“O presente artigo pretende demonstrar que a dignidade da pessoa humana, se concebido como atributo do ser humano, é revestido de caráter absoluto, mas, enquanto princípio, pode ser relativizado, principalmente quando confrontado com outros princípios igualmente constitucionais.”
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: ATRIBUTO ABSOLUTO E PRINCÍPIO RELATIVO
A dignidade da pessoa humana é fundamento da República Federativa do Brasil previsto no artigo 1º, III, da Constituição da República. Contudo, cumpre inicialmente ressaltar que a dignidade da pessoa humana não configura um direito conferido pela Carta Magna, mas sim um atributo reconhecido e protegido pela Constituição, que todo ser humano possui independentemente de qualquer requisito ou condição.
Como sobredireito, porque existente antes e acima de qualquer positivação, a dignidade da pessoa humana é o núcleo axiológico do ordenamento jurídico, o valor constitucional supremo que o Poder Público e toda a sociedade devem promover, não somente respeitando a dignidade da pessoa humana, bem como tornando-a efetiva, através da proteção e da promoção do acesso aos valores, bens e utilidades indispensáveis a uma vida digna.1
Sua proteção, como bem leciona o professor Marcelo Novelino, acorre através da consagração dos direitos fundamentais, que foram cunhados exatamente com o intento de resguardar a dignidade da pessoa humana.2 Este sobredireito é o núcleo dos direitos fundamentais, concedendo-lhes caráter unitário e sistêmico.
A este respeito, assim também ensina Alexandre de Moraes, em sua conceituação acerca da dignidade da pessoa humana:
“Concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” 3
Como atributo intrínseco da pessoa humana, a dignidade expressa um valor absoluto, pois, no entender de Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade não pode ser desconsiderada, mesmo cometendo o indivíduo as ações mais indignas e infames. Por outro lado, como princípio, tendo em vista que cada sociedade tem padrões e convenções próprios a respeito do que constitua atentado à dignidade da pessoa humana e pelo fato de poder ser ela realizada em diversos graus, a dignidade da pessoa humana pode vir a ser relativizada, principalmente quando há tensões entre a dignidade de diversas pessoas.4
Assevera o autor:
“Que cada ser humano é, em virtude de sua dignidade, merecedor de igual respeito e consideração no que diz com a sua condição de pessoa, e que tal dignidade não poderá ser violada ou sacrificada nem mesmo para preservar a dignidade de terceiros, não afasta uma certa relativização ao nível jurídico-normativo. Mesmo prevalecendo em face dos demais princípios do ordenamento, não há como afastar a necessária relativização do princípio da dignidade da pessoa em homenagem à igual dignidade de todos os seres humanos.” 5
Assim, a dignidade da pessoa humana não gera um direito absoluto, no sentido de uma total imunidade a qualquer espécie de restrição.
Ainda de acordo com Sarlet, “a prática de atos indignos, embora não acarrete a perda da dignidade, acaba por colocar quem os pratica numa condição de desigualdade na sua relação com os seus semelhantes”. O princípio da dignidade individual, então, conhece certa relativização, em razão da necessidade de proteção da dignidade de terceiros, notadamente quando se trata de proteger a dignidade de todos os integrantes de uma determinada sociedade.6
Observa-se também que, por sua materialização se dar através dos direitos fundamentais, a dignidade da pessoa humana é novamente relativizada, pois um direito fundamental pode ser flexibilizado quando confrontado com outros direitos e princípios igualmente fundamentais, dando ocasião à conhecida regra de compatibilização, a ponderação entre princípios.
Como exemplo, pode-se citar a ADPF nº 54, na qual se discute acerca da possibilidade de interrupção da gravidez de fetos anencefálicos. De um lado, põe-se o direito à vida do feto e, de outro, a dignidade da pessoa humana da mãe ao enfrentar uma gravidez cujo resultado será um bebê natimorto ou com poucas horas de vida, numa questão controvertida que ultrapassa as barreiras da análise jurídica.
Todavia, mesmo que se reconheça a possibilidade de relativização e de eventuais restrições, não há como transigir em relação à preservação de um elemento nuclear intangível da dignidade.7 A chamada “fórmula do objeto” de Kant diz que a dignidade seria violada toda vez que o ser humano fosse tratado como um meio e não como um fim em si mesmo, sendo vedada, pelo núcleo da dignidade, a prática de qualquer conduta que importe em coisificação ou instrumentalização do homem com o nítido ânimo de desprezá-lo em sua condição humana.8
Ademais, a jurisprudência pátria vem reconhecendo, nas mais diversas matérias, a existência de um mínimo existencial que deve ser garantido à pessoa para que esta possa ter uma vida digna, como se pode vislumbrar através do julgado abaixo transcrito:
APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. PENHORA NULA. IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA. DEMONSTRAÇÃO. ART. 1°, LEI 8.009/90. MÍNIMO EXISTENCIAL. 1. O tema em debate, no âmbito do recurso interposto pelos embargantes, diz respeito à suposta nulidade da penhora realizada sobre imóvel residencial, em clara violação ao disposto no art. 1°, da Lei n° 8.009/90, ou seja, a impenhorabilidade do bem de família. 2. (...) 3. Não há dúvida quanto à incidência do disposto no art. 1°, da Lei n° 8.009/90, relativamente à impenhorabilidade do bem de família, eis que, em última análise, vem a tutelar o mínimo existencial da pessoa humana na dimensão relacionada à sua moradia. Não poderia ter sido penhorado o bem imóvel residencial, o que demonstra a nulidade do ato de penhora, razão pela qual efetivamente deveriam ter sido acolhidos os embargos à execução, com a declaração de nulidade da penhora. 4. Apelação provida.
(AC 139684, Proc. nº 9702168341, Rel. Des. Guilherme Calmon Nogueira da Gama, TRF 2, 6ª T. Esp., DJU 25/03/2009, p. 261)
Tem-se, portanto, que a dignidade é um atributo absoluto, no sentido de que não pode ser retirado da pessoa humana, mas que, como princípio, pode ser flexibilizada para compatibilizar os vários direitos fundamentais e a dignidade dos vários seres humanos componentes da sociedade, sendo que, diante dessa relativização, deve-se resguardar um mínimo existencial para a garantia de uma vida digna a cada um destes.
NOTAS:
1 NOVELINO, Marcelo Camargo. X Semana de Atualização Jurídica. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. Disponível em: http://www.lfg.com.br/material/marcelo_novelino/sematua_constitucl_Novelino_26.01.pdf. Acesso em: 24/06/09.
2 NOVELINO, Idem.
3 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 16.
4 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 43, 56 e 76.
5 Idem, p. 77.
6 Idem, p. 130.
7 Idem, p. 138.
8 BRAND, Christiane Rodrigues. A Dignidade da Pessoa Humana. Disponível em http://www.iuspedia.com.br. 05 fev. 2008. Acesso em 29/06/09.
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