Este presente artigo tem como escopo primordial demonstrar a relevância e importância da relação de afetividade que deve existir no seio familiar demonstrando que não é só a verdade biológica que pode explicar o vínculo familiar, nem ao menos só ela é importante ou a mais relevante na constituição de uma família, também existe a sócio-afetividade. Ratificando que os entes familiares que fazem o papel de pai e/ou mãe sócio-afetiva estão acima da simples verdade consangüínea, pois eles são construtores sociais com vínculos eternos e obrigação de formar um indivíduo para a sociedade.
1. COMUNIDADE DE SANGUE X COMUNIDADE DE AFETO
O Direito de Família passa por constantes modificações, em matéria de filiação, ao longo das décadas, principalmente em função da tecnologia avançada em relação à genética. Há a busca pela verdade biológica, da qual o direito não pode se afastar, porém a relação sócio-afetiva vem sendo um ponto relevante e essencial na resolução dos conflitos atinentes aos vínculos familiares.
Para o antigo Código Civil de 1916, a filiação era entendida como a relação entre pais e filhos oriunda de uma união matrimonial, e a família se constituía de uma relação sexual havida entre um homem e uma mulher. É a chamada filiação legítima, pela qual o antigo código centrava suas normas.
Na época, a tecnologia no campo da genética não era capaz de auferir com precisão a paternidade, o direito se valia de presunções a fim de identificar quem seria o genitor do menor. A maternidade era sempre certa e inquestionável se a mulher fosse casada e a paternidade, de difícil comprovação, presumia-se a partir do momento da concepção: atribuía-se a paternidade dos filhos que nascessem até 180 dias após o inicio da convivência conjugal, bem como até 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal – seriam, então, estes os considerados filhos legítimos.
O atual Código Civil trouxe inovações ao instituto familiar, tanto com relação aos avanços genéticos, quanto ao surgimento das relações sócio-afetivas essenciais ao estado de filiação. Passa a tratar com igualdade os filhos legítimos, ilegítimos e adotivos em virtude dos princípios constitucionais da igualdade, da afetividade, da dignidade da pessoa humana, com a Carta Magna de 1988.
Mas, apesar de a biologia ainda ser um fator predominante nas relações familiares, a socioafetividade vem ganhando força com o Código Civil de 2002. Pode-se citar a adoção, ou mesmo as formas não convencionais, como as técnicas de reprodução, nessa chamada era não-biológica, a desbiologização.
Segundo o doutrinador Gomes (apud DELINSKI, 1997, p.15):
O Código refletia ao tempo de sua elaboração, a imagem da família patriarcal entronizada num país essencialmente agrícola, com insignificantes deformações provenientes das disparidades da estratificação social. Sob permanente vigilância da Igreja, estendida às mais íntima relações conjugais e ao comportamento religioso, funcionava como um grupo altamente hierarquizado, no qual o chefe exercia os seus poderes sem qualquer objeção ou resistência, a tal estremo que se chegou a descrevê-la como um agregado social constituído por um marido déspota, uma mulher submissa e filhos aterrados.
Atualmente, todos os entes familiares são tratados da mesma forma, dentro da entidade familiar, com direitos e obrigações. A família moderna tornou-se numa comunidade fundada no afeto e na solidariedade, sentimentos que prevalecem, independente da configuração do vínculo biológico entre eles, como conclui o pensamento de Paulo Luiz Netto Lôbo (2003, p.16):
No que respeita as relações de filiação, [...] cuidava-se separadamente dos direitos dos filhos legítimos e dos direitos e, sobretudo, das vedações dos filhos ilegítimos e adotivos. O princípio constitucional da igualdade (art. 227, § 6º, da CF-88) extinguiu uma longa tradição legislativa. Do mesmo modo, afastou-se a primazia histórica da consangüinidade, cujo lugar foi tomado pelo estado de filiação, independentemente da origem biológica [...], como prioridade absoluta do filho, a convivência familiar, que não é um dado da natureza, mas um construído cultural socioafetivo.
A filiação sócio-afetiva corresponde à realidade, fruto de uma convivência calcada no amor. Segundo Rabelo e Saraiva (14.9.2006, p.7):
O conservadorismo do legislador brasileiro quanto à evolução no conceito de família representa a influência daqueles pessimistas que pensam que a civilização corre o risco de ser engolida por clones, bárbaros bissexuais ou delinqüentes da periferia, concebidos por pais desvairados e mães errantes. Um conservadorismo que fecha os olhos para a realidade e se omite em dar sustentação ao instituto já previsto na norma inclusiva, que é o art. 226 da CF/88.
O que ainda existe, principalmente, é o preconceito para com a entidade familiar advinda das uniões homoafetivas, porque não se pode negar a existência dela, nem deixar de conferir tutelas, faz parte das grandes transformações pelo qual o Direito de Família passa.
Com essa evolução dos tempos, na família moderna o fato natural está dando lugar ao fato cultural deixando prevalecer, o que deve ser primordial para a construção de um lar, o amor. No seio familiar cada um de seus membros desempenha uma função e os filhos necessitam dessa verdade de afetos dos pais.
O direito sempre buscou a verdade biológica quanto à filiação, porém se valia de presunções, pois devido à pouca tecnologia, não se podia auferir a paternidade com absoluta certeza. Hoje, apesar dos avanços tecnológicos em termos de genética, na busca pela verdade biológica da qual o direito sempre quis se aproximar e da qual não se pode afastar, e apesar de se poder auferir a paternidade através do exame de DNA, questiona-se se a parentalidade vai se limitar à relação biológica ou vai muito mais além de que um mero vínculo consangüíneo que pode ser conferido pelo DNA.
A paternidade é um ato de escolha, sua própria idéia dá essa noção. É reconhecida como a relação afetiva, íntima, na qual uma criança é tratada como filho, posto que, cumpre todos os deveres inerentes ao poder familiar, quais sejam o de criar, de amar, de proteger, de cuidar, de educar.
Não se quer, com isso, diminuir a importância do vínculo consangüíneo, mas a valoração da afetividade no seio familiar, como instrumento primordial, independente da existência dos laços de sangue.
Além disso, o instituto da desbiologização surgiu em face da irresponsabilidade dos progenitores no desenvolvimento integral da sua prole, ora pelo abandono físico, material, ora pelo abandono afetivo. A comunidade de afeto merece que o legislador cada vez mais lhe confira direitos, dando a devida importância a todas as entidades familiares, pois a relação paterno-filial se constrói a partir da convivência diária, pois ser pai (de modo geral) exige muito mais do que apenas procriar, exige amar, compartilhar, criar, respeitar.
“Se o afeto passou a ser o elemento identificador das entidades familiares é este o sentimento que serve de parâmetro para a definição dos vínculos parentais” (DIAS, 19/09/2006, [n.p.]). Desta forma, tanto de fato, quanto de direito, as relações afetivas devem ser consideradas pelos legisladores e julgadores, levando em conta também a vontade e a felicidade dos entes envolvidos diante dos litígios judiciais envolvendo as relações familiares, focando principalmente o bem-estar individual das crianças e adolescentes.
CONCLUSÃO
Ao longo da história as relações humanas, dentro e fora da família, têm sofrido grandes transformações. Acompanhando essa evolução, as relações de parentesco e família, baseadas apenas nas questões biológicas, tornaram-se insuficientes, tanto social quanto legalmente. O Direito de Família, então, precisaria sintonizar-se com os novos modelos de família, parentesco, maternidade e paternidade. Para tanto, vários fatores têm contribuído para as constantes mudanças, tais como a moral, a religião, a cultura em geral, a legislação, a economia.
Assim, temas como a Desbiologização da entidade familiar passaram a ser discutidos nos meios jurídicos, buscando entender as novas concepções de família, com base no consuetudinário. Não seria mais possível reconhecer apenas as questões biológicas, pois tornaram-se insuficientes para a aplicação do Direito, em virtude da diversidade de situações existentes na sociedade moderna.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
DELINSKI, Julie Cristine. O novo direito da filiação. São Paulo: Dialética, 1997.
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 14ª ed. São Paulo: Saraiva,1999. v. 5.
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GOMES, Orlando Gomes. Direito de Família. 12ª ed revisada e atualizada por Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil Comentado. Direito de Família. Relações de Parentesco. Direito Patrimonial. São Paulo: Atlas, 2003.
PAULILLO, Sérgio Luiz. A desbiologização das relações familiares. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 78, 19.09.2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4228>. Acesso em: 01/06/2007.
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RABELO, Iglesias Fernanda de Azevedo e SARAIVA, Rodrigo Viana. A lei Maria da Penha e o reconhecimento legal da evolução do conceito de família. Jus Navegandi, Teresina, ano 10, n. 1170, 14.09.2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8911>. Acesso em: 01/06/2007.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005. v. 6.
WALD, Arnoldo. O Novo Direito de Família. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
Técnica do Ministério Público do Estado de Sergipe - Pós-graduada em Direito Público pelo Instituto Leonardo da Vinci (Uniasselvi), em 2009 - Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes (UNIT), em 2008.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SANTANA, Mara Camila de. A desbiologização da entidade familiar Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 out 2010, 21:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21959/a-desbiologizacao-da-entidade-familiar. Acesso em: 22 nov 2024.
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