Enveredando-se no surgimento da família ao longo da história, vislumbra-se a sua formação desde as sociedades primitivas, onde era normal a prática da poligamia, pelos homens e da poliandria, pelas suas mulheres. Com efeito, consideravam-se comuns os filhos havidos dessas práticas.
Imperava nessas sociedades, o que Engels (1984) designou de matrimônio por grupos, de modo que cada mulher pertencia a todos os homens e cada homem a todas as mulheres. O matrimônio por grupos decorria da tolerância entre os machos adultos e da falta de ciúmes desses últimos em relação às suas companheiras.
Com a origem daquele sentimento e da idéia de incesto, práticas antes aceitas passaram a ser combatidas, como o relacionamento sexual entre irmãos e entre pais e filhos. Dessa forma, do estado primitivo de promiscuidade, formaram-se, gradativamente, as famílias consangüínea, punaluana, sindiásmica e monogâmica.(ENGELS, 1984).
Considerada precursora do desenvolvimento familiar, a família consangüínea apresentou como principal característica, a classificação dos grupos conjugais por gerações. Nessa espécie de família, só eram excluídos do regime matrimonial, os ascendentes e descendentes; irmãos e irmãs, primos e primas de diferentes gerações, no limite da família, eram todos considerados irmãos e, por conseguinte, maridos e mulheres, já que se permitia o casamento entre os mesmos (ENGELS, 1984).
Da evolução da família consangüínea, surgiu a punaluana, designação advinda do termo “punalua” que queria dizer, companheiro íntimo (ENGELS,1984). Nesse tipo de organização familiar proibiu-se a união sexual entre irmãos carnais.
A família punaluana indicou os graus de parentesco, apresentando as designações sobrinhos e sobrinhas, primos e primas, uma vez que não poderia existir união sexual entre irmãos e irmãs.
Acrescente-se, ainda, que nessa espécie de organização familiar, por ser desconhecido o pai, reconheceu-se a descendência por meio da linhagem materna, de modo que as relações de herança, existentes na época, provinham do direito materno. (ENGELS, 1984)
Diversamente da punaluana, a família sindiásmica apresentou a extinção do chamado casamento por grupos, como principal característica. Nesse estágio de evolução familiar, cada mulher vivia com apenas um homem, devendo ao mesmo, respeito e fidelidade; a infidelidade conjugal era, por sua vez, apenas um direito dos varões.
Na família sindiásmica, o vínculo conjugal poderia ser dissolvido por ambos os cônjuges com facilidade, sendo que os filhos continuariam a pertencer exclusivamente à mãe.
Outro traço característico dessa família condiz com o matriarcalismo, uma vez que a mulher era a responsável pelos encargos da família, afigurando-se como a grande força dentro dos clãs (ENGELS, 1984)
A criação de gado e o desenvolvimento das atividades agrícolas implicaram o surgimento de novas riquezas, bem como da propriedade particular. Nesse contexto, surge a figura do “pai” como o chefe da casa, responsável pela alimentação e pelo sustento de sua família.
Essa supremacia masculina repercutiu no estado de filiação e, consequentemente, no direito hereditário, de modo que, os descendentes que outrora somente herdavam de suas genitoras passaram a herdar do genitor. De igual forma, os laços conjugais consolidaram-se, excluindo de ambos os cônjuges, o direito a dissolver o vínculo.
Nesse estágio de evolução familiar, a família matriarcal substitui-se pela patriarcal, onde o homem apodera-se também da direção da casa e a mulher, por sua vez, vê-se degradada, convertida em servidora, em um mero instrumento de reprodução. (ENGELS, 1984).
O advento do patriarcalismo assinalou a passagem da família sindiásmica à família monogâmica. Nesta fase ascende o predomínio do homem, como procriador dos seus filhos, os quais, quando da morte do seu genitor, tomariam posse dos bens herdados.
Como exemplo dessa família patriarcalista, insere-se a família romana, na qual servos, esposa e filhos deviam submissão ao pater familias.
Consoante expõe Engels (1984):
A princípio a família não se aplicava ao par de cônjuges e aos seus filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. [...] a expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob o seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles (ENGELS, 1984, p.96, grifo do autor)
Destarte, percebe-se que, em um primeiro momento, o sistema familiar condizia com uma relação de poder e propriedade, onde seus integrantes estavam subjugados às ordens do pater familias.
Com a expansão da doutrina cristã, mormente dos dogmas da Igreja Católica, a família passou a ser vista como aquela constituída através dos laços do casamento. O matrimônio ganhou o status de sacramento, por meio do qual homem e mulher relacionavam-se sexualmente a fim de gerar filhos.
Frise-se que a conjunção carnal entre homem e mulher só não era considerada pecado, pela Igreja, se praticada após o casamento e com o único fito de procriar.
No decorrer dos anos, com as transformações sociais advindas da expansão capitalista, o conceito de família, anteriormente ligado à figura do homem como chefe da família e da mulher como mera procriadora e responsável pelos cuidados domésticos, começou a fragilizar-se.
O advento da Revolução Industrial, em meados do século XVIII, impeliu as mulheres a integrarem o mercado de trabalho, a fim de auxiliar no sustento da casa, uma vez que a renda percebida pelo homem já não era suficiente para suprir os anseios da família. Os maridos, por sua vez, em razão do afastamento da mulher dos afazeres domésticos, viram-se obrigados a assumir as atividades domésticas, bem como a ajudar no cuidado dos filhos.
Ademais, a descoberta de métodos contraceptivos, o início dos movimentos feministas, o trabalho nas indústrias e as dificuldades na criação dos filhos trouxeram, também, profundas mudanças no seio familiar, como a necessidade de controle da natalidade.
Desse modo, em virtude da independência das mulheres em relação aos homens, estas começaram a formar famílias sem a presença daqueles, haja vista não mais necessitarem do casamento para sobreviver. Almejaram, portanto, ter filhos e viver somente com eles, independente da figura paterna .
Por outro lado, a desvinculação entre o Estado e a Igreja ensejou no meio social a reformulação dos padrões de moralidade. Noutras palavras:
Os paradigmas estruturadores da organização jurídica sobre a família, o sexo, o casamento e a reprodução desentrelaram-se. Não é mais necessário o sexo para a reprodução e o casamento não é mais a única maneira de se legitimar as relações sexuais. (LEONARDO; PEREIRA, 2000, p.07)
Com efeito, à margem do casamento, começaram a surgir novas famílias, desta vez formadas por pessoas que haviam saído de outros relacionamentos, o que acabou por exigir do Judiciário a criação de alternativas para resolver as contendas advindas desses vínculos.
No Brasil, até o advento da Constituição Federal de 1988, as Cartas Magnas precedentes consideraram como legítima e, por conseguinte, merecedora de proteção estatal, a família oriunda do casamento. Com efeito, a legislação infraconstitucional civil tutelava, apenas, as relações advindas do matrimônio.
Vislumbra-se tal assertiva ao fazer-se uma breve análise do artigo 229 do Código Civil de 1916, ao dispor, in litteris: “criando a família legítima, o casamento legitima os filhos comuns antes dele nascidos ou concebidos.” (BRASIL, 2003, p. 613, sem grifo no original).
Ao comentar o artigo supra, Carvalho Santos (1937) enfatiza:
[...] a família, em geral, não deriva do casamento; mas a família legitima é, fora (sic) de duvida (sic), uma consequencia immediata delle (sic).
O casamento crêa (sic) a família (sic) legitima (sic), preceitua o Código (sic). E acrescenta: legitima os filhos communs (sic) [...]. (CARVALHO SANTOS, 1937, p.806)
Ademais, a doutrina conceituava o Direito de Família com fulcro no instituto do casamento, de modo que aquele era considerado:
[...] um complexo das normas, que regulam a celebração do casamento, sua validade e os effeitos (sic), que delle (sic) resultam, as relações pessoaes (sic) e economicas (sic) da sociedade conjugal, a dissolução desta, as relações entre paes (sic) e filhos, o vinculo do parentesco e os institutos complementares da tutela e da curatela. (BEVILÁQUA, 1952, p.7, sem grifo no original)
Percebe-se, desse modo, a influência judaico-cristã no ordenamento jurídico pátrio, mormente no Direito de Família, haja vista atribuir juridicidade somente aos efeitos decorrentes da relação matrimonial.
Insta mencionar que, nem mesmo o surgimento de novos núcleos familiares fora suficiente para promover o reconhecimento dessas relações pelo poder legiferante, posto que subsistia, na época, total aversão aos vínculos surgidos fora do casamento. Nesse diapasão, a fim de evitar possíveis injustiças, os juízes viram-se obrigados a buscar alternativas que solucionassem os conflitos oriundos de relações extramatrimoniais.
Promulgada a Constituição Federal de 1988, o Direito de Família passou por uma grande transformação. Inseriu-se no texto constitucional a expressão entidade familiar, considerada como aquela legitimada não só pelo casamento, mas também por vínculos afetivos outros, como a união estável entre homem e mulher, e as relações entre um dos ascendentes com a sua prole, sendo estas chamadas de famílias monoparentais.
Outrossim, em face do princípio da igualdade, derrogaram-se as distinções entre homem e mulher, e as referências entre filhos legítimos (considerados os havidos na constância do casamento) e ilegítimos (considerados os havidos em relacionamentos extramatrimoniais, além dos adotivos).
Desse modo, como bem acentua Maria Berenice Dias (2001):
Alargou-se o conceito de família, que, além da relação matrimonializada, passou a albergar tanto a união estável entre um homem e uma mulher como o vínculo de um dos pais com seus filhos. Para configuração de uma entidade familiar, não mais é exigida, como elemento constitutivo, a existência de um casal heterossexual, com capacidade reprodutiva, pois dessas características não dispõe a família monoparental (DIAS, 2001, p.66)
Subjaz, portanto, que o advento da Carta Magna de 1988 promoveu profundas mudanças na concepção da palavra família. A estrita aceitação do matrimônio na órbita familiar cedeu lugar ao reconhecimento de novas entidades familiares surgidas à margem daquele, legitimando o verdadeiro sentido da família com base nos laços da afetividade, do companheirismo e do respeito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. 9. ed. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo LTDA, 1952. 485 p. v.II.
BRASIL. Código Civil. Código de Processo Civil e Constituição Federal. Organização por Yussef Said Cahali. 5. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. 1725 p
CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código Civil Brasileiro Interpretado: direito de família (arts. 180-254). 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1937. 490 p. vol IV.
CZAJKWOSKI, Rainer. União livre à luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96, 1. ed. Curitiba: Juruá, 1996. 206 p.
DIAS, Maria Berenice. União homossexual: o preconceito e a justiça . 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. 304 p.
DINIZ, Maria Helena de. Curso de Direito Civil Brasileiro: direito de família. 18. ed. aum. e atual. de acordo com o novo Código Civil (Lei n° 10.406, de 10-01-2002). São Paulo: Saraiva, 2002. 572 p. vol. V.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade e do Estado. Tradução de José Silveira Paes. São Paulo: Global, 1984. 237 p.
LEONARDO, M.; PEREIRA, R. da C. A família na virada do século. In:. A FAMÍLIA NA TRAVESSIA DO MILÊNIO, 1999, Belo Horizonte. Anais do II Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p.7-8.
NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. rev., atual e ampl. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009. 783 p.
Analista do Ministério Público do Estado de Sergipe - especialidade Direito.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LUNA, Ana Paula de Jesus Passos. O novo conceito de família - evolução histórica e repercussão no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 nov 2010, 08:43. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/22061/o-novo-conceito-de-familia-evolucao-historica-e-repercussao-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 22 nov 2024.
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