Inobstante se conviva em um Estado Democrático de Direito, percebe-se que determinadas pessoas ainda são relegadas à marginalidade e ao preconceito, seja por apresentarem diferença na cor, na etnia, na estrutura física, na idade ou na condição social. Nesse estigma inserem-se os negros, os índios, os deficientes, os idosos e os menos abastados.
De modo semelhante ocorre com os indivíduos homossexuais que, por assumirem opção sexual diversa da moralmente aceita, são repudiados e hostilizados no meio em que vivem. Como conseqüência dessa postura assumida pela sociedade, o Poder Legislativo absteve-se de tutelar os direitos dos homossexuais, mormente, em reconhecer os vínculos homoafetivos como entidades familiares.
Saliente-se que, nem mesmo o projeto de Lei 1151/95, apresentado em 26/10/1995, pela então deputada federal, Marta Suplicy, logrou êxito em regular a união entre pessoas do mesmo sexo, haja vista que, desde aquela data, o referido projeto encontra-se em tramitação no Congresso Nacional.
Aliou-se a tal conjuntura, a exigência da diversidade de sexos, pela Constituição de 1988, como requisito para o reconhecimento da união estável como entidade familiar.
Destarte, as uniões entre parceiros do mesmo sexo passaram a ser tratadas como meras sociedades de comerciais, producentes de efeitos jurídicos apenas no âmbito do Direito das Obrigações, nos mesmos moldes do outrora aplicado às uniões adulterinas e incestuosas.
O Código Civil de 2002, por sua vez, em que pesem os inúmeros avanços na seara do Direito de Família, não previu quaisquer efeitos jurídicos aos relacionamentos formados por homossexuais, permanecendo tais uniões sob a égide do Direito Obrigacional.
Ao Poder Judiciário coube, portanto, decidir o término do relacionamento homossexual como uma sociedade de fato, cujos bens amealhados por seus integrantes deveriam ser partilhados de acordo com a cota de participação de cada um ao iniciar a “avença contratual”.
Ocorre, porém, que o tratamento diferenciado às parcerias homossexuais, por afigurar-se mais cômodo e moralmente aceito, não perdurou por muito tempo. Com o avanço da sociedade, a intensificação desses relacionamentos, e a publicidade das novas uniões, tornou-se insustentável o alijamento dos direitos dos homossexuais, cabendo ao Poder Judiciário, Órgão expoente da idéia de justiça, solucionar as questões ali advindas de forma justa e igualitária.
Nesse viés, timidamente os Tribunais pátrios foram conferindo às uniões entre pessoas do mesmo sexo, o status de entidades familiares, tendo como precursor o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, destacando-se a figura de escol da então Desembargadora Maria Berenice Dias.
Entrementes, o paulatino avanço nos julgados das instâncias superiores não teve o condão de pacificar a discussão acerca da matéria, tampouco de legitimar as uniões homossexuais, fato que provocou a busca ao Supremo Tribunal Federal para o enfrentamento dessa questão polêmica.
A esse propósito, cumpre mencionar dois importantes processos, cujos julgamentos, sem sombra de dúvidas, trarão grandes consequências para a seara do Direito de Família. Nesse viés, emerge a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, protocolada em 27/02/2008, pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro, sob a relatoria do Ministro Ayres Brito, e à ADPF 178, convertida em ADIN 4277, promovida em 22/07/2009, pelo Procurador-Geral da República, sob a Relatoria da Ministra Ellen Grace.
Em seu bojo, os então arguintes visam ao reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, conferindo-lhes os mesmos direitos assegurados à união estável entre heterossexuais, desde que preenchidos as exigências previstas naquele regime.
Malgrado o STF ainda não tenha se posicionado acerca do tema, vê-se que o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares, nos mesmos moldes das uniões entre parceiros heterossexuais, legitima-se na própria Carta Magna vigente.
Reconhece-se que, de fato, a Constituição Federal de 1988 foi bem clara ao estatuir a diversidade de sexos dos companheiros entre os requisitos indispensáveis à configuração da união estável.
Não se pode olvidar, porém, que a mesma Constituinte que estabeleceu, com veemência, a união estável entre casais heterossexuais, consagrou a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação como princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.(BRASIL, 2010).
Outrossim, incluiu no Título que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais, mais precisamente, no Capítulo intitulado “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”, o princípio da igualdade, ao prescrever, in litteris: “[que] todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” (BRASIL, 2010, p.07).
A Lei Maior, ao definir o princípio da dignidade humana entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, ressaltou a imprescindibilidade do Estado assegurar existência digna aos seus cidadãos, por meio da tutela e do respeito aos direitos dos mesmos. Ademais, o primado da dignidade da pessoa humana confere, a seus destinatários, a invulnerabilidade de direitos, de modo que, “somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos”.(MORAES, 2002, p.50, com grifo no original).
Entre os objetivos fundamentais da República, a Constituição Federal vigente anunciou a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, baseada no direito de todos os cidadãos gozarem de sua liberdade, seja ela de locomover-se, de expressar-se e, até mesmo, de escolher a sua opção sexual. Enfatizou, também, que além de ser livre, essa sociedade tem que aplicar a justiça e despertar nas pessoas com que convivem, o espírito de solidariedade entre si, de modo que cada integrante possa ajudar-se mutuamente e, sobretudo, respeitar suas diversidades.
Como desdobramento do princípio da igualdade surge, no rol dos princípios fundamentais e dos objetivos do Estado, o princípio da não discriminação, o qual repudia a utilização de meios discriminatórios para excluir determinadas pessoas da tutela estatal. Destarte, não só veda distinções baseadas na origem, no sexo, na cor, na idade, como também quaisquer outras formas de discriminações infundadas.
Após elencar os princípios fundamentais do Estado, a Carta Magna previu o princípio da igualdade, como direito e garantia fundamental. Aduz-se que o texto constitucional albergou, em seu bojo, as concepções formal e material desse princípio, sendo a primeira entendida pela garantia da igualdade perante a lei – que diz respeito à aplicação igualitária do direito vigente sem qualquer distinção entre os destinatários da norma jurídica e a segunda pela garantia da igualdade na lei – que exige igualdade de tratamento às pessoas que estejam na mesma situação e diferenciações àquelas em situações distintas (RIOS, 2002).
Contudo, tal postulado não fora suficiente para impedir o alijamento de certo grupo de indivíduos da proteção estatal. Com efeito, premente se fez elencar, como meios proibitivos de diferenciação, a cor, o sexo, a idade, a origem e quaisquer outros que constituíssem óbice ao exercício dos direitos pelos cidadãos.
Em face da adoção desses critérios proibitivos pela Carta Magna, infere-se que é proibido discriminar as pessoas fundando-se, somente, na orientação sexual escolhida pelas mesmas. E mais, que a falta de previsão legal expressa a vedar a discriminação por orientação sexual não impede o seu reconhecimento, haja vista o rol dos critérios proibitivos apresentados no texto constitucional ser, apenas, exemplificativo. (SILVA, 1997).
José Afonso da Silva, ao comentar sobre a igualdade sem distinção do sexo, referiu-se, também, à discriminação em razão da orientação sexual. Segundo o autor, em virtude das discussões acerca da discriminação aos homossexuais tentou-se inserir no texto constitucional uma norma que vedasse claramente tal distinção, contudo, ante o receio de que a expressão “orientação sexual” ensejasse extrapolações inconvenientes, acabou-se por serem vedadas “[...] distinções de qualquer natureza e qualquer forma de discriminação, que são suficientemente abrangentes para recolher também aqueles fatores, que têm servido de base para desequiparações e preconceitos”.(SILVA, 1997, p.218).
De modo semelhante, a proibição de qualquer meio de discriminação infundada fora prevista pelos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (arts. 1°, 7°), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (arts. 2°, I e 26) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (arts. 1°§1°, 24).
Deduz-se, portanto, que o repúdio à discriminação dos homossexuais encontra amparo na Carta Magna de 1988, não só quando rechaça o uso de quaisquer formas de discriminação para excluir determinados indivíduos da chancela estatal, como também, quando proíbe a discriminação por motivo do sexo.
Logo, estreme de dúvidas de que a finalidade da norma constitucional, ao reconhecer a união estável como entidade familiar, fora atribuir efeitos jurídicos às uniões afetivas cujos integrantes imbuíam-se dos mesmos sentimentos e perspectivas de vida daqueles indivíduos unidos pelo enlace matrimonial. E não excluir o direito de um certo grupo de pessoas só porque assumiram orientação sexual diversa da que é considerada moralmente correta.
De mais a mais, ainda que se partisse do pressuposto de que o constituinte visou a excluir de forma velada os casais homossexuais do direito de constituir família, ao prever expressamente a diversidade do sexo do casal para configurar a união estável, tal exclusão restaria infundada, uma vez que o mesmo legislador que adotou essa postura, prescreveu entre os princípios fundamentais da República, o da dignidade humana e o da não–discriminação, e entre os direitos e garantias fundamentais, o princípio da igualdade.
Nesse prisma, cumpre trazer à baila o escólio de Canotilho (1995):
[...] a Constituição Federal deve ser interpretada de forma a evitar contradições (antinomias, antagonismos) entre suas normas [...]. Daí que o intérprete deva sempre considerar as normas constitucionais não como normas isoladas e dispersas, mas sim como preceitos integrados num sistema interno unitário de normas e princípios (CANOTILHO, 1995, p. 226)
Com efeito, a fim de evitar contradições entre princípios e normas constitucionais e de garantir a unidade do sistema constitucional, chega-se à ilação de que a diversidade de sexo dos companheiros não constitui, por si só, obstáculo ao reconhecimento da união estável entre casais homossexuais, haja vista tal exigência afrontar os preceitos basilares de um Estado Democrático de Direito.
Outrossim, sem embargo do futuro posicionamento do Supremo Tribunal Federal acerca de tão instigante tema, oportuno se faz transcrever o comentário do ilustre presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), Rodrigo da Cunha Pereira (2010), quanto à plausibilidade do reconhecimento às uniões homoafetivas como entidades familiares:
“(...) não é justo que cidadãos cumpridores de suas obrigações legais, inclusive com o pagamento de tributos, continuem excluídos e alijados do reconhecimento e do direito de constituírem famílias apenas e tão somente porque têm uma preferência sexual diferente da maioria (...)” (PEREIRA, 2010)
Assim, considerar os relacionamentos afetivos como meras sociedades de fato, baseando-se, tão somente, na opção sexual das pessoas envolvidas, é tolher o direito do ser humano de amar e de ser feliz, independentemente se a pessoa com quem compartilha esses direitos seja do mesmo sexo, ou não.
BIBLIOGRAFIA
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Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe - especialidade Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUNA, Ana Paula de Jesus Passos. União estável entre homossexuais: uma questão de Justiça e Dignidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 nov 2010, 08:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22056/uniao-estavel-entre-homossexuais-uma-questao-de-justica-e-dignidade. Acesso em: 22 nov 2024.
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