BREVES COMETÁRIOS AO PRINCIPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A Constituição Federal de 1988 traz em seu texto uma enorme gama de direitos, cujo conteúdo tem como o objetivo a proteção, o amparo, a promoção e o respeito aos cidadãos brasileiros e aos estrangeiros que aqui se encontrem.
Nesse passo, há que se reconhecer a enorme importância do princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, inciso III, da Carta da República. Isso porque esse postulado se espalha por todo o ordenamento jurídico regulando as mais diversas situações, servindo muitas vezes como fundamento para decisões judiciais.
Frise-se que o principio em tela tem origem, primeiramente, na noção cristã, já que vincula a idéia de que os seres humanos são criações Divinas, existindo a concepção de que, sendo criado a imagem e semelhança de Deus, os homens são iguais em essência, tal assertiva é considerada por muitos como fundamento do princípio da dignidade. Na concepção moderna, no entanto, o princípio escora-se no racional, baseado na experiência e na razão humana, sem que, todavia, deixe de existir o entendimento de que todos os homens são iguais em dignidade, sendo a própria existência do homem um fim em si mesmo. Por esta razão ele não pode ser usado como simples meio, isto é, como simples objeto da ação do Estado, limita-se, desse modo, o arbítrio Estatal.
Segundo o ilustre Doutrinador Marcelo Novelino “é usual a concepção de que a dignidade, enquanto prerrogativa inerente a todo ser humano, é diretamente violada quando da utilização de um indivíduo como simples instrumento para o alcance de determinados fins. Nesse sentido, a dignidade humana consiste em um atributo resultante da noção Kantiana de que toda pessoa é um fim em si mesmo, não um mero instrumento ou objeto. No direito comparado, tal concepção é denominada “fórmula do objeto”.
Hodiernamente, o princípio da dignidade da pessoa humana vem ganhando, cada vez mais, conteúdo jurídico, haja vista que vem constando expressamente nos textos constitucionais, bem como nas Declarações Universais de Direitos, deixando de ter significado meramente moral, o que, sem dúvida, facilita a sua aplicação. Entre nós, a dignidade da pessoa humana ganhou realce jurídico pela primeira vez com a promulgação da nossa atual constituição.
Por ser norma de conteúdo cogente, cabe aos poderes públicos a observância do princípio no exercício de suas atividades. Além do que, impende destacar que a regra não deve ser vista apenas no intuito de coibir práticas infralegais, mas sobretudo como pressuposto da democracia, de sorte que deve servir de base para o regular funcionamento dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
No tocante ao Poder Legislativo o princípio deve ser visto como meio de impedir a inovação jurídica que desrespeite os direitos fundamentais de todo e qualquer indivíduo, no campo da Administração Pública visa impedir a gestão arbitrária, vulneradora de direitos e garantias fundamentais e, por fim, para o Judiciário serve como vetor na solução de contendas privadas ou em processos de ordem penal, procurando sempre garantir a máxima efetividade das garantias individuais e coletivas.
Ademais, sabe que o princípio da dignidade da pessoa humana possui conteúdo bastante vasto, ocasionando, em certos momentos, dificuldade de sua aplicação, por ser norma de contornos imprecisos e de pouca densidade, exigindo do aplicador valoração do significado, especialmente na análise do caso concreto.
Muito embora seja o princípio permeado por valores abertos, os quais, como dito antes, merecem valoração acurada, existe um conteúdo mínimo existencial atrelado a idéia de dignidade da pessoa humana, vale dizer, está intimamente ligado a idéia de saúde, educação e moradia.
Perfilhando nesta linha de raciocínio, é intuitivo que o sistema penitenciário nacional viola flagrantemente a dignidade da pessoa humana. É o que pretendemos demonstra adiante.
O Sistema Carcerário Nacional e a Ofensa a Dignidade da Pessoa Humana.
Como é de conhecimento de todos, vivemos momentos de profunda crise no sistema carcerário nacional, pois, já foi amplamente relatado na imprensa e vem sendo paulatinamente discutido pelos Poderes Públicos o problema da superlotação nos presídios, da falta de políticas públicas capazes a reinserir o ex-condenado ao convívio social, enfim, do flagrante desrespeito dos direitos fundamentais do condenado.
A Lei de Execução Penal, em seus arts. 82 a 104, estabelece vários tipos de unidade prisional, especializando cada uma de acordo com o regime aplicado ao preso, ou seja, sendo os presídios destinados a presos provisórios, as penitenciárias, colônias e albergues para os presos em definitivo, com sentença transitado em julgado.
Não obstante, na contramão do que prevê a Lei de Execução Penal, no sistema carcerário, muitas vezes, não é observado a regra da separação entre presos provisórios e definitivos, uma vez que não existem espaço físico para tanto, desobedecendo,assim, a determinação legal retromencionada, o que, por certo, tem gerado a muitos sérios danos. Não é difícil concluir quais as nefastas conseqüências que a inobservância da norma impõe, sobretudo, ao preso provisório, já que, não raras vezes, são colocados com indivíduos de elevada periculosidades, sendo alvos de violência e de abusos de toda a ordem, inclusive sexual.
Não podemos desconhecer o fato de que as más condições materiais, tais como a falta de saneamento básico, a inexistência de amparo psicológico, a carência na assistência a saúde, de trabalho, estrutura física digna, bem como o despreparo dos agentes penitenciários levam os apenados da justiça a desequilíbrios emocionais, agravando o caos social, pois o transtorno é sentido muito além dos muros das unidades prisionais...Enfim, os reflexos do descaso Estatal são percebidos não apenas pelos detentos, mas também por toda a sociedade, que passa a ser refém da revolta, da insanidade e da desesperança dos egressos do sistema, mormente porque soltos voltam a delinquir, na maioria das vezes.
A tendência, infelizmente, é que essa situação fique, ainda, pior. Isso considerando os dados do infopen, o qual em 2009 registrou cerca de 473.626 presos em nosso país, dos quais 264.500 condenados, sendo o Estado de São Paulo o de maior concentração de presos, com 163.915, vê-se, portanto, que os números são alarmantes.
É preciso ter em mente que a pena deve ter caráter repressivo e ressocializador, conquanto, nas atuais circunstâncias, a repressão penal não vem cumprindo sua função social, já que, sistematicamente, descumpri as finalidades acima destacadas. Indo além, podemos dizer, inclusive, que, ao contrário do que pretendia o sistema, as penitenciárias, cadeias públicas e presídios têm se transformado em verdadeiras “escolas de criminalidade”.
Lembremos, outrossim, que para a sobrevivência de qualquer ser humano não basta a possibilidade da existência, é preciso mais...faz-se necessário assegurar a plena capacidade de uma vida digna. Destarte, o superpovoamento, a precariedade das celas, o ambiente insalubre é palco para várias doenças, fragilizando a saúde física-mental do encarcerado, o que vulnera a norma veiculada no art. 5º, XLIX, da Carta Política de 1988.
Em análise acurada, não há dúvida alguma de que o Estado deve ser considerado responsável direto pela situação calamitosa em que os presos se encontram.
Conquanto, devemos esclarecer que não é nosso desejo transformar o indivíduo infrator em vítima, queremos, sim, defender que as medidas corretivas sejam aplicadas nos moldes legais, bem assim que as mesmas possam ser cumpridas satisfatoriamente. Porém, sem esquecer que devem privilegiar as normas estampadas no art. 5º, III, VII, XLVII, XLIX, todos da Constituição Republicana.
É relevante a transcrição do artigo e incisos acima citados, buscando fundamentar o posicionamento traçado neste breve artigo:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
III – ninguém será submetido a tortura, nem a tratamento desumano ou degradante;
VII – é assegurado, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
XLVII – não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c)de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis.
XLIX – é assegurado aos presos o respeito a integridade física e moral.
Sob o prisma Constitucional retro destacado e procurando garantir ao segregado um mínimo de dignidade, o Ministério Público do Estado de Rodônia ingressou com Ação Civil Pública face o Estado de Rodônia, onde questionava às más condições de vida nas unidades prisionais conhecidas como Ênio Pinheiro e “Urso Branco” - José Maria Alves.
A Ação Civil Pública, tombada sob o nº. 001.2000. 012.739-71, foi julgada procedente, no dia 13 de abril de 2009, sustentando, em apertada síntese, o Magistrado a quo que “vale assentar a premissa de que parte da situação fática descrita pelo autor, Ministério Público, não foi contrariada pelo requerido, Estado de Rondônia, de modo a gerar a presunção da existência de fugas exageradas, rebeliões contumazes, mortes corriqueiras e más condições materiais dos presídios mencionados.
Em sendo assim, parece-me oportuno deixar como mero fruto de reflexão, a indagação se o Poder Público Estadual, em sede de política penitenciária, está atendendo ao seu desiderato?
Fazendo uma mirada para o lado meramente espacial e material daquelas ocorrências, ou seja, no contexto alinhavado de mortes, fugas, rebeliões, agentes públicos envolvidos nestas situações, estado físico precário dos presídios, estaria aquele bem público de uso especial – presídio – cumprindo a sua função social?
Muitos poucos estudo tem sido dirigido à importância da propriedade pública cumprir função social. Como o Estado não é – e não pode ser – um fim em si mesmo, tenho como inegável a exigência de cumprimento da função social da propriedade pública, assim entendido no direito subordinado da propriedade, à realização do bem comum, na satisfação das necessidades coletivas. Por isso, a função social constitui, além de um princípio ordenador da própria propriedade, um critério interpretativo.
É intuitivo perceber que uma propriedade privada que produz à custa da escravidão do homem, não cumpre sua função social, ferindo, como consectário, o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da solidariedade.
Parece-me intuitivo vislumbrar, igualmente, que em um presídio onde há mortes e fugas constantes, rebeliões, má condições materiais e de pessoal, também não cumpre, igualmente, a sua função social, ferindo os mesmo princípios acima citados, agregando-se o direito subjetivo da coletividade à segurança pública, como dever do Estado, tal como preconizado no art. 144 da Carta Constitucional”.
E continua “uma análise da questão colocada na inicial sob o enfoque dos internos, verificar-se-á que nenhuma dúvida existe de que a ocorrência de mortes, chacinas e rebeliões agridem os direitos fundamentais dos presos, ferindo o princípio mater da dignidade da pessoa humana, diante da omissão do Poder Público em garantir os mais básicos direitos dos internos, que é a sua incolumidade pública”.
Perfilhando na mesma linha de intelecção, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, através de seus ilustres desembargadores, entendeu que “demonstrado que os problemas de superlotação e de falta de condições mínimas de saúde, higiene do estabelecimento penal não foram sanadas, após o decurso de um lapso quando da formalização do laudo de vigilância sanitária, está devidamente comprovada a conduta omissiva culposa do estado (culpa administrativa)”.
Diante das garantias constitucionais supratranscritas e das decisões acima exaradas, é inegável que a infração a tais regramentos jurídicos dá ensejo a responsabilidade civil, cuja obrigação ficará submetida o Estado.
Convém,assim, trazer à baila noções básicas de responsabilidade civil, apenas para demonstrar os diversos posicionamentos adotados no tocante aos maus tratos em que os detentos estão submetidos; face a precariedade do sistema prisional brasileiro,
De forma inovadora, o Código Civil de 2002 em seu art. 186 define responsabilidade civil, declarando que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Infere-se, desse modo, que a obrigação de indenizar (reparar o dano) é consequência juridicamente lógica do ato ilícito.
Impende destacar, de outro giro, na hipótese acima a responsabilidade é subjetiva, ou seja, quando o agente dá causa a dano, em virtude de sua conduta negligente ou imprudente.
Com atinência ao dano moral sofrido pelo preso, face a falta de estrutura básica dos presídios, alguns tribunais têm se posicionado pela responsabilidade subjetiva do Estado, isto é, assistindo ao preso o dever de provar a desídia Estatal, enquanto provedor do bem-estar coletivo, se agiu ou deixou de agir de maneira a evitar a situação danosa em que o apenado se encontrava.
Assim, vejamos teor da jurisprudência Sul Mato-grossense:
E M E N T A–APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS – SITUAÇÃO DESUMANA – SUPERLOTAÇÃO DOS PRESÍDIOS – RESPONSABILIDADE SUBJETIVA DO ESTADO – MAU FUNCIONAMENTO DOS SERVIÇOS – RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. O tratamento desumano ao presidiário, decorrente das péssimas condições física e sanitária do estabelecimento carcerário aliados à superpopulação das celas, dá ensejo ao dano moral, porque atenta contra os direitos da personalidade pela exposição de risco à saúde do preso e à sua integridade física; recrudesce o aviltamento de sua honra já abalada pela pena imposta; ofende sua intimidade pelo defenestrar de seu resguardo pessoal e desrespeito à sua identidade pessoal. Se o Estado, de há muito, tem conhecimento dessa situação carcerária e pouco ou quase nada faz para corrigi-la, peca por omissão e não pode ad aeternum invocar o princípio da “reserva do possível” para isentar-se da responsabilidade. Demonstrado pelas provas dos autos o nexo de causalidade entre a conduta omissiva e culposa do Estado e o dano causado, fica obrigado a indenizar a vítima. (Apelação Cível - Ordinário - N. 2006.001865-8⁄0000-00 – Corumbá. Relator-Exmo. Sr. Des. Rubens Bergonzi Bossay. Apelante-José Carlos de Abreu. Def. Públ. -Milene Cristina Galvão.Proc. D. Públ.-Almir Silva Paixão.Apelado-Estado de Mato Grosso do Sul. Proc. Est.-Gabriel Ricardo Jardim Caixeta)
Na mesma corrente de pensamento, o Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. DANOS MORAIS. PRESIDIÁRIO. CARCERAGEM. LOTAÇÃO DESARRAZOADA. CONFIGURAÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA AFASTADA PELO TRIBUNAL LOCAL. RESPONSABILIDADE SUBJETIVA NÃO COMPROVADA. SÚMULA Nº. 07 DO STJ. OFENSA A DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA.
1. A constitucionalização da solução da lide revela insindicável a resposta judicial em sede de Recurso Especial, sob pena de a Corte usurpar competência que, por expressa determinação da Carta Maior, pertence ao Colendo STF. Precedentes: REsp. 889.651/RJ, DJ 30.08.2007; REsp. nº. 808.045/RJ, Primeira Turma, Relator Min. Luiz Fux, DJU de 19/09/2005.
2. Ação Ordinária de Indenização interposta por presidiário ao fundamento de que sofrera danos morais em razão da superlotação na prisão a qual encontrava-se recluso.
3. In casu, o Tribunal local afastou a responsabilidade objetiva do Estado, com fulcro no art. 37, par. 6º, da Constituição Federal, consoante assentado no acórdão proferido pelo Tribunal a quo, verbis: Assim, fica desde logo afastada a possibilidade de se reconhecer responsabilidade objetiva estatal para com os encarcerados, calcada no art. 37, par. 6º, da Constituição Federal, que supõe a prestação de algum tipo de serviço público ou a realização de obra pública de que provenha alguma espécie de dano. Pode o Estado responder ao particular pela fuga de presos por ele mal guardados, que venham a causar dano à população, mas não responde perante estes em decorrência de tal serviço, prestado à coletividade. (…) De tal arte, não se pode responsabilizar o Estado pela omissão na construção de mais prisões, que eliminaria a superlotação existente. Pode ser compelido, diante da reserva do possível, a construir novas unidades prisionais, mas não pode ser responsabilizado objetivamente pelo dano que a falta dessas obras permite causar, porque, como dito, não é diretamente seu causador. Portanto, afastado o dever reparatório fundado no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, cabe avaliar se nasce ele da prática de ato ilícito (art. 186 CCB/2003), que, nos termos do art. 927 do mesmo Código Civil gera obrigação de reparar o dano provocado. É que também a culpa constitui fundamento para o pleito inicial. (fls. 324). 4. É que, o Tribunal a quo assentou: Cabe, então, avaliar esses elementos da responsabilidade extracontratual diante dos dados desta causa (…) Dano moral: (…) Entretanto, se se conclui que nestes autos não existe prova efetiva de que demandante experimentou dano moral em decorrência de seu encarceramento e, mais: se se afirmou que não cabe reconhecer conduta ilícita da parte demandada, a avaliação do nexo referido deixa de ter relevância.
5. A responsabilidade subjetiva do Estado, analisada, in casu, reclama a necessidade de análise do arcabouço fático-probatório encartado nos autos, tarefa interditada ao STJ, ante o óbice erigido pela Súmula 07 desta Corte.
6. Deveras o STJ não ostenta competência para análise de questão de natureza constitucional, qual seja a alegação de ofensa aos arts. 5º, incis. III, X, XLIX, e 37, par. 6º, ambos da Constituição Federal, porquanto enfrentá-la significaria usurpar competência que, por expressa determinação da Carta Maior, pertence ao colendo do STF. A competência traçada para este Tribunal, em sede de recurso especial, restringe-se tão-somente à uniformização da legislação infraconstitucional.
7. Recurso especial não conhecido. (REsp. 1114260/MS, Rel. Ministro Luiz Fux, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/11/2009, Dje 17/11/2009)
No entretanto, outros tribunais vêm firmando o posicionamento de que a responsabilidade do Estado, frente as más condições de vida impostas aos presos, é o objetiva, nos moldes do parágrafo único, art. 927 do Código Civil de 2002, cujo conteúdo determina que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para o direito de outrem”.
Discorrendo sobre o tema, pondera o ilustre doutrinador Carlos Roberto Gonçalves: “Há quem critique essa dualidade de tratamento. São os adeptos da tese unitária ou monista, que entendem pouco importar o aspecto sob os quais se apresente a responsabilidade civil no cenário jurídico, pois uniformes são seus efeitos. De fato, basicamente as soluções são idênticas para os dois aspectos. Tanto em um como em outro caso, o que, em essência, se requer para a configuração da responsabilidade são estas três condições: o dano, o ato ilícito e a causalidade civil”[1]
Em verdade, o tema da responsabilidade civil é inesgotável, especialmente, se analisado sob ótica do dano exclusivamente moral, a configuração de tal conduta por parte do Estado é matéria bastante tormentosa. Não obstante, é irrefutável a aplicação da teoria do risco administrativo para o Estado infrator. E outra não poderia ser adotada, uma vez que a Carta da República ampara no seu art. 37, § 6º, a teoria objetivista.
Tratando sob o tema Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho defende que “a idéia de risco administrativo avança no sentido da publicização da responsabilidade e coletivização dos prejuízos, fazendo surgir a obrigação de indenizar o dano em razão da simples ocorrência do ato lesivo, sem se perquirir a falta do serviço ou da culpa do agente”.[2]
No mesmo sentido, Silvio Venosa explica:
“Surge a obrigação de indenizar o dano, como decorrência tão só do ato lesivo e injusto causado à vítima pela Administração. Não se exige falta do serviço, nem culpa dos agente. Na culpa administrativa exigi-se a falta do serviço, enquanto no risco administrativo é suficiente o mero fato do serviço. A demonstração da culpa da vítima exclui a responsabilidade civil da Administração. A culpa concorrente, do agente e do particular, autoriza uma indenização mitigada ou proporcional ao grau de culpa”.[3]
Assim, embora respeitemos a corrente que defende que o dano moral concedido ao preso pelo Estado cinge-se em modalidade de culpa administrativa de caráter subjetivo, filiamos-nos a corrente que patrocina a aplicação da teoria do risco administrativo, mormente porque seria demais exigir que o detento, além de estar submetido a tratamento desumano e degradante, tivesse que provar que sua situação de encarcerado em cela superlotada lhe causa prejuízo de várias ordens.
Podemos dizer, inclusive, que o tratamento a que muitos presos estão submetidos é uma espécie de dupla penalidade, já que além de arcar com o ônus da pena estão subordinado a circunstâncias degradantes, vulnerando, sensivelmente, a norma constitucional que proíbe tal conduta.
Em consonância com a orientação acima o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, in verbis:
E M E N T A– APELAÇÃO CÍVEL – INDENIZAÇÃO – PRESIDIÁRIO – CONDIÇÕES SUBUMANAS CARCERÁRIAS – DANO MORAL CARACTERIZADO – RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO – § 6º DO ART. 37 DA CF – RECURSO PROVIDO PARCIALMENTE. Afasta-se a preliminar de legitimidade passiva da Agepen, em face de a causa de pedir não se referir às falhas na administração do presídio, por ato omissivo, mas sim à precariedade do estabelecimento prisional cuja responsabilidade incumbe ao Estado. O Estado não pode eximir-se de pagar indenização quando demonstrada a sua conduta omissiva na obrigação de manter a segurança, incolumidade física, e de propiciar condições humanas aos seus detentos, comprovada através do nexo causal e o ato lesivo (omissivo). A adoção do principio da reserva do possível é injusta e injurídica, pois isenta ao Estado da responsabilidade dos deveres lhe impostos pelo art. 5º, caput e inciso XLIX, da Constituição Federal, tornando a referida norma inócua e vazia. Deve-se isentar o Estado ao pagamento de custas processuais, considerando que à parte autora é beneficiária de justiça gratuita, não tendo antecipado o recolhimento de custas e despesas processuais. Sendo a Defensoria Publica órgão do Estado, desprovida de personalidade jurídica, não pode ser credora de honorários advocatícios sucumbenciais em litígios contra o Estado. (Apelação Cível - Ordinário - N. 2007.003408-8/0000-00 - Três Lagoas. Relator- Exmo. Sr. Des. Paulo Alfeu Puccinelli. Apelante - Ronaldo Rodrigues Vargas. Def. Públ. 1ª Inst. - Paulo José Patuto. Apelada - Diretoria-Geral de Administração do Sistema Penitenciário).
Defendendo o emprego da Teoria Objetiva, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou pela configuração do dano moral a preso, declarando que:
EMENTA: Agravo regimental em agravo de instrumento. 2 Morte de preso no interior de estabelecimento prisional. 3. Indenização por danos morais e materiais. Cabimento. 4. Responsabilidade objetiva do Estado. Art. 37, § 6º da Constituição Federal. Teoria do Risco Administrativo. Missão do Estado de zelar pela integridade física do preso. 5. Pensão fixada. Hipótese excepcional em que permite a vinculação ao salário mínimo. Precedentes. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 577908 AgR, Relator: Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 30/09/2008, Dje – 222 DILVUG 20-11-2008, PUBLIC 21-11-2008 EMENT VOL – 02342-18 PP- 03696)
Diante do quadro apresentado acima, dúvidas não restam de que os Poderes Públicos infringem escancaradamente as normas insertas na Constituição Federal de 1988 e, por conseguinte, causam danos graves aos envolvidos, na medida em que não há, efetivamente, ressocialização, podendo mesmo dizer que ocorre verdadeiro aniquilamento na perspectiva de vida do indivíduo, chegando muitos, inclusive, a morrer antes mesmo de cumprirem as penas que lhes forma imputadas.
Outra não pode ser a solução dada pelo Poder Judiciário, quando questões desta natureza lhe bater as portas, senão a de trilhar o caminho percorrido pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul e pelo Supremo Tribunal Federal, reconhecendo o dano e aplicando pena ao Estado transgressor, assim estará impingindo a este que exerça sua função com responsabilidade social e, via de consequência, garantindo a todos os brasileiros a certeza da realização da justiça, bem como a firme convicção de que vivemos em uma Estado Democrático de Direitos e como tal regado pelos mais sérios atributos jurídicos, tal como o princípio da dignidade da pessoa humana.
De mais a mais, nenhum favor estará fazendo o Estado ao conceder tal direito, já que a própria Constituição Federal de 1988 garante o direito a indenização ao proclamar no art. 5º, X, que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
Em suma, entendemos que é mister uma ação conjunta entre todos os Poderes da União (Legislativo, Executivo e Judiciário), a fim de que seja, por agora, sanada toda irregularidade, impedindo que novas situações como estas voltem a ocorrer.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS:
Novelino, Marcelo. Teoria da Constituição e controle de constitucionalidade. Salvador:Juspodvm, 2008.
-Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Método, 2008.
Gonçalves, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil, 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002; p. 26-27.
Galiano, Pablo Stolze. Novo Curso de direito civil, volume III: responsabilidade civil, 8ª ed. - São Paulo – Saraiva, 2010, pg. 235.
Venosa, Silvio de Salvo, Direito Civil – Parte Geral, 3ª ed. , São Paulo: Atlas, 2001, v. 1, p. 275-6.
[1] Gonçalves, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil, 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 2002; p. 26-27.
[2] Galiano, Pablo Stolze. Novo Curso de direito civil, volume III: responsabilidade civil, 8ª ed. - São Paulo – Saraiva, 2010, pg. 235.
[3] Venosa, Silvio de Salvo, Direito Civil – Parte Geral, 3ª ed. , São Paulo: Atlas, 2001, v. 1, p. 275-6.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe. Já tendo exercido as funções comissionadas de Auxiliar de Juiz na Comarca de Porto da Folha/SE. Auxiliar de Juiz na 9ª Vara Criminal e de Assessora de Promotora na 5ª Promotoria de Justiça Criminal, (9ª Vara Criminal) da Comarca de Aracaju , na Comarca de Aracaju/SE, advogada atuante no período de junho, em Teresina, Estado do Piaui.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Nivea Helena Aguiar da. Dano moral do preso Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 out 2010, 08:04. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21768/dano-moral-do-preso. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Maria Laura de Sousa Silva
Por: Franklin Ribeiro
Por: Marcele Tavares Mathias Lopes Nogueira
Por: Jaqueline Lopes Ribeiro
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