaço de existência plena, única, em que um ser humano é capaz de fruir tanto como indivíduo em suas condições únicas desde sua designação ao nascer, como também em sociedade através de seu convívio e experiência coletiva. E essa talvez é uma introdução à crítica que Judith Butler faz ao relato de Michel Foucault sobre Herculine Barbin, uma vez que Butler, pensadora mais conhecida da Teoria Queer, relata que o queer não vive no limbo, na escuridão, mas faz desse espaço o seu palco para brilhar e existir.
6.CRÍTICA A MICHEL FOUCAULT: JUDITH BUTLER E HERCULINE BARBIN
Judith Butler (2003) ao pensar os escritos de Michel Foucault sobre Herculine Barbin, expôs que o que Foucault quis era mostrar o modo pelo qual um corpo intersexual “denuncia as estratégias reguladoras da categorização sexual” (p. 143). Mesmo que se contradizendo com seus escritos sobre a história da sexualidade, pois aqui a sexualidade é um dispositivo e por assim ser está inserida num contexto diferente da emancipação da liberdade sexual que somos convidados com a história de Herculine Barbin.
Preciado (2011) leciona que a crítica de Butler se fundamenta, principalmente, na ideia de que a sexualidade está atrelada à disciplina no século XIX, isto é, aos órgãos sexuais, a capacidade de reprodução, aos papeis sexuais, a boca, a vagina, o pênis, o ânus, tudo é definido e tem uma função para Foucault. Tudo isso é reflexo da sociedade voltada para a divisão do trabalho, para o capital.
De acordo com Butler (2003), Herculine contava a história de uma pessoa com vida injusta, falsa e de grande insatisfação, pois desde menina ele/ela era diferente das outras meninas. De acordo com a autora, Herculine não relatou detalhadamente sua anatomia nos diários, mas os laudos anexados por Foucault sugeriram que Alexia (Herculine) tinha “um pequeno pênis ou um clitóris aumentado; que onde deveria estar a vagina, havia um beco sem saída; que ela não tinha seios femininos identificáveis” (p.145).
Quando Butler critica Foucault em relação aos seus escritos, inclusive pelo tom patológico de seu texto, enquanto analisa Herculine, a pensadora nos mostra o conflito existente da personagem entre sua identidade sexual e de gênero. Pois para Herculine era complexo demais dividir suas características sexuais primárias do seu próprio gênero, que está a todo tempo em transição.
Relata ainda Butler (p. 148) que:
Herculine sustenta seu discurso de diferença sexual mesmo neste contexto ostensivamente homossexual: ela/ele nota e goza de sua diferença em relação às jovens que deseja, e contudo essa diferença não é uma simples reprodução da matriz homossexual do desejo.
Ou seja, mesmo na dor, Herculine dispõe de um corpo que é transgressor, que cria novas possibilidades de existência, que redistribui os seus elementos constitutivos. Isto é, a sexualidade de Herculine transgride as questões de gênero, pois é ambivalente, pois produz a sua própria lei.
E o grande problema surge quando Herculine foi submetida ao sistema jurídico como “homem”, diminuindo a fluidez de seu gênero e sua sexualidade, o que culminou em sua morte.
É óbvio que Herculine não sobreviveria a esta diminuição, era impossível a ela incorporar essa nova legislação, pois sua estrutura física e metafísica estava acima desta lei. Não há conformidade quando não se tem padrão, mesmo que seja dentro de um dispositivo.
7.A TEORIA QUEER: UMA NOVA POLÍTICA DE GÊNERO?
“Entramos num tempo em que as minorias do mundo começam a se organizar contra os poderes que lhes dominam e contra todas as ortodoxias” (Félix Guatarri, 1973).
O contexto histórico no qual nasce a Teoria Queer está associado à contracultura dos chamados novos movimentos sociais, assim denominados pois trouxeram a público demandas para além das questões econômicas, da década de 1960. (MISKOLCI, 2012)101.
De acordo com o autor, os novos movimentos sociais podem ser exemplificados como i) o movimento pelos direitos civis dos negros do sul dos Estados Unidos, ii) o movimento feminista e iii) o movimento homossexual.
Algumas questões como o corpo, incluindo o desejo e a sexualidade foram tópicos de reivindicação nestes movimentos sociais. Deste modo o Queer desponta neste contexto a fim de romper com a ideia de que a sexualidade está voltada exclusivamente para a reprodução.
Estas reivindicações causaram então uma reavaliação das políticas identitárias.
Diante de todo este cenário e nas próximas décadas, que se avançam sobre a de 1960, principalmente a de 1980, começam a despontar por todo o globo terrestre a conhecida epidemia da AIDS, que acabou funcionando como um “catalizador biopolítico” (Miskolci, 2012, p. 24), tornando o movimento gay e feminista, muito mais radical, através da criação de coalizões conhecidas como Act Up e Queer Nation, de onde surgiu a palavra queer, que em tal oportunidade designava, nação esquisita.
Em língua inglesa o termo queer é um xingamento, uma injúria. A ideia do Queer Nation era a de que como parte da população estava sendo considerada abjeta, o queer surge como uma reação e resistência a todo este cenário biopolítico que foi instaurado pela AIDS.
O movimento queer não se preocupa em normalizar um comportamento, ele não quer aceitação nem incorporação. O queer coloca em xeque “às exigências sociais, os valores, as convenções culturais como forças autoritárias e preconceituosas” (Miskolci, 2012, p. 25). Portanto, o queer é a não aceitação de determinados valores morais violentos que insistem em marginalizar, humilhar e desprezar. E como isso ocorre?
Através da visibilidade das injustiças e das violências que estão escondidas nas normas e convenções culturais que se dizem normais, ajustadas e reconhecidas socialmente. Se dá pela crítica ao essencialismo heteronormativo e binário, principalmente.
Louro (2007)103, acrescenta ainda que o queer indica
[...] um movimento, uma inclinação. Supõe a não-acomodação, admite a ambiguidade, o não-lugar, o trânsito, o estar-entre. Portanto, mais do que uma identidade, queer sinaliza uma disposição ou um modo de ser e de viver.
Surge então uma nova política, a das pessoas anormais, em detrimento do corpo straight. Uma política de gênero que quer combater a “medicalização e tratamento das crianças intersexos, gestão cirúrgica da transexualidade, reconstrução e aumento da masculinidade e da feminilidade normativas, a regulação do trabalho sexual pelo Estado” (Preciado, 2011, p. 11). De acordo com Preciado (2011, p. 12), o corpo straight “é o produto de uma divisão do trabalho da carne, segundo a qual cada órgão é definido por sua função”.
A heteronormatividade é uma expressão que dá a ideia de controle e regulação ou dominação por parte da heterossexualidade, isto é, ela busca tornar os heterossexuais como modelos naturais, normais. Daí deriva a ideia de que tudo que foge à heteronormatividade não é normal, ou seja, é anormal.
De acordo com a autora supracitada, essa nova política, a sexopolítica, é
[...] o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer.
O que há, na visão de Beatriz Preciado (2011, p. 18) “é que não existe mais uma diferença sexual, mas sim uma multidão de diferenças, uma diversidade de potências de vida”.
O que existe, agora, são questionamentos e inquietudes. Estranhamentos de tudo ou de sujeitos que se dizem normais, naturais e incontestáveis.
E será que as pessoas intersexuais poderiam ser identificadas como integrantes dessa nova política chamada queer? Será que ao tentar encaixar as pessoas intersexuais nesta categoria não se estaria reduzindo as potencialidades destas pessoas?
Ao que parece, a intersexualidade é o exemplo supremo de como ainda vige a política da normalização e coerência entre sexo, gênero e sexualidade, uma vez que ela rompe com toda esta forma ou possibilidade de categorização ou política dos corpos, como já visto, anteriormente.
Com a intersexualidade não é necessário definir um gênero (masculino ou feminino), nem conduzir desejos de forma única a pessoas de sexo/gênero oposto, não existe nela a lógica da heteronormatividade que delineia arranjos sociais. Portanto, ela desconstrói a lógica histórica e produz novas sexualidades, novos espaços. A ambiguidade.
Butler (2001) expõe que a Teoria Queer, então, reflete sobre como é possível viver a sexualidade, buscando nas relações sociais a lógica que é criada como norma para os conceitos de feminilidade e masculinidade, assim, para a parcela da população que é queer, ser homem ou mulher está muito além das genitálias, está “muito além da biologia” (BUTLER, 2008, p. 26). Neste sentido, todo sujeito é um sujeito em processo, que se constrói pelos seus atos (Salih, 2012) e vontades.
Portanto, a intersexualidade talvez possa encontrar o seu aparato teórico na Teoria Queer, pois, assim como a intersexualidade tende à descategorização ou não conceituação da sexualidade humana, a Teoria Queer, mesmo querendo delinear novos rearranjos da sexualidade, permite o escape da categorização. Neste sentido é a aproximação da intersexualidade da Teoria Queer.
Isto ocorre, porque as pessoas intersexuais possuem o direito de desfrutar da experiência de ser quem são, e não terem seus corpos refeitos, machucados, mutilados, extirpados, com a perda de suas funções em prol do discurso médico e social cultural que tendem a justificar a cirurgia como uma necessidade de identificação das pessoas com um gênero (PINO, 2007). O gênero não deveria ser a preocupação. Entretanto, ele é marca e atribui existência aos sujeitos. (BUTLER, 2008). Neste sentido, a Teoria Queer liberta as crianças e todas as pessoas intersexuais, para viverem livres.
8.CONCLUSÃO
A sexualidade humana, atravessada por dispositivos de poder, saberes e práticas históricas, revela-se como um campo em constante transformação. A partir das análises de Foucault e das críticas de Butler, é possível compreender que as noções de gênero, identidade e sexualidade não são fixas, mas construções sociais e culturais que dialogam com as forças reguladoras da sociedade. O reconhecimento de identidades divergentes, como a intersexualidade e as expressões queer, desafia os sistemas binários e normativos, abrindo espaço para a pluralidade e a ressignificação das experiências humanas.
Nesse cenário, a Teoria Queer emerge como uma força política disruptiva, que questiona os discursos hegemônicos e reivindica a liberdade de ser e existir além das fronteiras impostas pelas normas culturais. Assim, o debate sobre sexualidade, gênero e corpo deve ser continuamente ampliado, desafiando preconceitos e promovendo o respeito à diversidade como um valor central para a sociedade contemporânea. A luta pela visibilidade e pelos direitos das minorias não é apenas uma questão individual, mas um movimento coletivo em prol de uma humanidade mais inclusiva, justa e consciente das múltiplas possibilidades de ser.
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Bacharel em Direito e Química, ambos, pela Universidade Estadual de Londrina; Mestre em Biotecnologia pela Universidade Estadual de Londrina; Especialista em Filosofia e Direitos Humanos pela Farese; Pós-graduando em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade Legale.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SACCHETTO, João Paulo. A teoria Queer como fundamento do direito às liberdades individuais das pessoas intersexuais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 jan 2025, 04:24. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/67719/a-teoria-queer-como-fundamento-do-direito-s-liberdades-individuais-das-pessoas-intersexuais. Acesso em: 31 jan 2025.
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